O Rio Grande do Sul registrou em março, auge da pandemia, mais mortes por todas as causas do que nascimentos, um fenômeno jamais observado desde 2003, período de início de dados disponíveis para análise. Foi o único Estado do Brasil a verificar encolhimento da população neste mês.
Foram 15.844 mortos por todas as causas, incluindo coronavírus, e 12.006 nascimentos no Rio Grande do Sul em março, o que resultou na redução de mais de 3,8 mil pessoas na população gaúcha. A mortalidade foi tão alta que o número de óbitos foi 137% maior do que em março do ano passado.
A análise de GZH é um cruzamento de dados preliminares do Portal da Transparência do Registro Civil, abastecido pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A tendência de março se repete, até o momento, em abril. Segundo dados levantados até este sábado (17) por cartórios gaúchos, 5.484 pessoas nasceram e 6.508 faleceram no Rio Grande do Sul neste mês, o que resulta em uma redução de cerca de 1 mil pessoas na população gaúcha.
—Não tenho conhecimento de outro momento na história em que o número de óbitos tenha superado o de nascimentos (no RS). Em março de 2020, tivemos 6.677 óbitos no Rio Grande do Sul. No mesmo mês de 2021, pulamos para 15.844. Março de 2021 foi o ponto fora da curva — diz Sidnei Hofer Birmann, presidente da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen-RS).
A diferença entre a natalidade e a mortalidade da população vem caindo ao longo dos anos no Brasil como resultado do que os especialistas chamam de “transição demográfica”, que resultou na queda de nascimentos desde os anos 1960 por motivos como urbanização, entrada cada vez mais expressiva da mulher no mercado de trabalho, avanço dos métodos contraceptivos e maior compreensão da população sobre como usá-los adequadamente. Contudo, mesmo com a transição demográfica ocorrendo há décadas, jamais havíamos registrado cenário tão brusco no Rio Grande do Sul como o de março e, até o momento, de abril, em que os óbitos superaram os nascimentos.
Analistas pontuam que o cenário gaúcho resulta do grande número de vítimas do coronavírus, da sobrecarga do sistema hospitalar, o que prejudicou atendimentos a outras doenças, e também do comportamento de parte da população diante da pandemia.
—Não tem a ver só com o vírus, mas com as pessoas que não acreditam no vírus, com comportamento suicida e descrente da ciência. Temos pessoas que estão indo aos hospitais para procurar assistência médica, mas não recebem a atenção adequada porque o sistema de saúde não está dando conta — diz Ricardo de Sampaio Dagnino, demógrafo, geógrafo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ele destaca que a pandemia e a alta mortalidade de 2021, com a manutenção da progressiva queda de nascimentos, pode acelerar o processo de redução do número de habitantes no Estado.
—A previsão do IBGE é de que a população do Rio Grande do Sul começará a diminuir em 2035. Isso foi projetado em 2018. Com a redução da natalidade que observamos, é possível que a pandemia cause um efeito de aceleração da diminuição populacional. Está morrendo mais gente e nascendo menos — alerta Dagnino.
Ele chama atenção para outros desdobramentos possíveis da pandemia no longo prazo. Um deles é sobre as famílias, diante das incertezas sanitárias e econômicas, somadas a um sentimento de “desesperança”, decidirem adiar ou cancelar os planos de ter filhos. Seria um cenário de queda mais acentuada dos nascimentos. Outro aspecto que poderá causar fenômenos demográficos no futuro diz respeito à mobilidade humana.
— Será que os imigrantes que vinham para o Brasil, agora que viramos um celeiro de variantes, vão continuar vindo? E os brasileiros que emigravam para Portugual, Estados Unidos, serão bem recebidos? Provavelmente não. Isso afeta diretamente. A migração tem papel importante na renovação da população — avalia Dagnino.
O especialista ressalta que os dados de registro civil da Arpen são preliminares. A estatística oficial de óbitos e nascimentos costuma ser publicada após dois anos de análises e revisão de dados, com detalhamento e cruzamento de informações, em um trabalho coordenado pelo Ministério da Saúde.
Ao longo do primeiro ano da pandemia, o Rio Grande do Sul era o Estado com o menor excesso de óbitos por todas as causas do país, segundo análise do Comitê de Dados do Palácio Piratini – ou seja, onde menos as pessoas morriam a cada mês em comparação ao esperado.
Mas o bom desempenho do Estado pode ser prejudicado devido ao grande aumento de mortes neste primeiro semestre, avalia a médica epidemiologista Lucia Pellanda, professora na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do Comitê Científico do governo do Estado.
— Éramos o Estado com o menor excesso de óbitos porque nos meses iniciais (da pandemia) tínhamos feito mais isolamento, o que reduziu as mortes por causas respiratórias e externas. Mas as mortes por covid-19 neste início de ano e o esgotamento do sistema de saúde trouxe um aumento muito grande. A gente acha que houve aumento de morte por doença cardiovascular no geral e câncer, mas não dá para saber ainda porque esses números demoram a ser consolidados — diz Lucia.