Quase 40 anos depois da minissérie da Globo de 1985 estrelada por Tony Ramos, Bruna Lombardi e Tarcísio Meira, estreia nesta quinta-feira (6) nos cinemas uma nova adaptação do clássico romance Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956 pelo escritor Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão (2024), o filme, tem direção do pernambucano Guel Arraes, acostumado a verter peças teatrais — são dele O Auto da Compadecida (2000), que em dezembro ganhará uma continuação, Lisbela e o Prisioneiro (2003) e O Bem Amado (2010). O elenco traz Caio Blat como Riobaldo, papel que o ator havia interpretado no espetáculo O Diabo na Rua no Meio do Redemunho (2017), de Bia Lessa; Luisa Arraes, filha do cineasta, na pele de Diadorim; e o ex-comediante Eduardo Sterblitch vivendo outro vilão antológico: após o ex-policial que vira líder de milicianos no seriado Os Outros (2023), agora ele dá corpo e voz a Hermógenes, a encarnação da maldade e da deslealdade.
O roteiro cinematográfico assinado por Guel e pelo gaúcho Jorge Furtado moderniza a ambientação do livro de Guimarães Rosa, mas sem mexer na sua linguagem tão encantadora quanto desafiadora. Essa reverência à palavra remete a outro título nacional desta temporada com matriz literária, A Paixão Segundo G.H. (2023), de Luiz Fernando Carvalho. Os atores declamam seu texto — que é cheio de rimas — como se estivessem em um palco de teatro onde precisam projetar muito suas vozes. Grande Sertão abdica do naturalismo e aposta no artifício, o que inclui o emprego exagerado da câmera lenta em algumas cenas.
Uma inspiração evidente e assumida — vide a entrevista a seguir — é Romeu + Julieta (1996), filme em que o diretor Baz Luhrmann leva o trágico romance criado por Shakespeare da Veneza antiga para uma ensolarada Califórnia dos anos 1990, só que mantendo os diálogos originais. Grande Sertão transpõe o mundo violento dos jagunços que barbarizavam o interior de Minas Gerais e da Bahia para uma comunidade urbana e periférica de um futuro próximo, acuada entre o controle pelas organizações criminosas e a brutalidade da ação policial, a exemplo do que ocorre nas favelas do Rio de Janeiro.
O filme é narrado por Riobaldo, que, falando para um interlocutor ausente (ou para o próprio espectador), sentado em uma cadeira no meio de um prédio abandonado, relembra sua trajetória. Longos flashbacks vão mostrar o dia em que, na infância, conheceu o menino Diadorim — encontro que despertou um sentimento que ele nunca teve a coragem de extravasar — e o dia em que, já na vida adulta, o então professor decidiu pegar em armas. Entrementes, surgem outros personagens, como Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi), o líder dos bandidos, equilibrando-se entre o cruel e o justo, e Zé Bebelo (Luís Miranda), o comandante policial com aspirações políticas. Ou Otacília (Mariana Nunes) e Nhorinhá (Luellem de Castro), que se envolvem romanticamente com o protagonista.
Na entrevista a seguir, Jorge Furtado fala sobre "o caráter universal e eterno" de Grande Sertão: Veredas, a aproximação do filme com o teatro, a sexualidade de Diadorim e a escolha do elenco.
Entrevista: Jorge Furtado, coautor do roteiro de "Grande Sertão"
Como surgiu a ideia de modernizar Grande Sertão: Veredas? O que a obra de Guimarães Rosa fala sobre o Brasil de hoje? E por que ambientar o filme na periferia urbana?
Grande Sertão: Veredas, como todo clássico, se presta a infinitas leituras. Um enclave do passado num mundo modernizado de forma injusta e às pressas, uma terra onde vigora a violência, este é o sertão de Rosa, que também pode ser encontrado nas margens da riqueza no Brasil. Hoje, o Rio de Janeiro tem 14 grupos armados disputando mais de mil territórios. "O sertão está em toda a parte."
Ao mesmo tempo em que o filme traz para o presente a história, vocês optaram por preservar ao máximo a prosa do livro. Você pode falar sobre esse contraste e sobre a expectativa quanto à recepção do público?
Nosso projeto de adaptação partiu de duas premissas: trazer a história para um futuro próximo e manter ao máximo o texto do livro. Eu acredito que, ao trazer a história para hoje, sublinhamos o caráter universal e eterno do romance, como apontou Antonio Cândido, com temas "sem os quais a arte não sobrevive: dor, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que, na verdade, o sertão é o mundo". Minha expectativa é de que o público perceba o quanto Rosa tornou visível, com seu romance, a genealogia da nossa ferocidade, ao mesmo tempo em que descubra — ou redescubra, quem leu o livro — a sabedoria poética de Riobaldo.
