Um lockdown de duas semanas em Porto Alegre evitaria quase 47 mil infecções por coronavírus e salvaria 938 vidas, segundo estudo de Álvaro Krüger Ramos, pesquisador e professor de matemática pura e aplicada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O cálculo projeta ainda que um lockdown de três semanas teria um impacto ainda maior: salvaria 1.383 pessoas e evitaria 69.128 casos.
O matemático ainda calculou o que seria mais eficiente: três lockdowns de 14 dias, que poupariam 1.791 vidas. O modelo mostrou que é melhor uma ação mais duradoura, capaz de reduzir ao máximo o número de casos ativos de coronavírus.
Até a manhã desta quinta-feira (18), a capital gaúcha acumulava cerca de 122 mil casos confirmados de coronavírus e mais de 2,9 mil mortes. Portanto, um lockdown com menor duração, de 14 dias, pouparia a vida de um número de habitantes que representa quase um terço do total de mortos pelo Sars-CoV-2 na cidade desde o início da pandemia.
O número de infecções impedidas e de vidas salvas é conservador e parte do pressuposto de que 2% das pessoas com coronavírus morrem. Médicos afirmam que, com a sobrecarga hospitalar e a grande fila de espera por um leito, cresce o risco de morte para um indivíduo doente.
Para a análise de Ramos, um lockdown pressupõe que ao menos 60% da população de Porto Alegre fique em casa. Hoje, em bandeira preta, o isolamento no Rio Grande do Sul está abaixo dos 40%, segundo dados da consultoria InLoco – as estatísticas apontam quebra do isolamento após o indivíduo sair a apenas 450 metros de distância da residência.
Ter 60% da população em casa é um índice atingível: em março, Porto Alegre ficou com índices de isolamento social nesse patamar por algumas semanas. Isso foi o responsável por termos achatado a curva da epidemia e ficado março, abril e maio sob controle na cidade
ÁLVARO KRÜGER RAMOS
Pesquisador e professor de Matemática Pura e Aplicada na UFRGS
— Ter 60% da população em casa é um índice atingível: em março, Porto Alegre ficou com índices de isolamento social nesse patamar por algumas semanas. Isso foi o responsável por termos achatado a curva da epidemia e ficado março, abril e maio sob controle na cidade — afirma o matemático, destacando que, para a medida ter efeito, governos precisam fornecer suporte econômico à população.
Ramos é um dos autores do estudo sobre a predominância dos casos de coronavírus pela cepa P1, analisada originalmente em Manaus, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Em agosto, ele também produziu outro estudo segundo o qual Porto Alegre chegaria a 37 mil infecções em outubro, caso flexibilizasse as atividades de comércio – o que de fato aconteceu logo no início do mês.
— O lockdown diminui a circulação dos casos ativos. Quanto mais diminuirmos o número de casos ativos, mais voltamos atrás no tempo. Aí, quando as pessoas voltam às atividades, há menos chance de pegar o vírus. Estamos agora em um segundo momento da pandemia, com a variante P1. Onde ela entrou, houve crescimento exponencial, como se a pandemia tivesse reiniciado — afirma Ramos.
A análise surge no momento em que a capital gaúcha vive o colapso das unidades de terapia intensiva (UTIs), cuja lotação é de cerca de 115%. Com a falta de vagas, Porto Alegre tinha, na manhã desta quinta-feira (18), 340 pessoas em estado muito grave de saúde na fila de espera por um leito intensivo. Com 15 dias transcorridos, março já era o mês com mais mortes por coronavírus no Estado.
Em meio ao grave cenário, cada vez mais profissionais da saúde e dirigentes hospitalares rogam por um lockdown para frear o crescimento exponencial da pandemia. De outro lado, comerciantes e empresários solicitam a retomada das atividades, com protocolos, para evitar o desemprego. A cogestão da pandemia voltará na próxima segunda-feira (22) no Rio Grande do Sul.
Estamos agora em um segundo momento da pandemia, com a variante P1. Onde ela entrou, houve crescimento exponencial, como se a pandemia tivesse reiniciado
ÁLVARO KRÜGER RAMOS
Pesquisador e professor de Matemática Pura e Aplicada na UFRGS
A efetividade de um lockdown durante o avanço da pandemia tem o apoio de cientistas: como o vírus se transmite no contato entre pessoas, reduzir a circulação de todos corta a corrente de contaminação. Em Araraquara (SP), um lockdown de 10 dias reduziu em 50% a transmissão da covid-19. A polêmica reside no ônus econômico da medida.
O empresariado argumenta que não deveria ser penalizado com restrições porque, em sua visão, as causas da piora da pandemia não são a movimentação no comércio, mas as aglomerações em locais públicos não fiscalizadas pelos governos.
O que dizem outros especialistas
O estudo de Ramos não foi publicado em revista científica nem revisto por pares. GZH submeteu a análise a especialistas que não participaram da pesquisa para que comentassem sobre o trabalho.
A pesquisa tem o mérito de dimensionar os impactos de um maior isolamento social usando bons indicadores de projeção matemática, avalia a estatística Suzi Camey, professora de Epidemiologia na UFRGS.
— Não há dúvida de que o lockdown reduz casos. A maior fonte de contaminação é pessoa com pessoa. Se eu fecho o comércio, impeço parte desses contatos, então, reduz a transmissibilidade. Agora, o que temos que cuidar é como fazer esse lockdown. Essas medidas, sem um controle forte, dependem da adesão da população. Quando você joga a responsabilidade para a população e você passou um ano informando mal, não dá para garantir que haverá efeito — afirma.
Suzi é também integrante do Comitê Científico que se reúne com integrantes do Palácio Piratini para aconselhar o governo do Estado na condução da pandemia. Ela faz a ressalva de que o governo precisa oferecer ajuda à população se quiser mantê-la em casa.
Mandar as pessoas ficarem em casa e não oferecer nada em troca é como dizer para ela morrer de fome em vez de morrer na fila de hospital por covid
SUZI CAMEY
Professora de Epidemiologia na UFRGS
— Mandar as pessoas ficarem em casa e não oferecer nada em troca é como dizer para elas morrerem de fome em vez de morrerem na fila de hospital por covid. Entra na discussão o governo federal, que é quem tem caixa para oferecer essa moeda de troca. Governos e municípios pressionam pela vacina, mas também deveriam estar pedindo o suporte social para as pessoas aderirem ao distanciamento — observa.
Nesta quinta-feira, um grupo fez um protesto em frente ao Palácio Piratini contra as medidas de restrição e o lockdown. Para a arquiteta Suzana Trevisan, 60 anos, entrevistada no local por GZH, o último ano tem sido difícil:
— Tudo está difícil. Eu tenho imóvel alugado que aluguei pela metade para não perder. Meu posicionamento é que, se existem protocolos, eles devem ser usados. Mas não podem impedir de trabalhar.
A médica Lucia Pellanda, professora de epidemiologia e reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), destaca que lockdown envolve fechar comércios e impedir a circulação de pessoas na rua, algo bem mais duro do que a bandeira preta, na qual há restrições aos comércios, mas a população não é proibida de sair de casa.
— É um estudo de modelagem bem interessante. Quando estamos em um momento de esgotamento total como esse, nós, da saúde, só vemos como saída o grande isolamento ou vacinação em proporção bem grande. Tudo poderia ter sido evitado se todos tivessem aderido aos cuidados gerais de máscara, distanciamento e higiene antes. Mas, agora, em fase de colapso, caos e aumento absurdo da mortalidade, precisamos cada vez mais de um remédio mais agressivo — diz a epidemiologista.