Desde a confirmação do primeiro caso de coronavírus no Brasil, o desacerto entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, era evidente. A relação oscilou entre momentos de tensionamento e de ajuste de discurso até que, nesta quinta-feira (16), terminou com a demissão de Mandetta.
Relembre os principais encontros e desencontros de Bolsonaro e Mandetta ao longo da crise:
26 de fevereiro
Luiz Henrique Mandetta
O Ministério da Saúde anunciou o primeiro caso de coronavírus no Brasil. "É uma gripe, mais uma gripe que vamos atravessar. (O caso) aumenta nossa vigilância e preparativos para o atendimento", disse Mandetta. O Brasil já estava no nível mais elevado de alerta do sistema de vigilância epidemiológica após o ministério decretar situação de emergência nacional na saúde pública.
27 de fevereiro
Jair Bolsonaro
O dólar bateu recorde nominal, chegando a R$ 4,477, e Bolsonaro culpou o coronavírus pela alta. "Estamos tendo problemas nesse vírus, o coronavírus. O mundo todo está sofrendo", declarou.
10 de março
Jair Bolsonaro
Em viagem aos Estados Unidos, o presidente minimizou a crise global. "Obviamente, temos, no momento, uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo", afirmou.
11 de março
Jair Bolsonaro
O presidente voltou a diminuir a gravidade da pandemia. "Vou ligar para o Mandetta. Eu não sou médico, não sou infectologista. O que eu ouvi até o momento é que outras gripes mataram mais do que esta", declarou.
Luiz Henrique Mandetta
No mesmo dia, após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar pandemia pelo coronavírus, Mandetta afirmou que a entidade "demorou" a adotar a medida. Questionado sobre as orientações à circulação de pessoas, disse que "cada Estado" faria "sua ponderação no momento certo".
12 de março
Jair Bolsonaro
Bolsonaro apareceu de máscara ao lado de Mandetta em transmissão ao vivo pelas redes sociais. Depois, em pronunciamento em rede nacional, sugeriu que as manifestações contrárias ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF) marcadas para o domingo seguinte fossem "repensadas". "Há recomendação das autoridades sanitárias para que evitemos grandes concentrações populares. Queremos um povo atuante e zeloso com a coisa pública, mas jamais podemos colocar em risco a saúde da nossa gente", disse.
13 de março
Luiz Henrique Mandetta
Mandetta participou de coletiva de imprensa ao lado do governador de São Paulo, João Doria, potencial adversário de Bolsonaro na eleição de 2022. O presidente, que já havia demonstrado desconforto com a participação do subordinado em reuniões privadas com Doria e o governador do Rio, Wilson Witzel, irritou-se.
15 de março
Jair Bolsonaro
Ignorando sua própria recomendação, o presidente estimulou a ida de apoiadores nas manifestações e participou do ato em Brasília. Bolsonaro teve contato com ao menos 272 pessoas, tocando em simpatizantes e pegando seus celulares para selfies, na contramão da orientação de quarentena após retornar dos Estados Unidos. À noite, classificou de "extremismo" e "histeria" medidas adotadas para controlar a pandemia e sugeriu que existem "interesses econômicos" por trás da crise.
Luiz Henrique Mandetta
Declarou que a orientação para evitar aglomerações servia para todos. "É ilegal? Não. Mas a orientação é não. E continua sendo não para todo mundo". A fala desagradou Bolsonaro, que disse a interlocutores que gostaria que o ministro tivesse saído em sua defesa. "Todo mundo tem que fazer sua parte", acrescentou o Mandetta.
17 de março
Jair Bolsonaro
Na tentativa de esvaziamento do Ministério da Saúde, o presidente nomeou o chefe da Casa Civil, Walter Braga Neto, para coordenar o comitê de crise montado para o enfrentamento da pandemia. Também reforçou que há "histeria" por causa da doença e disse que faria uma "festinha" para comemorar seu aniversário no final de semana, contrariando a orientação de restringir o contato social. Para o presidente, "a vida continua, não tem que ter histeria. Não é porque tem uma aglomeração de pessoas aqui e acolá esporadicamente que tem que ser atacado exatamente isso".
