- Durante meses, o Brasil apostou apenas na vacina de Oxford e no convênio Covax Facility, criado para países mais pobres
- Enquanto isso, outras nações, incluindo vizinhos da América Latina, firmaram acordo com várias farmacêuticas
- O governo federal agora corre atrás do tempo perdido para articular compras em outros laboratórios
Na corrida pela vacina contra a covid-19, países ricos ficam à frente dos pobres — e o Brasil, reconhecido mundialmente como referência em campanhas de vacinação, está atrás até de nações ainda mais pobres. A última semana de dezembro terminará com quase 50 países já tendo iniciado a imunização de sua população. Até agora, cerca de 5 milhões de doses de diferentes laboratórios foram aplicadas em habitantes de União Europeia, Oriente Médio, Estados Unidos, Canadá e América Latina — a maior parte dos produtos exige duas doses. Nesta terça (29), foi a vez da vizinha Argentina dar início à vacinação.
Países como Estados Unidos e Reino Unido já haviam firmado acordo com a Pfizer em julho. Para não ficar apenas em nações ricas, o Chile fechara acordo em setembro, além de ter parceria com a Sinovac, responsável pela CoronaVac, e com a AstraZeneca, fabricante da vacina de Oxford – o país já reservou o necessário para imunizar todos os 18,7 milhões de chilenos.
Na América Latina, Peru, México, Costa Rica e Equador compraram, juntos, 60 milhões de doses da Pfizer. A União Europeia adquiriu 300 milhões, Reino Unido, 40 milhões, Japão, 120 milhões, e Estados Unidos, 100 milhões.
Outros países tiveram acordos com vários fornecedores porque se sabia que algum fornecedor poderia não entregar as vacinas em tempo hábil e outro teria doses mais precocemente do que outros. Ficamos para trás
ALBERTO CHEBABO
Vice-presidente da SBI
O México, em específico, fez o que vários analistas vinham pedindo que o Brasil realizasse: firmou acordos com AstraZeneca, Pfizer, a chinesa CanSino e está prestes a consolidar negociação com a Janssen. O país ainda faz parte, assim como o Brasil, do consórcio Covax Facility, um convênio liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para assegurar doses a países em desenvolvimento.
Outras nações mundo afora também contam com seus acordos: Emirados Árabes Unidos e Bahrein iniciaram a imunização com a chinesa Sinopharm. A China usa duas vacinas produzidas localmente, a CoronaVac e a da Sinopharm. E os Estados Unidos, além de usarem a Pfizer, começaram a aplicar a Moderna.
Nesse contexto, o maior desafio do Brasil, como destacam quatro analistas entrevistados por GZH, é justamente o fato de que as farmacêuticas com vacinas prontas já estão comprometidas em destinar os primeiros lotes a outras nações que manifestaram interesse meses atrás. Agora, o país fica atrás na fila e deverá receber poucas doses no ano que vem e em quantidade insuficiente para de fato dar a largada no combate à pandemia.
A principal crítica é de que o governo federal errou ao apostar todas as fichas na vacina de Oxford, produzida pela AstraZeneca em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O convênio, até hoje o único de pé em nível nacional, prevê a compra de 210 milhões de doses prontas e a transferência de tecnologia para a Fiocruz produzir o imunizante localmente. Entretanto, problemas na condução do estudo resultaram em atraso no fim da pesquisa, e a falta de outras negociações deixou o Brasil de mãos abanando para dar a largada na vacinação ainda neste ano ou em janeiro.
— Como a gente vê outros países iniciarem e temos a tradição de estar sempre à frente (em termos de vacinação), ficamos muito frustrados. O Brasil deveria ter considerado mais fornecedores. O que a gente tem de concreto é o contrato com a AstraZeneca, que é aquela que mais doses promete ao Brasil. Hoje, há um cenário no qual fabricantes como a Pfizer não têm vacinas o suficiente para nós ou têm apenas poucas doses, e não o suficiente para fornecer em um curto espaço de tempo — afirma a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Como a gente vê outros países iniciarem a vacinação e temos a tradição de estar sempre à frente, ficamos muito frustrados. O Brasil deveria ter considerado mais fornecedores
ISABELLA BALLALAI
Vice-presidente da SBIm
O presidente Jair Bolsonaro, após ser questionado se sentia-se pressionado por a vacinação já ter começado em outros lugares, respondeu na semana passada que “ninguém me pressiona para nada” e que não “dá bola”. Com a repercussão negativa, afirmou que “tem pressa”, mas que nenhum laboratório pediu o uso emergencial ou o registro definitivo para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em declarações no domingo (27) e nesta segunda-feira (28), ele voltou a culpar farmacêuticas por não “estarem interessadas” no mercado de 210 milhões de brasileiros.
