Durante 10 dias de férias entre Cuba e Panamá, o economista Marco Aurélio Cardoso intercalou a leitura de extensos relatórios sobre a situação fiscal do Rio Grande do Sul com as 104 páginas do romance A Humilhação, do escritor norte-americano Philip Roth. A crise existencial do personagem principal da trama de Roth — um ator que perdeu a capacidade de atuar — parece não ter afetado Cardoso, o escolhido pelo governador eleito Eduardo Leite (PSDB) para chefiar as finanças do Estado a partir de 2019.
O atual superintendente de crédito do BNDES desembarca semana que vem em Porto Alegre. Será sua primeira visita à Capital. Aos 46 anos, solteiro e sem filhos, Cardoso ainda está vinculado ao banco e só irá efetivar a transferência definitiva no final do ano. Até lá, fará reuniões periódicas com a equipe de transição, dando início à construção de um pacote de medidas para tentar reverter o desequilíbrio nas contas públicas. Cardoso tem em mente as quatro áreas onde precisa concentrar o foco: dívida com a União, despesas com pessoal, a matriz tributária e a política de investimentos.
Em 30 minutos de conversa com GaúchaZH, o futuro secretário da Fazenda defendeu mudanças profundas na gestão do Estado. Sem evitar polêmicas, não descartou aumento da contribuição previdenciária e disse que é "uma obrigação" mexer no plano de carreira dos servidores. Ele admitiu que investimentos em infraestrutura dependerão de recursos da iniciativa privada e que pode atrasar o repasse do duodécimo, compartilhando o atraso nos salários com os demais poderes. Confira a seguir a íntegra da entrevista:
O que o senhor conhece da realidade fiscal do Rio Grande do Sul?
Conheço de perto a situação fiscal dos Estados como um todo. É uma área à qual me dedico há pelo menos uma década. Há uma situação sistêmica, de vários Estados e boa parte dos municípios, de alto grau de endividamento, comprometimento das receitas com despesas de pessoal, déficit previdenciário e estoques de precatórios. Enfim, existem muitas questões comuns a todos e que, no Rio Grande do Sul, são das mais complexas. Inquestionavelmente, é um dos casos mais desafiantes do ponto de vista da situação fiscal.
O que lhe pareceu mais desafiador e urgente?
Não existe solução única nem problema único. Tem questões mais macro. Primeiro, a dívida. Precisamos ter uma solução de maior estabilidade para a trajetória de pagamento nos próximos anos. Não podemos continuar convivendo apenas com uma liminar. O que existe disponível é o Regime de Recuperação Fiscal, então é uma agenda da primeira hora. A despesa com pessoal também é bastante séria e pode ser tratada mediante articulação com a reforma previdenciária nacional. Este será um tema urgente e que se impõe na realidade do país, assim como uma revisão das legislações estaduais. Para os próprios servidores é muito ruim conviver com a situação de não saber quando vão receber os salários. Estamos falando de mais de 300 mil pessoas, com todas suas famílias, e o impacto que isso gera. É uma área muito relevante e temos de ver tanto a questão previdenciária quanto o regime dos ativos.
Como vamos chegar em um governo que tem atrasos de pagamento e não avaliar o quadro que existe e dialogar com a sociedade e as categorias e colocar quais as dificuldades que temos? Então não é nem um ato de vontade, me parece uma obrigação olhar essas despesas.
Como equacionar necessidade de investimentos com a penúria fiscal?
Há uma questão emergencial, a necessidade da renovação da majoração temporária do ICMS. A curto prazo, é importante para o Estado e para centenas de prefeituras. A gente sabe o sacrifício que é para a população, mas é fundamental que se tenha esse tempo de dois anos para pensar numa reformulação tributária mais ampla. Esses três temas fiscais são muito sérios.
E há uma agenda com outras instituições, de promoção do desenvolvimento e recuperação de algum investimento. Não com recursos fiscais, porque a gente não consegue antever espaço relevante para isso. Mas mediante algum modelo com concessões e parcerias público-privadas para ajudar a reativar e incrementar a economia.
