Exatamente um ano após a confirmação oficial do primeiro caso de covid-19, o Rio Grande do Sul acumula, nesta quarta-feira, 10 de março, erros e acertos no combate à pandemia enquanto vive, assim como outros Estados, o colapso das unidades de terapia intensiva (UTI) e o aumento vertiginoso de mortes.
Até agora, foram 13,8 mil vítimas, pouco mais do que a população de Barra do Ribeiro, e 703,2 mil casos confirmados da doença, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES) desta terça-feira (9).
Entre os acertos do Rio Grande do Sul citados por especialistas da saúde, estão o fechamento das atividades logo no início da pandemia, para hospitais se prepararem para a chegada do vírus, o modelo de distanciamento controlado, a gigantesca expansão de leitos de UTI (mais de 130% frente a antes do surgimento da covid-19) e a adesão dos gaúchos, em um primeiro momento, ao distanciamento social.
Os erros incluem aglomerações, descrédito de parte da população acerca da gravidade do vírus, fraca fiscalização sobre quem desrespeita medidas sanitárias, concessões no modelo de bandeiras, baixa testagem com PCR e falta de rastreio de pessoas que mantiveram contato com infectados.
— Tivemos uma boa resposta nos meses iniciais da pandemia, o que foi responsável por empurrar o pico da primeira onda por um bom tempo e permitiu ao Estado ter o menor excesso de mortalidade do Brasil. Acontece que esse esforço deveria ter tido continuidade na virada do ano. Com o atraso nas vacinas, houve a emergência de novas variantes e a população teve a falsa sensação de segurança — diz o médico epidemiologista Ricardo Kuchenbecker, gerente de risco no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e membro do comitê científico do Palácio Piratini.
O primeiro caso de coronavírus foi registrado no Brasil em 26 de fevereiro. Em 10 de março, foi confirmada a primeira pessoa infectada no Rio Grande do Sul e, no dia seguinte, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou estado de pandemia no mundo. Na semana seguinte, o governador Eduardo Leite determinou a suspensão das aulas na rede estadual, que até retornaram em outubro, mas com baixa adesão devido ao medo do vírus.
Em poucos dias, houve a primeira morte no RS. A partir daí, trabalhadores foram enviados para casa, muitos foram demitidos e estudantes tiveram que se adaptar ao ensino remoto. Milhares de famílias conheceram o luto por conta de um vírus que impôs o maior desafio sanitário do último século.
Em 31 de março, o Palácio Piratini determinou o fechamento de todo o comércios e de atividades não essenciais para alcançar uma meta que caiu na boca da população: o achatamento da curva.
O grande objetivo era retardar o crescimento da epidemia para dar tempo de os hospitais gaúchos criarem novos leitos de UTI, se equiparem e se prepararem para a esperada onda massiva de internações vista na Europa e na China. Os gaúchos saíram, nessa primeira batalha, vitoriosos.
Por meses, o Rio Grande do Sul esteve entre os Estados onde a população mais ficou em casa, o que contribuiu para que, ao longo dos meses seguintes, fosse também a unidade da Federação com uma das menores taxas de mortalidade a cada 100 mil habitantes do Brasil. Graças a isso, o Rio Grande também registrou o menor excesso de mortes do país em 2020, conforme análise de fevereiro do Comitê de Dados do Palácio Piratini.
Para conciliar a proteção às vidas com o impacto na economia, o governo estadual anunciou, no fim de abril, o modelo de distanciamento controlado, calcado em bandeiras que sinalizam à população o risco de colapso do sistema hospitalar.
O inovador modelo, copiado por Estados como São Paulo e Santa Catarina, foi visto como uma saída para um país desigual como o Brasil, no qual o governo federal não forneceu liderança nem dinheiro suficientes para que a população ficasse em casa por muito tempo – em 2020, o Ministério da Economia repassou R$ 600 mensais a 67,9 milhões de brasileiros.
Após pressão do setor econômico, que apontava uma onda de desemprego, Leite admitiu a cogestão, um modelo que permitia a cidades adotarem protocolos sanitários mais brandos (cuidados de bandeira laranja se estivessem em bandeira vermelha, por exemplo), se apresentassem um plano detalhado ao governo do Estado.
O movimento foi saudado por empresários, que viram na concessão uma janela para conter demissões em massa, mas criticado por especialistas da saúde, que projetavam aumento de mortes em meio a uma possível normalização, em altos patamares, de infecções e de mortes. Ambas as expectativas se concretizaram.