O argumento é refutado por cientistas, que afirmam que farmacêuticas já teriam pedido autorização à Anvisa se o governo tivesse demonstrado interesse, meses atrás, em comprar outras imunizações além da vacina de Oxford, como a da Pfizer ou da Moderna.
— Outros países tiveram acordos com vários fornecedores porque se sabia que algum fornecedor poderia não entregar as vacinas em tempo hábil e outro teria doses mais precocemente do que outros. Ficamos para trás. Se hoje nenhuma empresa solicitou registro na Anvisa é porque o governo não demonstrou interesse em adquirir enquanto há uma lista de países batendo à porta dos laboratórios para pedir vacina — comenta Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
A avaliação foi confirmada pelo próprio CEO da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo, que afirmou em entrevista à revista Veja que a empresa buscou o governo federal e manteve reuniões com os ministérios da Saúde e da Economia, mas não teve manifestação de interesse. Se houvesse a intenção, ele disse, a Pfizer entregaria doses ao Brasil entre dezembro e janeiro.
— A Pfizer fez uma proposta formal de fornecimento da vacina ao Brasil, sujeita à aprovação regulatória. Essa proposta permitiria vacinar milhões de brasileiros e especificava um prazo para o governo nos responder. Mas nós nunca recebemos uma resposta formal do governo brasileiro, nem pelo sim nem pelo não — declarou. — Pela quantidade que nós conseguimos produzir, sobretudo nesta primeira etapa, não vai ter vacina suficiente para o mundo todo. Trabalhamos com diferentes governos para entender quais seriam os primeiros a receber a vacina e alocar o quantitativo necessário nos diferentes países. É assim que a companhia já assinou acordos com Estados Unidos, Japão, Canadá, países da Comunidade Europeia, Chile, Peru, Costa Rica, entre outros — acrescentou Murillo.
O Ministério da Saúde afirmou a GZH que "prossegue com as negociações para efetuar os contratos, a fim de disponibilizar o quanto antes a maior quantidade possível de doses de vacina para imunizar a população brasileira". A pasta cita que o Brasil possui, atualmente, mais de 300 milhões de doses de vacinas garantidas.
Armazenamento
O ministro Eduardo Pazuello declarou, em audiência na Câmara dos Deputados, que o governo descartaria vacinas que exigissem armazenamento em ultracongeladores porque a logística seria demasiado complicada, um problema também enfrentado por outras nações, mas que souberam contornar o obstáculo. É o caso da Pfizer e da Moderna.
No entanto, o ministério voltou atrás e fechou parceria com a Pfizer neste mês para adquirir 70 milhões de doses até o fim de 2021. Mesmo assim, o atraso foi sentido no total de doses a serem repassadas: no primeiro semestre, seriam apenas 8,5 milhões, para que, no segundo semestre, cheguem 61,5 milhões. A maioria das vacinas contra o coronavírus exige duas doses para cada pessoa.
— Quando a Pfizer passou a demonstrar que tinha uma vacina eficaz, países que já começaram a vacinação procuraram a empresa e não colocaram empecilhos na negociação, diferentemente do Brasil — acrescenta Chebabo, vice-presidente da SBI.
Em nota enviada a GZH, a Pfizer afirma que segue em negociações com o governo brasileiro e tece, de forma indireta, uma resposta às críticas de que atrasa o pedido de uso para a Anvisa. A farmacêutica informa que o pedido de uso emergencial exige detalhes do quantitativo de doses e cronograma que será utilizado no país, “pontos que só poderão ser definidos na celebração do contrato definitivo”, que as condições exigidas pela Anvisa pedem análises específicas da empresa para o Brasil, o que atrasa a entrega, e que a submissão contínua de doses “é o processo mais célere neste momento”. Na prática, não haverá solicitação para uso emergencial, apenas para registro definitivo.
Sobre os ultracongeladores, o ministério diz contar com a parceria com universidades para que disponibilizem equipamentos com capacidade para até -80°C. Também está fechando parceria com o Ministério da Agricultura para utilização dos seus equipamentos.
No Rio Grande do Sul, diversas universidades colocaram à disposição seus ultrafreezers para ajudar na estocagem de vacinas que necessitem de temperaturas muito baixas de conservação. Somente a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) dispõe de 20 equipamentos, de 550 litros cada, o que daria para armazenar 4 milhões de doses.
Vacina chinesa
O Brasil possui ainda um acordo com a Covax Facility que prevê vacinas de diferentes laboratórios para imunizar 10% da população. Em outra frente, após críticas pela ausência no plano de imunização da CoronaVac, produzida pela Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, o Ministério da Saúde anunciou a inclusão da vacina.
