Atração Fatal (Fatal Attraction, 1987), que apareceu este mês na Netflix, escandalizou o público, provocou polêmica e fez um tremendo sucesso na época de seu lançamento nos cinemas. Nas bilheterias, o thriller erótico rendeu quase 23 vezes o seu custo: orçado em US$ 14 milhões, faturou US$ 320 milhões, tornando-se o campeão de público daquela temporada. No Oscar, concorreu em seis categorias: melhor filme, direção (Adrian Lyne), atriz (Glenn Close), atriz coadjuvante (Anne Archer), roteiro adaptado (James Dearden, a partir de um curta-metragem seu de 1979) e edição (Michael Kahn).
Trata-se de um ícone do subgênero de suspense que marcou Hollywood nas décadas de 1980 e 1990 — vide, com seus títulos autoexplicativos, Vestida para Matar (1980), Corpos Ardentes (1981), Dublê de Corpo (1984), Instinto Selvagem (1992) e O Poder da Sedução (1994). Aliás, o britânico Lyne, hoje com 83 anos, construiu toda sua carreira combinando sexo com perigo, sexo com crime, sexo com traição, sexo com crise. São dele também 9 ½ Semanas de Amor (1986), Proposta Indecente (1993), uma nova adaptação de Lolita (1997), Infidelidade (2002) e Águas Profundas (2022). Nessas obras, o cineasta praticou uma espécie de escândalo moralista: em geral, o comportamento sexual dos personagens acaba castigado.
Em Atração Fatal, Michael Douglas interpreta Dan Gallagher, um bem-sucedido advogado de Manhattan que tem um casamento aparentemente feliz com Beth (papel de Anne Archer) e é pai de uma linda menina. Um dia, ele conhece uma executiva do mercado editorial, Alex Forrest (Glenn Close), uma mulher livre e liberal com quem tem um tórrido caso de fim de semana. Quando a amante começa a apresentar descontrole e obsessão, Dan resolve dar um basta no relacionamento. Mas Alex não aceita ser rejeitada e passa a infernizar a vida do advogado e de sua família.
Se você nunca viu, alerto que poderá haver spoilers no texto a seguir.
O filme penetrou na cultura popular — o termo bunny boiler, usado nos Estados Unidos para descrever uma mulher obcecada após uma rejeição amorosa, deriva da cena em que se descobre que Alex cozinhou o coelho de estimação da filhinha de Dan. Também virou objeto de estudos sobre relacionamentos, saúde mental (a personagem Alex ilustra o transtorno de personalidade borderline e a erotomania), machismo e misoginia — "Como de praxe, o vilão do filme não era o adúltero, e sim a destruidora de lares, que teve o fim que merecia, ah, se teve", escreveu a colunista Martha Medeiros certa vez.
Adaptado para uma série homônima do Paramount+ em 2023, Atração Fatal tornou-se um fenômeno já no seu nascimento. Quando o filme estreou nos cinemas de Porto Alegre, Zero Hora dedicou uma edição inteira da Revista ZH para dissecá-lo. Sob o título "A cólera do desamor", a jornalista Jussara Porto entrevistou psicólogos, psicanalistas, sexólogas e artistas para falar sobre uma história que, "mesmo acusada de conservadora e reacionária, consegue o mérito de mexer com todos".
O psicólogo Juan Mosquera observou a intertextualidade da trama do filme com o enredo de Madame Butterfly (1904), ópera de Giacomo Puccini sobre um tenente da Marinha dos Estados Unidos que, apesar de ser casado, se envolve com uma gueixa no Japão do final do século 19. A ópera é referida não apenas na trilha sonora, mas também em diálogos — Alex chega a comprar ingressos para uma apresentação, na vã esperança de que Dan vá junto. Mosquera também apontou como Atração Fatal refletia os dilemas de uma sociedade que busca sempre o triunfo, inclusive no campo das conquistas amorosas, mas sem querer assumir os riscos, ou seja, sem abrir mão dos padrões estabelecidos, como um casamento. O psicólogo concluiu notando que, no suposto final feliz, a última imagem que fica não é a da família, mas de uma fotografia, que é não é o real, mas somente uma reprodução aproximada. Uma fabricação, podemos dizer.
O diretor de teatro — e hoje também psicanalista — Júlio Conte foi brilhante em sua análise. Na sua opinião, o conflito de Atração Fatal não é entre o amor e o desejo, mas econômico: estragar um casamento que é bem-sucedido economicamente torna-se passível de castigo, de punição. "O filme, então, faz um convite a todos para que não sejam adúlteros, porque dessa forma estão colocando em perigo suas estruturas econômicas", disse Conte.
Fazendo referência ao filme anterior de Adrian Lyne no título — "Um dia e meio de amor, nove semanas de horror" —, o crítico Hiron Goidanich, o Goida, elogiou a construção da tensão erótica, do suspense e do medo, mas lamentou que todas as virtudes, incluindo os desempenhos de Glenn Close e Anne Archer, estivessem "a serviço de velhos e odiosos conceitos de direitos do homem. Só do homem". Para Goida, Dan, "apesar de parecer bonzinho, é um personagem pusilânime. A narrativa, porém, faz com que se transforme num mártir, vivendo nove semanas de terror". A solitária Alex, por sua vez, é pintada como uma psicopata, "vira uma ameaça. Ninguém vê o lado dela, só o dele".
O crítico literário Flávio Loureiro Chaves discorreu sobre a longa tradição de atrações fatais na literatura, citando exemplos como Romeu e Julieta, Otelo, As Ligações Perigosas, O Vermelho e o Negro, Madame Bovary, Anna Karenina, Morte em Veneza, Os Maias, Dom Casmurro e Grande Sertão: Veredas. Seu texto começa recuperando um episódio da Eneida (ano 19 a.C), poema épico de Virgílio sobre Eneias, o troiano que é salvo dos gregos e passa a viajar pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica, para ser o ancestral de todos os romanos. Certo dia, a sua frota aportou em Cartago, onde Eneias despertou na rainha Dido uma paixão à primeira vista. Só que a missão divina do protagonista já estava traçada, então ela a abandonou. Mergulhada no desespero e na solidão, Dido suicidou-se.
"Este episódio da Eneida encerra um preceito moral da ética greco-romana, em que os deveres da cidadania sempre se impõem sobre as vontades individuais", escreveu Loureiro Chaves. "Mas também revela que a 'atração fatal' é um tema dotado de ampla universalidade e tão antigo quanto a própria literatura. A paixão sonegada que logo se transforma em obsessão, deixando em seu rastro a devastação e a morte, é assunto preferencial nas grandes tragédias ou nos folhetins de escribas marginais."