O Rio Grande do Sul já visualiza os efeitos da bandeira preta das últimas três semanas, mas a leve recuperação é insuficiente para o sistema de saúde suportar a retomada da cogestão, que permite flexibilização das atividades, na próxima segunda-feira (22). Segundo seis analistas ouvidos por GZH, a medida, que deve ser anunciada pelo governador Eduardo Leite nesta sexta-feira (19), deve gerar mais infecções, internações e mortes.
Com a bandeira preta, o distanciamento social cresceu, mas ainda ficou em patamares distantes do necessário para uma melhora efetiva no controle da covid-19. Durante o período, o índice de pessoas sem sair de casa no Rio Grande do Sul subiu, mas ficou, no geral, abaixo dos 40%, segundo dados da consultoria InLoco. O ideal seria entre 60% e 70%.
Ainda assim, o maior distanciamento resultou na queda pela metade das novas infecções por coronavírus no Estado. O número de internados em leitos clínicos e de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) parou de subir, mas analistas afirmam que isso ocorre porque hospitais estão sem vagas livres. As mortes, o último indicador a mudar, seguem batendo recordes.
— A bandeira preta funcionou um pouco. Se não tivesse, os casos estariam decolando e as hospitalizações não estariam estabilizando. Mas não há nenhuma evidência hoje que sustente a flexibilização de qualquer medida. A retomada é absolutamente contrária a qualquer visão da epidemiologia e da ciência brasileira. O Rio Grande do Sul precisaria de mais duas semanas totalmente fechado para ter algum efeito sustentável sobre a transmissão do vírus — avalia Pedro Hallal, professor de Epidemiologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e integrante do Comitê Científico que aconselha a tomada de decisões do Palácio Piratini.
Na sexta-feira passada (12), a média móvel era de 2,8 mil casos por dia no Estado, contra 5,5 mil na sexta-feira da semana anterior. O cenário segue em patamares altos, próximos ao registrado em novembro e janeiro.
O uso geral de leitos clínicos e de UTI por pacientes com coronavírus começou a estabilizar, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES). Há cerca de uma semana, são aproximadamente 6,1 mil pacientes suspeitos ou confirmados com a doença em leitos clínicos, dedicados a casos graves.
As UTIs, para pacientes gravíssimos, também estabilizaram na última semana, mas a ocupação geral dos leitos está há dias em 110%. Como resultado, a fila por leito não reduz: faz uma semana que faltam aproximadamente de 300 vagas de UTI no Rio Grande do Sul – o total não contabiliza pedidos de Porto Alegre, Caxias do Sul e Pelotas.
— Houve um efeito importante da bandeira preta na redução no número de casos, mas o parâmetro principal são as UTIs, que trabalham com a vida ou o desfecho fatal de uma pessoa. A mitigação deve ser feita com medidas prolongadas até que os números de casos e de óbitos caiam e alcancem um número 70% a 80%, abaixo do observado agora. A partir daí é que se poderia começar a pensar na retirada de restrições — avalia o médico Luciano Goldani, professor de doenças infecciosas da UFRGS e infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
A explicação para o uso leitos clínicos ter parado de subir é sobretudo por começarem, agora, a registrar falta de vagas para receber pacientes assim como as UTIs, avalia Suzi Camey, professora de Epidemiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e também integrante do Comitê Científico.
— É muito pouco provável uma estabilização na ocupação dos leitos clínicos. Pode não ser um esgotamento generalizado como nas UTIs, mas um esgotamento pontual, o que faz o indicador parar de subir. Já há relatos de pacientes mandados para casa e sendo acompanhados pelos médicos de casa. Só poderemos dizer que começaremos a controlar quando leitos clínicos caírem de forma consistente. Hoje, se tu perguntares para qualquer especialista em epidemiologia e infectologia, a resposta será a mesma: nada justifica o aumento de mobilidade agora. A gente sabe que qualquer setor que abra vai ter um impacto na saúde — afirma Suzi.
