Um dos principais entraves para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul é a dívida do Estado, quase o dobro do que a arrecadação anual. Em dezembro de 2021, segundo dados do último relatório oficial do governo, o passivo chegou a R$ 86 bilhões, nove vezes o orçamento anual da Educação. A seguir, saiba como começou a se formar a bola de neve e entenda por que o governo gaúcho está entre os mais afetados por problemas financeiros no país.
1. A PRÉ-HISTÓRIA DA DÍVIDA
Nas paredes do prédio da Secretaria Estadual da Fazenda, em Porto Alegre, velhas apólices expostas em molduras de vidro lembram peças de museu. São o que se poderia chamar de "pré-história" da dívida.
— Até a década de 90, ainda vinha gente aqui tentando resgatar esses títulos. Muitos eram encontrados enterrados ou guardados embaixo de colchões, só que já não valiam mais nada — conta o ex-subsecretário-adjunto do Tesouro, Eugênio Carlos dos Santos Ribeiro.
Algumas relíquias datam do fim do século 19 e se referem ao Estado como "Província de São Pedro". Trazem valores em réis. A maioria é de meados do século 20, quando foram lançados dois grandes planos de obras no Rio Grande do Sul.
2. O ENDIVIDAMENTO PRECOCE
O primeiro plano foi executado no governo de Ernesto Dornelles (1951-55) e o segundo, na gestão de Leonel Brizola (1959-1963). Ambos tinham o foco em estradas, e Brizola ainda criou as "brizoletas" - títulos de pequeno valor que acabaram virando moeda paralela - para viabilizar a construção de escolas.
— Nesse período, a nossa dívida já era um pouco maior se comparada a outros Estados. O governo gaúcho acabou assumindo obras que, nas demais regiões, foram feitas pela União — diz o economista Bolivar Tarragó Moura Neto.
Os valores, no entanto, ainda eram compatíveis com a receita. Até 1964, as operações de crédito não eram corrigidas e pesavam pouco sobre as finanças estaduais. O dinheiro arrecadado com impostos superava o valor da dívida pública.
3. O GERME DO DESCONTROLE
A situação saiu do controle a partir da década de 1970, na ditadura militar. Na onda do chamado "milagre econômico", as restrições ao endividamento foram afrouxadas, e a União estimulou os Estados a buscarem empréstimos externos. A bola de neve começou a se formar.
Sob o comando do governador Euclides Triches, da Arena (partido de sustentação do regime), o Estado entrou no mercado de capitais para ampliar as opções de crédito. A meta era dar à administração a eficiência de uma empresa. É dessa época, por exemplo, o projeto de construção do Centro Administrativo, na Capital, um símbolo dessa nova fase.
Com o aval do então ministro da Fazenda, Delfim Netto, Triches sancionou uma lei para poder emitir títulos com correção monetária _ conhecidos como Letras do Tesouro (LTEs) e Obrigações Reajustáveis (ORTES). A primeira emissão, segundo o especialista em finanças públicas Darcy Francisco Carvalho dos Santos, ocorreu em dezembro de 1972.
4. A PANACEIA DOS TÍTULOS
Considerados atrativos pelos investidores privados, esses papéis tiveram rápida aceitação no mercado. O governo conseguiu forrar o caixa e, com isso, viabilizar seu projeto desenvolvimentista. Foram construídos mais de 6 mil quilômetros de estradas.
— Era o período do milagre brasileiro. Havia um clima de euforia, e nós não podíamos deixar o cavalo passar encilhado. Foi muito bom para o Estado. O problema é que o processo foi se deteriorando, e não tínhamos como prever isso. Com o tempo, os títulos viraram panaceia, e a coisa desandou — conclui o ex-secretário da Fazenda e ex-professor de economia da UFRGS, José Hipólito Machado de Campos, 79 anos.
Os reflexos das duas crises do petróleo, em 1973 e 79, contribuíram para o descalabro. Quando Synval Guazelli (Arena) ocupou o lugar de Triches, os juros estavam nas alturas, as receitas próprias despencavam e as despesas cresciam. Segundo Moura Neto, a dívida externa do Estado chegou a crescer 1.736%.