A economia de fato ficou mais aquecida, o que se refletiu em queda de 20% nos pedidos de seguro-desemprego em janeiro frente ao mês anterior, ao custo da normalização de mortes a níveis inimagináveis e a concretização do que a médica Lucia Pellanda, professora e reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), chama de “paradoxo da epidemiologia”.
Isto é: quando uma medida sanitária funciona e evita um alto número de mortes (ficar em casa e usar máscara na rua, no caso da pandemia), parcela da população passa a acreditar que o problema não existe. Com isso, a própria solução acaba sendo criticada e o real inimigo (um vírus que ceifa diariamente, no Brasil, oito vezes o número de vítimas da boate Kiss, em Santa Maria) é menosprezado.
— Tomamos medidas de forma precoce e efetiva. Nos primeiros meses, tínhamos os maiores índices de isolamento. Mas é o paradoxo preventivo: as pessoas não enxergam o resultado do que fazem. Como não havia gente doente, alguns acharam que não precisava mais ter medo. O mesmo acontece com as vacinas: a doença é erradicada e as pessoas perdem o medo da doença — comenta a médica epidemiologista.
Tomamos medidas de forma precoce e efetiva. Nos primeiros meses, tínhamos os maiores índices de isolamento. Mas é o paradoxo preventivo: as pessoas não enxergam o resultado do que fazem. Como não havia gente doente, alguns acharam que não precisava mais ter medo
LUCIA PELLANDA
Professora e reitora da UFCSPA
O resultado é que o Rio Grande do Sul passou por um primeiro pico no inverno, com auge de mortes em agosto, uma melhora até novembro e uma segunda onda em dezembro, o mês com mais mortes da pandemia. E profissionais da saúde passaram a vivenciar uma exaustiva rotina de salvamento, como se hospitais gaúchos tivessem sido transformados em campos de ajuda humanitária de uma nação em guerra.
Apesar do receio de explosão de casos após Natal e Ano-Novo, o Estado viu uma melhora em janeiro e no início de fevereiro, o que o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19, credita à tradição gaúcha de veranear na praia ou no Interior, longe de grandes centros.
No entanto, com a volta ao trabalho presencial, o início de fevereiro registrou um aumento de contaminações, o que culminou, na segunda metade do mês, em uma explosão de internações e mortes.
A piora foi tão grande que fevereiro se tornou o segundo mês mais mortífero da pandemia no Rio Grande do Sul. Neste início de março, o Estado está, pela segunda semana consecutiva, em bandeira preta. A ocupação das UTIs nesta terça-feira (9) era de 103,8%, com um cenário pior em hospitais privados gaúchos.
— O maior acerto foi ter restringido a mobilidade logo que os primeiros casos apareceram, para o preparo dos hospitais. Isso foi decisivo para colocar o Rio Grande do Sul entre as menores taxas de mortalidade. O primeiro erro foi ter promovido aberturas com o distanciamento controlado, que acompanha indicadores de hospitalização tardios. E houve outro erro: acreditar que o controle da epidemia se resumia a fechar e abrir comércios. Após a expansão inicial, não houve grande aumento de capacidade de testagem, plano de rastreamento de contactantes e, principalmente, comunicação. Houve mais uma intenção de passar que as coisas estavam indo para a normalidade — opina o médico Alexandre Zavascki, professor de Infectologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A tragédia no Rio Grande do Sul é compartilhada por outros Estados: o Brasil como um todo está à beira do colapso do sistema de saúde, em meio à dificuldade do governo federal em assegurar vacinas aos brasileiros e à desmobilização do presidente Jair Bolsonaro em conclamar o país a seguir os protocolos sanitários.
— Com a expansão da vacinação, veremos um cenário mais positivo. O que tem sido comprovadamente eficaz, se olharmos Israel, é a vacinação em massa, uso de máscaras e distanciamento físico. Enquanto tivermos um percentual baixo de vacinação, corremos o risco de gerar novas cepas. O governo do Estado está em negociação com as farmacêuticas, a Assembleia Legislativa e os prefeitos têm apoiado, há uma frente de governadores em busca de vacinas. Se as vacinas não chegarem diretamente por compra do país, governadores estão atuando para comprá-las — afirma Luís Lamb, coordenador do Comitê de Dados do Palácio Piratini e secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia.