A concorrência é boa: tem O Expresso da Meia-Noite (1978), Alcatraz: Fuga Impossível (1979), Os Últimos Passos de um Homem (1995) e O Profeta (2009), entre outros títulos. Mas talvez o mais celebrado filme de prisão seja Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption, 1994), que em setembro comemora 30 anos da sua estreia e que, atualmente, pode ser visto no Max — infelizmente, por pouco tempo: está na lista das obras que serão retiradas do catálogo da plataforma de streaming no período de 28 de junho a 1º de julho, dentro da política econômica da Warner Bros. Discovery. Enquanto não ganhar novo endereço em um serviço por assinatura, a alternativa para assisti-lo será o aluguel digital ou procurar as edições em DVD.
Entre as credenciais de Um Sonho de Liberdade para ocupar esse posto simbólico, estão as sete indicações ao Oscar: melhor filme, ator (Morgan Freeman, que a partir de então passou a ser costumeiramente escalado como narrador), roteiro adaptado (pelo diretor Frank Darabont a partir de um conto de Stephen King), fotografia (do mestre Roger Deakins), edição (Richard Francis-Bruce), música original (Thomas Newman) e som. Perdeu em todas as categorias — quatro delas para Forrest Gump (1994) —, mas conquistou de tal forma o coração do espectador que se tornou o número 1 na lista dos melhores filmes de todos os tempos segundo os 83 milhões de usuários registrados do site IMDb, o maior banco de dados cinematográficos da internet. (A título de curiosidade, até o dia 14 de junho o top 10 se completava com O Poderoso Chefão, Batman: O Cavaleiro das Trevas, O Poderoso Chefão: Parte II, 12 Homens e uma Sentença, A Lista de Schindler, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, Pulp Fiction, O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel e Três Homens em Conflito. Forrest Gump era o 11º colocado, e Cidade de Deus, na 25ª posição, representava solitariamente a América do Sul nos cem preferidos.)
Essa adoração pode vir da identificação de Um Sonho de Liberdade com elementos da mais poderosa história mítica do Ocidente: a de Jesus Cristo. Andy Dufresne, o banqueiro interpretado por Tim Robbins que, em 1947, desembarca na fictícia Penitenciária Estadual de Shawshank para cumprir pena perpétua pelo assassinato de sua esposa e do amante dela, tem ares de uma figura messiânica, embora errante — tal qual o personagem de Willem Dafoe em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese. O contrabandista Red (Morgan Freeman), com quem Andy faz amizade, chega a dizer que ele tem uma aura que o protege na prisão. Há uma cena que parece recriação da Última Ceia, com o banqueiro obtendo cerveja para os 12 condenados. Não faltam Satãs: Bogs (Mark Rolston), o estuprador líder da gangue conhecida como As Irmãs; Norton (Bob Gunton), o severo diretor da cadeia; Hadley (Clancy Brown), o brutal capitão dos guardas. E Zihuatanejo, a cidade mexicana na costa do Oceano Pacífico que alimenta os sonhos de fuga do personagem de Robbins, pode representar o Paraíso.
O culto em torno de Um Sonho de Liberdade é tão grande, que os sets do filme no reformatório do Estado de Ohio, na época prestes a ser demolido, foram mantidos. Hoje, fazem parte do tour de um museu. Já as pedras do muro onde Red enterra seu "tesouro" foram compradas uma a uma depois que o fazendeiro dono das terras as colocou à venda no eBay.
O irônico em relação a sua popularidade é que Um Sonho de Liberdade não foi um sucesso de público quando exibido nos cinemas dos Estados Unidos. Produzido com orçamento de US$ 25 milhões, arrecadou somente US$ 28,7 milhões nas bilheterias. Por outro lado, em 1995 virou o recordista em locação de fitas VHS. As indicações ao Oscar, a propaganda boca a boca e as exibições na TV (em uma época na qual não havia a disponibilidade do streaming) contribuíram para construir a fama tardia.
No Brasil, onde estreou já com a publicidade da disputa pelos prêmios da Academia de Hollywood, contou com um acerto da equipe de marketing: em vez de traduzir fielmente o nome do filme, bolou um título muito mais evocativo do que seria A Redenção em Shawshank. É seguro dizer que essa escolha ajudou a atrair a audiência, a ponto de Um Sonho de Liberdade ter permanecido mais de cem dias em cartaz nas salas de Porto Alegre.