Grande Sertão bebe da literatura e também do teatro: os atores se movimentam como se estivessem em um palco, falam com uma impostação teatral. A ideia é realçar a aproximação do Guimarães Rosa com Shakespeare? Guel Arraes disse que considera Riobaldo "hamletiano".
A prosa poética de Grande Sertão: Veredas não pode, sem flertar com o ridículo, ser dita de maneira coloquial, nem pode ser intercalada com lugares comuns ou expressões cotidianas banais. A movimentação dos atores, as marcações de cena, os gestos, as falas, evidenciam o caráter épico-poético da narrativa. Shakespeare, que entrelaça as paixões privadas e os negócios de estado, o amor e a guerra, o herói e o ser humano comum, e faz tudo isso com a melhor poesia, é influência inescapável, inspiração para tudo que veio depois dele. Riobaldo, um jagunço metafísico, um sábio guerreiro, é descendente direto de Hamlet.
Houve alguma inspiração muito influente na adaptação?
Lembro principalmente de dois filmes que serviram de exemplo e inspiração para nossa adaptação, não por acaso duas adaptações de Shakespeare: Ran (1985), de Akira Kurosawa, e Romeu + Julieta (1996), de Baz Luhrmann. Kurosawa transforma as três filhas de Rei Lear em filhos, já que no Japão medieval não faria sentido o poder do clã ser disputado entre mulheres. Já Luhrmann traz a tragédia do amor adolescente de Romeu e Julieta para a atualidade, mantendo fielmente o texto da peça. Estes dois filmes, como o nosso, passam distante do realismo ou de interpretações naturalistas.
Um dos pontos centrais de Grande Sertão, tanto o livro quanto o filme, é a confusão de sentimentos de Riobaldo em relação a Diadorim, personagem que personifica dualidades (masculino/feminino, desejo/repulsa, sagrado/profano) e que, com o passar dos tempos, tornou-se bastante real, ganhou representatividade na sociedade. Como diz Nhorinhá em uma cena: "A flor do amor tem muitos nomes. Escolher pra quê?". Gostaria que você falasse sobre a discussão de gênero no livro de Guimarães Rosa e na releitura cinematográfica.
O romance é inteiramente narrado por Riobaldo, de modo que não sabemos o que Diadorim pensa a respeito de si mesma. "Diadorim é minha neblina." Para viver a guerra e mover-se num mundo masculino, Diadorim, no dizer de Riobaldo, apresenta-se "macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações". No livro, Diadorim é Reinaldo para todos, menos para Riobaldo, a quem revela seu nome verdadeiro. No filme, ela é Diadorim para todos, nome ambivalente que preserva o mistério de seu gênero. Atualizamos sua sexualidade, já que amantes "de natureza igual", felizmente, já não escandalizam tanto como em 1956, quando o livro foi lançado.
Segundo pesquisa promovida pelo Instituto Locomotiva em parceria com o Data Favela e a Central Única das Favelas (Cufa), 67% das pessoas presentes nas favelas são negras e pardas. No filme Grande Sertão, me chamou atenção que, dos cinco personagens principais, Riobaldo, Diadorim, Hermógenes, Joca Ramiro e Zé Bebelo, quatro são interpretados por atores brancos. Você pode comentar sobre a escolha do elenco?
O elenco é decisão do diretor, mas acompanhei a escolha dos atores e acho que tomaria as mesmas decisões que o Guel tomou. Caio Blat era a escolha natural para fazer Riobaldo, tendo vivido recentemente o personagem no teatro e o incorporado com assombrosa maestria. Luisa Arraes é uma jovem atriz extraordinária, também fez a peça (mas no papel de Nhorinhá), e com sua pele clara, "a testa alta e os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino", corresponde perfeitamente ao personagem de Rosa. Seu pai, Joca Ramiro, naturalmente seria branco, e Rodrigo Lombardi brilha como chefe máximo do bando. Acho que não seria uma boa ideia, num país tão racista como o nosso, que o mais cruel e sanguinário dos bandidos, a personificação do mal, fosse vivido por um ator negro. Hoje, vendo o espetacular desempenho de Eduardo Sterblitch, não consigo imaginar outro Hermógenes. Os outros três personagens principais são negros. Zé Bebelo, talvez o mais empático e complexo personagem da história, tornou-se Luís Miranda, para sempre. E as duas mulheres que disputam o coração de Riobaldo, Otacília e Nhorinhá, são interpretadas por duas grandes atrizes, negras: Mariana Nunes e Luellem de Castro.