5. DÍVIDAS PARA PAGAR DÍVIDAS
A década seguinte, marcada pela hiperinflação, foi de explosão do endividamento. Os títulos lançados nos anos de 1970 começaram a expirar, e o Estado já não podia resgatá-los. Mal tinha recursos para pagar a folha, cada vez mais onerosa. A solução foi rolar a dívida, isto é, adiar o pagamento, o que desencadeou um ciclo vicioso perverso, que perduraria por 20 anos. Para substituir os papéis vencidos, novos títulos passaram a ser emitidos, sempre com juros mais altos.
— Eram dívidas para pagar dívidas. Foi aí que tudo começou — sintetiza Darcy Santos.
Houve ainda um agravante. Com o avanço da redemocratização, o governo militar decidiu, segundo Moura Neto, abrandar o controle sobre as despesas e o endividamento dos Estados. Em 1982, quando o país vivia as primeiras eleições para governador desde 1964, a União liberou um volume enorme de papéis. O chefe do Executivo gaúcho, Amaral de Souza (Arena), foi um dos beneficiados.
6. O DESAFIO DE PAGAR A FOLHA
A disputa eleitoral resultou na vitória de Jair Soares, do PDS (um desdobramento da Arena), que começou a montar a equipe no mesmo ano. Em uma tarde calorenta de dezembro de 1982, Jair chamou o economista Ary Burger para conversar. Queria que ele fosse seu secretário da Fazenda. A resposta foi "não":
— O Ary sabia que o Amaral tinha lançado novos títulos, que iriam estourar no meu governo. Ele disse que eu assumiria em março e, em maio, não pagaria o funcionalismo. Foi uma bomba.
E a bomba só não explodiu porque o Estado passou a fazer operações de crédito por antecipação da receita repetidas vezes. Isto é, recorreu ao mercado para adiantar o que ainda estava por arrecadar, pagando juros e correção.
Com isso, Jair conseguiu fazer obras de infraestrutura, abriu concurso público, contratou professores e deu aumento ao funcionalismo. Em 1985, no entanto, o déficit (despesa maior do que a receita) era motivo de preocupação.
7. O PEDIDO DE SOCORRO E A GRAVATA ITALIANA
Sem alternativa, Jair Soares foi a Brasília, em 1985, pedir ajuda ao então presidente José Sarney (PMDB):
— Adotei uma política de austeridade e não fiz novos empréstimos, mas precisava de autorização para rolar a dívida e emitir títulos.
Ao chegar ao gabinete de Sarney, recebeu um elogio inesperado.
— Fui chorar as pitangas, e ele disse: "Que gravata linda!" Era uma peça italiana e fazia parte da minha coleção. Tirei e dei para ele. Lembro disso, porque logo depois o Sarney ordenou a rolagem da dívida. Foi um alívio, mas ainda sinto falta daquela gravata — brinca o ex-governador, hoje com 79 anos.
Em 1986, o Plano Cruzado causaria novo cataclismo nas contas. Em função da conversão de cruzeiros para cruzados, o orçamento caiu pela metade.
8. UM ESTADO À BEIRA DA FALÊNCIA
Prestes a deixar o cargo, Jair Soares fez uma visita a seu sucessor em Brasília. Pedro Simon (PMDB), então ministro da Agricultura, saiu vencedor do pleito de 1986.
— Ouvi o Jair dizer que eu deveria me preparar, porque as coisas andavam muito difíceis no Rio Grande do Sul. Era praticamente uma massa falida — relembra Simon, aos 83 anos.
O ex-senador não gosta de falar daquele período. Ao assumir, suspendeu a folha e anulou atos do predecessor, entre eles a decisão de pagar 2,5 salários aos professores. Foi o primeiro grande choque, segundo o economista Eugenio Lagemann, à crise financeira que se instalara. A decisão desencadeou uma série de paralisações, entre elas a maior greve da história do magistério gaúcho, com 90 dias de duração.