A gente poderia ter feito uma vacina de vírus inativado (mesma tecnologia usada para a CoronaVac), a coisa mais simples de fazer. Só precisa de uma fábrica grande e cientistas gabaritados, o que a gente tem. Isso talvez seja o maior escândalo: o fato de não produzirmos uma vacina nossa é um absurdo
CRISTINA BONORINO
Professora de Imunologia na UFCSPA
Contatado por GZH, o Butantan afirmou que recebeu o protocolo de intenção de compras pelo governo federal, informou um cronograma e a previsão de fornecer 46 milhões de doses, mas que o governo federal ainda não respondeu para firmar o acordo oficial.
Em nível regional, o Estado de São Paulo firmou parceria entre Butantan e a chinesa Sinovac para fabricar a CoronaVac. Já Paraná e Bahia fecharam acordo com o Instituto Gamaleya para vacinar com a Sputnik V, desenvolvida na Rússia – também usada na Argentina.
Para Cristina Bonorino, professora de Imunologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e colunista de GZH, o Butantan poderia ter sido aproveitado para a produção de uma vacina 100% nacional.
— Se tivéssemos feito investimento, teríamos uma vacina nossa, feita pelo Butantan. O Brasil teria condições para produzir para si e ainda de vender vacina para toda a América Latina. A gente poderia ter feito uma vacina de vírus inativado (mesma tecnologia usada para a CoronaVac), a coisa mais simples de fazer. Só precisa de uma fábrica grande e cientistas gabaritados, o que a gente tem. Isso talvez seja o maior escândalo: o fato de não produzirmos uma vacina nossa é um absurdo — afirma a cientista.
Boas notícias em 2021
O atraso em comprar vacinas, afirmam cientistas, adia o início da campanha de vacinação, resulta em mais mortes e posterga, ainda, a retomada da economia. A partir de agora, analistas apontam que cabe ao governo correr para finalizar acordos com o maior número de laboratórios possível, assegurar a compra de insumos (seringas, agulhas e ampolas), começar a campanha de conscientização dos brasileiros sobre a importância de se vacinar e parar de assustar a população sobre eventuais riscos de imunizar, que são, estatisticamente, irrelevantes.
— No momento, o governo precisa viabilizar a distribuição das vacinas no território, garantir os insumos e treinar na ponta. Como o governo vai garantir que uma pessoa tem comorbidade? Vai ser por atestado médico? Muitas salas de vacinação precisam ser reabilitadas também. E precisa ter uma estratégia de comunicação social para chamar as pessoas a serem vacinadas, mas o governo fica apontando temas periféricos, como efeitos colaterais. Deveria já ter uma campanha destacando a importância de se vacinar — afirma o médico epidemiologista Guilherme Werneck, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
A GZH, o ministério respondeu que o pregão para aquisição de mais de 330 milhões de seringas e agulhas seria realizado nesta terça-feira (29) — a pasta conseguiu adquirir apenas 3% dos insumos necessários. Também garantiu que já está em andamento a "capacitação dos profissionais para as diferentes plataformas tecnológicas ofertadas". Quanto ao lançamento da campanha e início da vacinação contra a covid-19, a pasta informou que "só será possível após o registro dos imunizantes junto à Anvisa e disponibilização das vacinas pelos laboratórios".
Precisa ter uma estratégia de comunicação social para chamar as pessoas a serem vacinadas, mas o governo fica apontando temas periféricos, como efeitos colaterais. Deveria já ter uma campanha destacando a importância de se vacinar
GUILHERME WERNECK
Vice-presidente da Abrasco e professor da UERJ
O Brasil ainda não tem data prevista para o início da vacinação contra a covid-19, enquanto o governo de São Paulo projeta começar em 25 de janeiro. O ministro da Saúde já projetou começar em dezembro, janeiro, fevereiro e março. Ainda assim, o início de 2021 deve trazer boas notícias.
Em entrevista à Rádio Gaúcha na manhã de segunda-feira (28), o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Marco Krieger, afirmou que a instituição irá pedir até semana que vem a autorização para o uso definitivo (sem o pedido para uso emergencial) da vacina de Oxford no Brasil.
A produção das doses, independentemente do sinal verde da Anvisa, está prevista para se iniciar em 20 de janeiro, de forma escalonada, conforme Krieger. Em outra entrevista, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, afirmou que a previsão é de fabricação de 30 milhões de doses até fevereiro, 70,4 milhões entre março e agosto e mais 100 milhões após este período, totalizando 210 milhões de doses da vacina de Oxford.
Até que essas doses de fato sejam aplicadas nos brasileiros, cientistas pedem que a população ouça médicos, e não políticos, e foque no fato de que eventuais reações alérgicas da vacina são casos raríssimos frente ao quantitativo de doses já aplicadas.
— Quantas pessoas morreram pela vacina até agora e quantas morreram no mesmo período por covid? A vacina pode ter efeitos adversos, assim como remédios, mas peço que comparem com a letalidade da covid. Temos 700 mortes por dia no Brasil — diz Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).