Se você ainda não viu, corra: a esplêndida minissérie Chernobyl (2019) está na lista das produções que serão removidas do menu da plataforma Max entre os dias 28 de junho e 1º de julho, dentro da política econômica da Warner Bros. Discovery, dona desse serviço de streaming.
Criada pelo estadunidense Craig Mazin, o mesmo responsável pela adaptação do game The Last of Us, Chernobyl reconstitui o pior acidente nuclear da história. A tragédia da usina de Chernobyl ocorreu entre 25 e 26 de abril de 1986 perto da cidade de Pripyat, na Ucrânia — à época, ainda uma república pertencente à União Soviética (URSS). O número de mortos é controverso até hoje, porque o cálculo envolve não apenas as vítimas diretas (bombeiros que combateram o fogo, operários que limparam os destroços, moradores próximos ao local), mas também pessoas que sofreram os efeitos da contaminação — como casos de câncer ou de bebês nascidos com malformação. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2005 estima 4 mil mortes, a ONG ambiental Greenpeace sugere 20 vezes mais. Fato é que o desastre demandou um enorme, longo e caro esforço para conter a radiação. Pelo menos 500 mil trabalhadores foram empregados, e em 2010 o sarcófago de concreto erguido às pressas após o vazamento começou a ser coberto por outra estrutura, agora de aço e móvel, inaugurada em 2016 a um custo de 2,1 bilhões de euros financiados por vários países.
Chernobyl apresenta, ao longo de cinco episódios, cada um com mais ou menos uma hora, uma versão ficcional do acidente nuclear, de suas consequências imediatas e das primeiras ações tomadas pelo governo soviético. A obra foi um sucesso de público e de crítica. À época, com 8 milhões de visualizações, chegou a representar 52% da audiência da HBO no streaming, batendo o recorde que era de Game of Thrones (46%). Na principal premiação da TV e do streaming nos Estados Unidos, o Emmy, arrebatou 10 troféus, incluindo melhor minissérie, direção (o sueco Johan Renck), roteiro (do próprio Craig Mazin), fotografia (o também sueco Jakob Ihre) e trilha sonora original (a islandesa Hildur Guðnadóttir). Concorria a outros nove, entre eles melhor ator (o inglês Jared Harris, no papel do renomado químico Valery Legasov), atriz coadjuvante (a inglesa Emily Watson, como a fictícia cientista Ulana Khomyuk) e ator coadjuvante (o sueco Stellan Skarsgård, que interpretou Boris Shcherbina, vice-presidente do Conselho de Ministros da URSS de 1984 a 1989, designado para supervisionar a gestão da crise desencadeada pelo acidente nuclear). Chernobyl também conquistou também dois Baftas, da Academia Britânica (melhor minissérie e melhor ator, para Harris), dois Globos de Ouro (melhor minissérie e melhor ator coadjuvante, para Skarsgård, igualmente laureado no Critics Choice) e os prêmios da Associação dos Produtores dos EUA e do Sindicato dos Diretores dos EUA.
Atuando tanto in loco quanto nos bastidores, em Moscou, Legasov, Ulana e Shcherbina são alguns dos personagens com os quais a tragédia é reencenada. O elenco multifacetado permite enxergarmos as dimensões científica, política e humana. Temos, por exemplo, o ângulo do arrogante e irascível Dyatlov (Paul Ritter, morto no início de abril de 2021), engenheiro que comandou o fatídico teste na usina. Ou a visão de Lyudmila Ignatienko (Jessie Buckley, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por A Filha Perdida), a esposa grávida de um bombeiro, cuja história foi adaptada do livro-reportagem Vozes de Tchernobil, da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015. E ainda o olhar do jovem militar Pavel (Barry Keoghan, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante por Os Banshees de Inisherin), recrutado para ajudar no extermínio de animais contaminados.
Embora haja liberdades artísticas que foram contestadas por autoridades e especialistas no assunto (por exemplo, o retrato de Viktor Bryukhanov, diretor da usina, e Nikolai Fomin, engenheiro-chefe, como vilões, e a queda de um helicóptero em meio à fumaça radioativa), Chernobyl se destaca pela sobriedade. As cenas são graves e tensas, como era de se esperar. O que surpreende é a sua paternidade. Craig Mazin, hoje com 53 anos, havia construído sua carreira na comédia — e geralmente escrachada. Entre seus créditos como roteirista, estão Pirado no Espaço (1997), Todo Mundo em Pânico 3 (2003), Todo Mundo em Pânico 4 (2006), Se Beber, Não Case! Parte II (2011) e Se Beber, Não Case! Parte III (2013). Em entrevistas, Mazin justificou a guinada para um tema e um tom sérios:
— Nós vivemos em uma época em que as pessoas parecem estar voltando ao conceito nocivo de que o que nós queremos que seja verdade é mais importante do que a verdade em si. É como se a verdade tivesse virado piada. Uma das lições mais importantes de Chernobyl é que a verdade não depende de nós.
Não bastassem a qualidade dramatúrgica e a excelência técnica, Chernobyl ganhou assustadora atualidade durante a pandemia de covid-19. Cenas e falas parecem refletir o que vimos e ouvimos desde o surgimento do coronavírus.
Os esforços para acobertar o acidente nuclear remetem à situação da China, que, segundo um comitê independente formado por especialistas em saúde pública e liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark e pela ex-presidente da Libéria Ellen Johnson, demorou muito para agir quando a covid-19 começou a se alastrar, em dezembro de 2019.
Os habitantes de Pripyat (hoje uma cidade deserta cobiçada por turistas) que se reúnem sobre uma ponte para observar a luz azul emitida pelo incêndio no reator lembram as perigosas aglomerações.
O sacrifício dos mineiros convocados para cavar um túnel na usina se assemelha ao dos profissionais da saúde que trabalharam na linha de frente do combate à doença.
A colocação de interesses políticos acima do conhecimento científico espelha a postura de governos como os de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro no Brasil.
O personagem de Jared Harris, Valery Legasov, que luta para fazer o presidente Mikhail Gorbachev, Boris Shcherbina e generais soviéticos entenderem a gravidade do acidente nuclear e tomarem as medidas necessárias, dá voz aos médicos e pesquisadores que combateram a disseminação da desinformação e a adoção de tratamentos ineficazes ou até danosos:
— Qual é o custo das mentiras? Não é que as confundamos com a verdade. O real perigo é ouvirmos tantas mentiras que sejamos incapazes de reconhecer a verdade. Cada mentira que dizemos aumenta a dívida com a verdade. Cedo ou tarde, essa dívida é cobrada.