Em outros Estados, o caos da economia também causava estragos, o que levou a União a implementar, em 1987, um programa de ajuda financeira. Parte dos empréstimos bancários foi refinanciada pelo Tesouro Nacional, mas os problemas persistiram.
Na década de 90, a dívida pública do Estado deu um salto com o fim da inflação e o início do Plano Real, em 1994. Em quatro anos, de 1994 a 1998, o valor mais do que duplicou em função da alta dos juros. A partir de 1998, com o acordo que levou a União a assumir a maior parte dos débitos, a situação se estabilizou. Mesmo assim, o passivo segue impagável.
9. QUILOS A MAIS E TRANQUILIDADE DE MENOS
Quando Alceu Collares (PDT) assumiu o poder, em 1991, a situação havia chegado a tal ponto que os títulos precisavam ser rolados diariamente. Era necessário oferecer prêmios de risco para que os investidores continuassem financiando o rombo. Muitas vezes, o ônus acabava recaindo sobre os bancos públicos.
Todas as noites, o ex-secretário da Fazenda, Orion Cabral, esperava o telefone tocar, ansioso.
— Fechou a posição? — perguntava.
Era o jargão usado para saber se os operadores do Banrisul haviam conseguido renovar os títulos.
— O estresse era tanto que engordei 12 quilos — recorda Cabral, hoje com 78 anos.
Nesse período, o Estado foi proibido de lançar novos papéis, exceto para a rolagem. O Piratini conseguiu negociar com a União o pagamento de contratos de financiamento de longo prazo, mas a dívida em títulos se manteve, e a pressão também.
— O clima era de terrorismo. Queriam que pagássemos nas piores condições. Mas eu sou de Bagé. Não me dobrei — afirma Collares, que chegou a apresentar uma proposta de federalização, sem sucesso.
10. AS CONDIÇÕES PARA O ACORDO
Uma nova possibilidade de negociação começou a se constituir a partir de 1995. Com bom trânsito no governo FH, o então governador Antônio Britto (PMDB) pediu ajuda. Não havia mais como protelar.
As mudanças decorrentes do Plano Real, sustentadas por juros altos, afetaram todos os Estados. O fim da inflação acabou com a elasticidade da receita, e as rolagens continuavam. O Rio Grande do Sul, segundo o ex-secretário da Fazenda, Cézar Busatto, morto em 2018, beirava a bancarrota.
— Começamos a ter de vender patrimônio público para pagar as contas. É polêmico dizer isso. Hoje as pessoas descontextualizam e criticam, mas não tínhamos opção — relatou Busatto, em entrevista concedida em 2013.
Em 20 de setembro de 1996, o então ministro da Fazenda, Pedro Malan, foi recebido com festa no Palácio Piratini para a assinatura do protocolo de intenções do acordo - o primeiro do país. A União se tornaria a principal credora do Estado.
11. A RENEGOCIAÇÃO DE 1998
Após a celebração, ainda foram necessários dois anos até fechar o contrato final. Sob pressão, Britto desistiu de privatizar o Banrisul, uma das exigências do governo federal.
— A negociação foi dura. Lembro bem das discussões. Diziam que os gaúchos se achavam diferentes, que queriam privilégios — recorda Nelson Proença, ex-chefe da Casa Civil.
Outros Estados, como São Paulo e Rio, já haviam entregado seus bancos, e o recuo levou à alteração das condições iniciais para pior. Ainda assim, a transação foi comemorada no Piratini, porque o Estado deixaria de ser refém da rolagem, cujos juros chegavam a 25% ao ano.
Pelo acordo, a União assumiu praticamente toda a dívida. O Estado ficou obrigado a pagar R$ 7,9 bilhões em 30 anos, com juros anuais de 6% e correção pelo IGP-DI. Os repasses ficaram limitados a 13% da receita.
— O contrato foi praticamente imposto, mas na época todo mundo achou que era um negócio de pai para filho. Depois é que a coisa mudou — diz o economista João Batista Soligo Soares, do TCE.