Um dos entusiastas de primeira hora foi o cronista Paulo Sant'Ana (1939-2017). Em coluna publicada na Zero Hora do dia 27 de maio, quando o título já estava havia 11 semanas em exibição, o notório megalômano escreveu: "Reivindico uma parte ou o todo desse sucesso a esta coluna, que num dia foi inteiramente ocupada por um elogio às humanidades desse filme, aconselhando seus leitores a não perderem essa película de poético, doce e ao mesmo tempo dolorido conteúdo". (O arremate foi ainda mais egocêntrico: "Não esqueçam, quando esta coluna aconselhar filme, livro, restaurante, mulher, opção política, não vacilem e mergulhem cegamente no paraíso indicado".)
A tal coluna em que Sant'Ana derramou elogios a Um Sonho de Liberdade saiu na Zero Hora do dia 31 de março — portanto, 14 dias após sua estreia —, intitulada "Um filme inesquecível". O texto traz outros motivos que ajudam a explicar a adoração do público pelo filme. Reproduzo trechos aqui: "É daqueles filmes em que você tem a sensação de ter voltado de uma grande viagem, mais humano, mais afirmado, mais compreensivo com o destino, menos perplexo diante das peças que a vida nos prega. (...) Diversas cenas me sacudiram na poltrona, raras me fizeram rir com vontade, muitas me provocaram lágrimas de emoção ou de autopiedade, comovido com a miséria da nossa condição humana. A gente sai do cinema flutuando, (...) acreditando na força da amizade, nos valores afetivos que aproximam os homens atingidos pela desgraça. (...) Há uma cena (...) que explica a espantosa felicidade dos pobres diante das migalhas que lhe são oferecidas pelo cotidiano. E a insistência do homem em viver, mesmo quando tudo se torna inviável na sequência terrível das barreiras que aparecem todos os dias e vão se amontoando numa tragédia existencial sem solução".
5 curiosidades dos bastidores de "Um Sonho de Liberdade"
1) Stephen King nunca descontou o cheque de US$ 5 mil que recebeu pela venda dos direitos de adaptação. O escritor conhecera Frank Darabont quando o roteirista e diretor, que mais tarde também faria À Espera de um Milagre (1999) e O Nevoeiro (2007), o procurou para transformar o conto The Woman in the Room em um curta-metragem, em 1983. King, que tem a política de permitir que aspirantes a cineastas adaptem seus contos por apenas US$ 1, ficou bastante impressionado com o trabalho de Darabont, e os dois começaram uma amizade por cartas. Eles se conheceram pessoalmente quando o diretor decidiu levar para o cinema a história Rita Hayworth and Shawshank Redemption. King recebeu um cheque de US$ 5 mil, que acabou emoldurado e enviado a Darabont com um bilhete: "Caso você precise de dinheiro de fiança. Amor, Steve".
2) Rob Reiner ofereceu US$ 2,5 milhões pelo roteiro de Frank Darabont. Diretor de duas adaptações de Stephen King — Conta Comigo (1986) e Louca Obsessão (1990) —, Reiner gostou tanto do roteiro escrito por Darabont que ofereceu uma bolada de dinheiro para dirigir o filme. O roteirista chegou a considerar a proposta, mas concluiu que era a sua "chance de fazer algo realmente bom".
3) Clint Eastwood, Harrison Ford, Paul Newman e Robert Redford foram cotados para o papel de Morgan Freeman. No original de King, o personagem de Freeman é um irlandês ruivo de meia-idade. Darabont, porém, diz que sempre teve o ator negro em mente por conta da sua presença dominante e a sua voz profunda. No filme, eles mantiveram a explicação de Red para o seu apelido — "Talvez seja porque sou irlandês"— como uma piada.
4) Tom Hanks, Kevin Costner, Tom Cruise, Nicolas Cage, Johnny Depp e Charlie Sheen estiveram no páreo para interpretar Andy Dufresne. Hanks, que trabalharia com Darabont em À Espera de Um Milagre, recusou o filme pois estava envolvido em Forrest Gump, e Costner não aceitou o papel pois estava filmando Waterworld: O Segredo das Águas (1995) — depois, o ator confessou se arrepender da decisão. Brad Pitt foi considerado para o papel de Tommy Williams (que ficou com Gil Bellows), mas preferiu estrelar Entrevista Com o Vampiro (1994).
5) O título original da novela de Stephen King atraiu gente interessada em encarnar Rita Hayworth, que não é uma personagem no filme. Nos testes, houve até um rapaz em momento drag queen. Um dos maiores símbolos sexuais de Hollywood, a atriz (1918-1987) só aparece na forma de um pôster, pedido por Andy a Red, e em cenas de Gilda (1946), clássico do cinema noir a que os presidiários assistem em Shawshank.