Está no seu radar aumentar a contribuição previdenciária dos servidores?
É uma discussão possível de ser feita. Temos de observar qual é o plano de Previdência que o futuro governo federal encaminhará. Algum tipo de medida que dê receitas a curto prazo terá de ser discutido. Se será via algum tipo de compensação federal ou alguma revisão nas contribuições, tudo isso é possível de ser discutido, afinal de contas estamos falando de mudanças legislativas. Não são atos da vontade do secretário ou do próprio Executivo. São debates e escolhas que a gente terá de fazer com a sociedade.
A manutenção do atual quadro previdenciário é insustentável?
Os números falam por si. Pelo padrão do Tesouro Nacional, o Rio Grande do Sul passa ou fica na borda dos 70% da receita corrente líquida com despesa de pessoal. Há uma participação muito grande de inativos e é uma trajetória que piora até por um lado positivo, que é o desenvolvimento humano. As pessoas vivem mais e certamente geram uma pressão previdenciária. É um lado desagradável de uma notícia boa.
As aposentadorias especiais contribuem para esse quadro. Professores e policiais se aposentam mais cedo que as demais categorias. O senhor pretende rever isso?
Eu não gostaria de comentar questões específicas de categoria nenhuma. A gente ainda está iniciando a transição e procuro ter muita responsabilidade em fazer determinados comentários sobre coisas que ainda não foram analisadas em detalhe e nem discutidas com o governo como um todo. Não se trata de eleger A ou B para mexer.
No quadro geral, acredita ser necessário mudar o plano de carreira dos servidores?
Isso já foi colocado pelo governador durante a campanha. Temos de estudar o regime de benefícios dos servidores como um todo. Não é nem uma decisão, é uma obrigação. Como vamos chegar em um governo que tem atrasos de pagamento e não avaliar o quadro que existe e dialogar com a sociedade e as categorias e colocar quais as dificuldades que temos? Então não é nem um ato de vontade, me parece uma obrigação olhar essas despesas.
Por ser de fora e não ter nenhum ligação com o Rio Grande do Sul, o senhor acredita que será mais fácil adotar medidas duras e resistir às pressões das corporações?
Não vejo propriamente por esse lado. Sou um servidor público do Estado brasileiro por vocação. É o que gosto de fazer, e quem descobriu o que gosta de fazer na vida sabe a força que isso tem. Passa a ter uma automotivação que é mais forte do que qualquer outra coisa. Gosto de desafios e acredito no governador, que está comprometido com o tamanho desse desafio.
O senhor está disposto a fazer concessões no projeto que mantém as atuais alíquotas de ICMS? Setores na Assembleia já falam, por exemplo, em reduzir a carga sobre o gás de cozinha.
A posição do governador foi clara no sentido de postergar o regime atual por mais dois anos e essa é a situação que a gente entende como necessária nesse momento, contando com a compreensão de todos.
Qual a importância da adesão ao Regime de Recuperação Fiscal? As atuais condições do contrato são boas ou o senhor pretende renegociar algo?
O Estado ainda não aderiu ao regime. A adesão é um acordo que pressupõe a aprovação das duas partes. Começou com a atual gestão. Existe um documento produzido que certamente serve de ponto de partida, mas ele não está negociado, aprovado, portanto, não existe formalmente. Trata-se de uma questão que tem de ser discutida na primeira hora com o Tesouro Nacional, para construir de fato a adesão.
O senhor conhece alguém da equipe econômica do governo federal? Tem alguma interlocução lá ou vai começar as negociações do zero?
A equipe ainda está sendo anunciada. Não vou aqui citar nomes, mas certamente várias das pessoas que estão elencadas são pessoas com as quais tive relações profissionais. Enquanto secretário, lidei com secretários de outras cidades e do meu Estado de origem e com o Tesouro Nacional. Seja no BNDES, seja na prefeitura, minha ligação com o Tesouro Nacional é permanente.
É factível colocar os salários em dia no primeiro ano de governo?