12. O REVÉS
O assunto parecia resolvido, mas não estava. Os dois governos que se seguiram enfrentaram sérios empecilhos. O primeiro a pagar a fatura foi o ex-governador Olívio Dutra (PT), que derrotou Antônio Britto (então no PMDB) numa votação acirrada. O petista entrou na Justiça contra o acordo:
— Vimos ali um desrespeito ao pacto federativo. O governo anterior havia aceitado um garrote.
Com o passar do tempo, o IGP-DI cresceu além do esperado. Só em 2002, a variação foi de 26,4%, fazendo com que a dívida superasse a receita em três vezes.
— Nós assumimos o Piratini e, no terceiro dia, os repasses da União foram bloqueados, porque o Estado estava inadimplente — recorda Paulo Michelucci, ex-secretário da Fazenda de Germano Rigotto (PMDB).
Os anos de 2003 e 2005 registraram duas grandes secas, fazendo a arrecadação desabar. Para receber o 13º, os servidores tiveram de pedir empréstimo no Banrisul.
— Foram anos duríssimos — diz Rigotto.
13. O DÉFICIT ZERO
Em 2006, a economista Yeda Crusius (PSDB) elegeu-se governadora com o compromisso de ajustar as contas. Apostou no chamado "déficit zero".
— Era quase um conceito filosófico, um princípio. Decidimos que a despesa não podia mais ser maior do que a receita e foi o que fizemos — diz Aod Cunha, ex-secretário da Fazenda.
Os gastos foram cortados ao limite. A conjuntura econômica ajudou, e os ganhos cresceram. Após décadas de resultados negativos, o Estado voltou a registrar superávit (receita maior do que a despesa).
Para amenizar os custos da dívida, o governo buscou um empréstimo junto ao Banco Mundial. O dinheiro foi usado para quitar débitos que ficaram de fora do acordo de 1998. Na prática, trocou-se uma dívida cara por outra mais barata.
— Meus colegas diziam que era impossível, mas nós reestruturamos o Estado — afirma Yeda.
Apesar disso, o "déficit zero" foi alvo de duras críticas da oposição. Em 2010, no último ano da gestão tucana, o Estado voltou a entrar no vermelho. E não saiu mais.
14. INÍCIO DA NOVA RENEGOCIAÇÃO
Ao longo de sua gestão, o então governador Tarso Genro (PT) destituiu a política do déficit zero, aprovando uma série de reajustes para os servidores públicos, entre outras medidas. Ao mesmo tempo, o petista liderou, junto com o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), nova tentativa de renegociação com o governo federal.
A iniciativa resultou em um projeto para alterar o índice de correção e os juros da dívida, que foi aprovado em novembro de 2014 pelo Congresso, na forma da lei complementar nº 148. A norma autorizou revisão nos contratos da dívida alterando o indexador (do IGP-DI para o IPCA, limitado pela taxa Selic) e reduzindo o juro (de 6% para 4%). Ficou definido que isso seria aplicado de forma retroativa a janeiro de 2013.
— O Rio Grande do Sul ganha R$ 15 bilhões como abatimento da dívida — comemorou Tarso, à época.
15. AUGE DA CRISE
Ao assumir o Palácio Piratini, em janeiro de 2015, o então governador José Ivo Sartori (PMDB) deparou com uma situação financeira crítica e adotou medidas de ajuste para reduzir o rombo. Sem dinheiro suficiente em caixa, passou a parcelar salários de servidores do Executivo e a atrasar pagamentos a fornecedores, repasses a municípios e as parcelas da dívida. Isso fez com que as contas passassem as ser bloqueadas mês a mês, para o sequestro dos valores devidos à União.
Em dezembro daquele ano, um decreto federal regulamentou a lei nº 148 e estabeleceu os critérios do cálculo retroativo que reduziria a dívida dos Estados (por conta da mudança no índice de correção e nos juros), mas Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais discordaram do cálculo, recorreram ao STF e obtiveram liminar favorável. Com isso, o pagamento foi suspenso por 60 dias, e a Corte determinou que os Estados e a União chegassem a um acordo.