O médico Alexandre Zavascki, chefe do serviço de Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor na UFRGS, defende que a reabertura ocorra com a queda no número de casos e de óbitos.
— Temos que salvar vidas. Para isso, é preciso que hospitais saiam do colapso. Para sair do colapso, é preciso que cheguem menos doentes a ponto de esvaziarmos as filas de espera. Impulsionar novos casos e novas contaminações em um cenário completamente colapsado não é de forma alguma seguro. Sei que as pessoas acham que estão salvando a economia, mas elas não estão, pois não vamos nos livrar do vírus, vamos continuar com hospitais colapsados e, em algum momento, haverá mortandade maior ainda. O colapso da saúde está aí e o colapso funerário é bem possível, se os números continuarem crescendo — afirma Zavascki.
O cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise covid-19, também afirma que a retomada neste momento é perigosa e cita que a sociedade chegou a um momento crucial de decisão sobre o futuro da epidemia: um pico ainda maior ou uma queda.
— Quando os leitos de UTI esgotam, não há mais onde internar as pessoas e, assim, o índice para de crescer, porque começam a segurar as pessoas na emergência. Se lotam as emergências, também não há espaço para aumento da fila de espera. Precisamos liberar toda a fila de pessoas aguardando UTI e começar a ver uma redução importante nas internações. Estabilização não é suficiente para voltar ao normal — avalia Schrarstzhaupt.
Os analistas entrevistados pela reportagem destacam que, para que a população fique em casa, governos precisam oferecer algum tipo de auxílio.
— Mandar as pessoas ficarem em casa e não oferecer nada em troca é como dizer para elas morrerem de fome em vez de morrerem na fila de hospital por covid. Entra na discussão o governo federal, que é quem tem caixa para oferecer essa moeda de troca. Governos e municípios pressionam pela vacina, mas também deveriam estar pedindo o suporte social para as pessoas aderirem ao distanciamento — observa Suzi Camey, professora de Epidemiologia na UFRGS.
Desempenho do RS se assemelha ao de Portugal
Em 2020, Portugal foi visto como exemplo de combate à pandemia na Europa, semelhante a como o Rio Grande do Sul foi tomado como exemplo brasileiro de sucesso ao longo do ano passado. Nos primeiros meses da pandemia, a nação europeia teve confinamentos espontâneos da população e lockdown, duas medidas que alçaram o país à condição de ilha de números baixos em um continente que agonizava.
No entanto, depois de afrouxamento da circulação de pessoas para as festas de fim de ano, os índices no início de 2021 saltaram a ponto de atingirem o maior ritmo de infecções da Europa. A resposta do governo foi decretar, em janeiro, um novo lockdown, que foi bem-sucedido no controle da epidemia.
Por terem população e uma curva de crescimento de óbitos semelhantes, o cientista de dados e professor no Instituto de Informática da UFRGS João Luiz Dihl Comba fez uma análise comparativa da pandemia no Rio Grande do Sul e em Portugal.
— Quando Portugal começou a ter uma curva de óbitos com forte tendência de alta, foi iniciado lockdown severo. Aqui no Rio Grande do Sul foi mais ou menos o mesmo: quando começou a haver a subida no número de óbitos, aumentamos as medidas restritivas. Os portugueses começaram a identificar estabilização um mês depois do início do lockdown e, em dois meses, viram o número de óbitos diários cair para cerca de 20, conseguindo dominar a pandemia. Este é um bom indicativo de como é que a coisa poderia evoluir aqui, mas precisaríamos de restrições pelo menos até o final de março para notar alguma melhora — afirma Comba.
Cálculo do cientista de dados prevê que o total de óbitos do Rio Grande do Sul supere o de Portugal neste domingo (21). Também projeta que o Estado chegue a 20 mil óbitos por coronavírus em 30 de março. Nesta sexta-feira, havia 16.507 mortes pela covid-19, segundo monitoramento da Secretaria Estadual de Saúde (SES).