É um compromisso que o governador colocou. Temos ciência dele e perseguiremos essa meta. É certo que nesse momento não temos nem a certeza de quantas folhas ficarão para o ano que vem. Há muita incerteza sobre os salários de dezembro e sobre o 13º desse ano, portanto são obrigações que a gente certamente terá de cumprir no ano que vem. Mantenho o compromisso dele em mente e trabalharemos o máximo possível para conseguir atingi-lo.
O atual governo fez uma opção: repassa integralmente o duodécimo dos poderes, que têm os maiores salários e sempre receberam em dia nos últimos quatro anos, enquanto parcela ou paga com atraso os servidores do Executivo. O senhor vai manter essa política ou pretende socializar a pindaíba?
Essa é uma pergunta pertinente. Inclusive não só no Rio Grande do Sul, como em outros Estados que enfrentaram atrasos salariais, essa discrepância de procedimento gera insatisfação na sociedade, e acho que é justa. Acredito que seja importante deixar isso muito transparente, que de fato isso está sendo praticado e por que, se é uma determinação legal, qual é o objetivo. Acho que é um tema a se conversar. Não temos como estabelecer o que vai ser feito ou deixar de ser feito, mas sabemos que é algo questionado por diferentes setores da sociedade. De fato, o que a gente quer, ao longo do governo, e no primeiro ano, é colocar todo mundo recebendo nas datas previstas.
Que órgãos imagina privatizar?
Esse é um tema sobre o qual o governador já falou explicitamente. Ele entende que o Banrisul é o principal ativo do Estado que deve ser mantido sob controle estadual. É em cima dessa premissa que a gente tem de trabalhar, inclusive nas interlocuções com o Tesouro Nacional sobre o regime de recuperação, porque é um tema que sempre é levantado. A privatização tem de ser olhada de uma maneira mais ampla. Não faz sentido simplesmente vender uma empresa para cobrir um furo de caixa. A privatização passa, primeiro, pela avaliação de que a atividade em questão será prestada para a sociedade de maneira tão ou mais eficiente e, segundo, de que eventuais recursos auferidos ou economizados por não se ter mais aquele gasto devem ser direcionados para algo de longo prazo, sustentável.
Pretende submeter as privatizações a plebiscito ou acha melhor tirar essa previsão da Constituição?
Questões formais, de venda ou não, são discussões legislativas e têm a ver com o governo como um todo. Há essa questão da Constituição estadual sobre o plebiscito, mas entendo que, uma vez identificada oportunidade de venda, a condução formal disso transcende a opinião do secretário de Fazenda. Não é uma decisão dele.
O governador eleito já disse que não é adepto da reeleição e foi assim na prefeitura de Pelotas. Quatro anos são suficientes para resolver a crise do Estado?
Dá para fazer muita coisa. Claro que são ciclos que não dependem só da nossa administração. Tem a ver com a evolução da economia nacional como um todo. Mas será um período de intenso trabalho que pode ser, sim, suficiente para uma transformação mais profunda.
O senhor foi secretário municipal da Fazenda no Rio em condições bem melhores e, atualmente, tem um cargo importante no BNDES. Por que aceitou o convite para trabalhar em um Estado falido?
Posso resumir isso de três maneiras. Encontrei o que gosto de fazer profissionalmente. Acho que tenho experiência e capacidade para fazer um bom trabalho. Em segundo lugar, vejo o governador como um quadro jovem, de alto potencial, que teve uma gestão extremamente bem avaliada em Pelotas. Acredito que ele está comprometido em fazer um grande governo. Em terceiro lugar, uma coisa é a situação fiscal do Estado, que sem dúvida é muito séria e é claro que tenho pleno conhecimento. Mas o Rio Grande do Sul é um Estado que tem força econômica imensa. É uma economia com cultura empreendedora, com mão de obra qualificada, com população educada, politizada. Estou muito motivado e não acho, de forma nenhuma, que é uma situação inviável.
Uma das suas funções no BNDES é analisar o risco nas operações. Pela sua experiência, o senhor aprovaria empréstimo ao Rio Grande do Sul?
Não, hoje o Estado está impedido, então isso nem se colocaria. O Estado está com os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal extrapolados. Não poderia, nem mesmo com garantia do governo federal.