O acordo foi anunciado em junho de 2016, depois de longa discussão entre os governadores e o então presidente Michel Temer. Os Estados e a União definiram que as parcelas voltariam a ser pagas em janeiro de 2017, de forma progressiva, e confirmaram o alongamento do prazo de pagamento (2028 para 2048). Quanto ao cálculo retroativo, o critério da União foi mantido.
16. NOVO ACORDO É APROVADO
Em dezembro de 2016, foi sancionada a lei nº 156, ratificando os termos do novo acordo, em especial a ampliação do prazo de pagamento até 2048 e os benefícios anteriores (redução dos juros e novo indexador), com a condição de que os Estados desistissem de questionar a dívida no STF.
Em agosto de 2017, o Estado obteve nova liminar, suspendendo mais uma vez as parcelas da dívida. Àquela altura, as parcelas já estavam sendo cobradas outras vez pela União, e o Estado seguia com problemas de caixa. O resultado foi comemorado no Palácio Piratini.
Em dezembro de 2017, o Rio Grande do Sul foi autorizado pelo STF a formalizar a adesão à lei, sem abrir mão das ações judiciais. Como a mudança no indexador e a redução de juros foi retroativa a 1º de janeiro de 2013, o saldo da dívida foi recalculado, com abatimento de R$ 4,9 bilhões.
17. O REGIME DE RECUPERAÇÃO FISCAL
No início de 2017, para ajudar o Estado do Rio de Janeiro a sair da grave crise financeira em que estava afundado, o governo federal elaborou um novo projeto de lei para criar o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal. O projeto foi sancionado em maio e, no fim de julho do mesmo ano, a lei foi regulamentada.
De acordo com a norma, os Estados que aderissem ao programa teriam pelo menos três anos de carência no pagamento da dívida e seriam autorizados a buscar novos financiamentos para reequilibrar as contas. O governo de José Ivo Sartori decidiu tentar a adesão, sob o argumento de que não haveria outra saída para a crise.
Para aderir ao regime, os Estados são obrigados a cumprir uma série de exigências, entre elas a privatização de companhias dos setores financeiro, de energia e de saneamento, entre outros, a redução de incentivos fiscais e a proibição de realizar concursos públicos, contratar pessoal e promover alterações no plano de carreira do funcionalismo.
Os Estados também ficariam impedidos, durante o período de adesão (de três anos, prorrogáveis por no máximo mais três), de conceder "vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de membros dos Poderes ou de órgãos, de servidores e de empregados públicos e militares, exceto aqueles provenientes de sentença judicial transitada em julgado".
18. DIFICULDADES DE ADESÃO
Isso porque, durante os três anos em que o Estado ficar sem pagar a dívida, os juros e a correção seguiriam sendo contabilizados. Estimativas da Secretaria da Fazenda calculadas em 2017 indicavam que o aumento, ao final do período, poderia chegar a R$ 10,5 bilhões, mas o governo argumentou que, como teria R$ 9,5 bilhões à disposição (das parcelas que não serão pagas), o custo para o Estado seria de R$ 1 bilhão, dos juros e da correção.
Depois de muito debate, em fevereiro de 2018, o governo Sartori conseguiu aprovar o projeto de lei que autoriza a adesão na Assembleia, mas as negociações prosseguiram. Sartori chegou a entregar uma proposta de plano de ajuste. Depois disso, a Secretaria do Tesouro Nacional negou o pedindo, alegando inconsistências.
O Palácio Piratini, então, decidiu agir politicamente para tentar reverter a derrota e, em dezembro de 2017, conseguiu assinar um protocolo de intenções com o governo federal. Apesar disso, até setembro de 2018, o governo seguia tentando atender as exigências da União, sem sucesso. A principal preocupação de Sartori era perder a liminar do STF que suspendeu o pagamento da dívida em agosto de 2017 e ter de voltar a pagar as parcelas.