Luiz Henrique Mandetta
Disse que o pico de coronavírus no país aconteceria entre 60 e 90 dias e que medidas restritivas poderiam ser endurecidas no período. Segundo Mandetta, assuntos relacionados a bloqueios e quarentenas que "afetam a agricultura, a segurança e a logística nacional" seriam discutidos pelo gabinete de crise. No mesmo dia, assinou portaria prevendo punições para quem descumprir ordens das autoridades médicas e sanitárias. No Twitter, publicou: "Não podemos deixar isso se transformar em histeria e desespero! Calma, serenidade, prevenção e ações eficazes são armas importantes para superarmos o coronavírus".
18 de março
Jair Bolsonaro
Reconheceu que a crise é grave, mas pediu que se evite "histeria". Disse que, como chefe de Estado, deve levar tranquilidade à população. "Já tivemos problemas mais graves no passado que não tiveram essa comoção toda, repercussão toda, por parte da mídia brasileira. O momento agora é de união de todos, de reflexão, de buscar soluções. A verdade está aí. É uma questão grave, mas não podemos entrar no campo da histeria", declarou.
Luiz Henrique Mandetta
Ao aparecer em coletiva de imprensa ao lado de Bolsonaro e de outros ministros usando máscara, coube a Mandetta explicar o uso da proteção, criticado por especialistas pelo uso incorreto. "Ontem, trabalhei com o general (Augusto) Heleno (ministro do Gabinete de Segurança Institucional), que testou positivo. Estamos nos comportando como se fôssemos profissionais de saúde. O uso dessa máscara não é nada fora do que é planejado pela saúde", disse.
20 de março
Luiz Henrique Mandetta
Em nova coletiva ao lado do presidente, reforçou a importância do distanciamento social e afirmou que o final de semana seria "um grande teste para ver se as pessoas estão colaborando com o isolamento para evitar que o novo coronavírus se espalhe". Também afirmou que o fechamento de divisas pelos Estados seria centralizado pelo governo federal, criticando governadores que interditaram rodovias e aeroportos. "Colapso pode acontecer não só por causa da saúde." Declarou haver contágio comunitário da doença no país e que o sistema de saúde entrará em colapso no final de abril.
21 de março
Jair Bolsonaro
Disse que Mandetta havia exagerado no controle do coronavírus e negou que ocorrerá um colapso no sistema de saúde do país. "O Mandetta, num primeiro momento, eu estava achando que ele estava exagerando. Tanto é que ele foi bastante questionado ontem quando falou uma palavra que não era adequada para aquele momento, foi o colapso, e ele explicou perfeitamente. É isso apenas que tenho conversado com ele, acertando os ponteiros", afirmou. Novamente, acusou governadores de causarem desemprego.
22 de março
Jair Bolsonaro
Culpou a mídia e os governadores pela crise. Em entrevista, declarou que "brevemente, o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus. Espero que não venham me culpar lá na frente pela quantidade de milhões e milhões de desempregados".
23 de março
Jair Bolsonaro
Após críticas aos governadores, mudou o tom, fazendo videoconferências com Estados, anunciando medidas para enfrentamento da pandemia e apontando a necessidade de união. Parabenizou os governadores pela "cooperação" e pelo "entendimento" e implementou um pacote para socorrê-los, incluindo a suspensão do pagamento da dívida com a União e a manutenção dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios.
24 de março
Jair Bolsonaro
Em pronunciamento em rede nacional, elogiou o trabalho de Mandetta, mas contradisse a OMS, além da comunidade médica e das autoridades sanitárias. Bolsonaro criticou o fechamento de escolas e comércio, atacou governadores e culpou a imprensa pelo clima de "histeria". Mais uma vez, minimizou a gravidade da covid-19 e comparou a doença a uma "gripezinha" ou "resfriadinho". "O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade", defendeu.