19. A exigência do Banrisul
Depois de mais de 80 viagens a Brasília para tratar da adesão ao regime de recuperação fiscal, de inúmeros contratempos e dificuldades, o governo do Estado foi informado pelo ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, de que não haveria acordo sem a privatização do Banrisul.
A condição foi imposta em uma reunião em Brasília, no dia 4 de setembro, na presença do então vice-governador José Paulo Cairoli, do ex-secretário estadual da Fazenda, Luiz Antônio Bins, e do ex-procurador-geral do Estado, Euzébio Ruschel, entre outras pessoas.
— O plano de recuperação do Estado não para em pé. Entreguem o Banrisul que o resto eu resolvo — disse Guardia.
A 33 dias do primeiro turno das eleições, a conclusão teve o efeito de uma bigorna despencando sobre os ombros dos gaúchos, que chegaram ao encontro esperando concluir o pré-acordo com a União – possibilidade, esta, prevista na lei complementar nº 159, de 2017, que criou o regime. Conforme a norma, o Estado que se credenciar a essa etapa inicial das negociações pode ser dispensado de privatizar empresas públicas. Para isso, precisa provar que pode reequilibrar as contas sem a venda de ativos ou que o valor da operação é superior ao benefício previsto com a suspensão da dívida por três anos (no caso do Rio Grande do Sul, R$ 10 bilhões). Desde 2017, essa opção foi encarada pela gestão Sartori como uma brecha jurídica a ser explorada, e as tratativas partiram desse pressuposto. Até aquela data.
— Foi pesado. Cairoli ficou p... da cara e disse que não havia nenhuma chance de entregar o banco. Queria até romper relações — relatou um interlocutor próximo.
Em plena campanha eleitoral, o impasse ameaçava a principal promessa de Sartori, repetida à exaustão em entrevistas, debates e na propaganda de rádio e TV. Ao mesmo tempo, a condição imposta pela equipe econômica era impensável para o candidato à reeleição.
Na noite do dia 4, apesar do desfecho na capital federal, o site oficial do governo estadual estampava a seguinte notícia: "Estado avança nas negociações do Regime de Recuperação Fiscal", omitindo o ocorrido.
O clima ficou tão ruim que, por sugestão do próprio Guardia, foi agendada uma segunda reunião para 11 de setembro. No encontro, foi elaborada a minuta do que foi chamado de "acordo prévio" com a União. Ao final do documento, ficou registrado que não se tratava do "pré-acordo" mencionado acima, mas de um estágio anterior a ele. Embora não tenha nenhuma validade oficial, a certidão seria um paliativo para evitar o pior: a queda da liminar judicial que, desde agosto de 2017, livra o Estado de pagar as parcelas da dívida com a União.
O governo Sartori chegou ao fim, em 31 de dezembro de 2018, sem conseguir concluir a adesão do Estado ao regime de recuperação.
20. Governo Leite retoma negociações
Em janeiro de 2019, assim que tomou posse como governador, Eduardo Leite (PSDB) decidiu retomar as negociações com a Secretaria do Tesouro Nacional (STN).
As equipes da Secretaria Estadual da Fazenda e do órgão federal voltaram a se encontrar para tratar do regime de recuperação fiscal (foto de uma das reuniões, em março de 2019). A partir dali, um novo plano de ajuste das contas passou a ser elaborado, com uma série de novas medidas. Apesar disso, não foi possível aderir, dadas as exigências federais.
Somente no fim de 2020 uma mudança na legislação, aprovada pelo Congresso, fez o tema voltar à pauta do dia, reformulando o regime. Depois disso, em janeiro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei que tornou as condições de adesão mais fáceis.
Em janeiro de 2022, a Secretaria do Tesouro Nacional aprovou a habilitação do Estado ao regime de recuperação fiscal - alvo de críticas de entidades como OAB-RS, Ajuris e sindicatos de servidores. Depois disso, o Ministério da Economia recomendou a Bolsonaro a homologação final do acordo.