Luiz Henrique Mandetta
Disse que o "o travamento do país é péssimo para a área da saúde". Seguindo discurso de Bolsonaro, também afirmou que alguns governadores "passaram do ponto" nas iniciativas de isolamento e fechamento de atividades.
25 de março
Jair Bolsonaro
Na porta do Palácio da Alvorada, anunciou que pediria ao Ministério da Saúde que orientasse o isolamento apenas de pessoas dos grupos de risco — doentes crônicos e idosos — e de contaminados, o chamado isolamento vertical.
Luiz Henrique Mandetta
Em pronunciamento, assegurou que permaneceria no cargo e que sairia apenas quando o presidente achasse que ele não servisse mais ou se ficasse doente. Mandetta também defendeu o discurso de Bolsonaro do dia anterior, criticando que as medidas de isolamento aconteceram de maneira "desorganizada" e "precipitada" e demonstrando preocupação com a atividade econômica do país. "Temos que melhorar esse negócio de quarentena", afirmou.
28 de março
Luiz Henrique Mandetta
Em reunião no Palácio da Alvorada com Bolsonaro e ministros, pediu ao presidente que não diminua a gravidade da pandemia e reafirmou que não apoiaria a tese de isolamento vertical. Além disso, criticou as carreatas organizadas pelo país pedindo a retomada de atividades.
29 de março
Jair Bolsonaro
O presidente saiu às ruas e conversou com diversas pessoas em cidades da região de Brasília. Ao retornar ao Alvorada, disse que estudava um decreto para determinar a retomada das atividades no país, como aulas, comércio e circulação de pessoas.
30 de março
Luiz Henrique Mandetta
No dia seguinte ao passeio de Bolsonaro, o governo alterou as entrevistas coletivas realizadas diariamente pelo Ministério da Saúde para atualizar informações sobre a pandemia. Ao invés de serem comandadas por Mandetta, passaram a ser realizadas no Palácio do Planalto, sob liderança de Braga Netto. Na coletiva, o militar defendeu a permanência de Mandetta no cargo, mas encerrou a entrevista antes que o ministro respondesse sobre a quebra do isolamento protagonizada pelo presidente.
2 de abril
Jair Bolsonaro
O presidente admitiu que tem divergências com o ministro da Saúde no combate à pandemia. Bolsonaro disse em entrevista que falta humildade para o titular da pasta. Quando questionado sobre quais momentos Mandetta teria de ouvi-lo mais, Bolsonaro disse que "alguns profissionais" do Ministério da Saúde ajudaram a estabelecer um clima de histeria e pânico e defendeu o isolamento somente de grupos de risco.
Luiz Henrique Mandetta
O ministro jantou com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Os dois líderes do Legislativo recusaram convite para jantar com Bolsonaro na mesma noite.
3 de abril
Jair Bolsonaro
Pesquisa Datafolha apontou que a gestão de Bolsonaro na crise do coronavírus é aprovada por 33% das pessoas, e reprovada por 39%. O instituto também mostrou que 76% consideraram que as ações do Ministério da Saúde são ótimas ou boas e 5%, ruins ou péssimas.
Luiz Henrique Mandetta
O ministro comentou as críticas do presidente. Disse à colunista de GaúchaZH Kelly Matos que "médico não abandona seu paciente".
5 de abril
Jair Bolsonaro
O presidente voltou a demonstrar insatisfação com a equipe da Saúde. Em vídeo gravado em frente ao Palácio da Alvorada com um grupo de religiosos, disse que algo subiu a cabeça dos integrantes do seu governo. Porém, ao sugerir uma possível demissão no futuro, cometeu ato falho e fala no singular: "A hora dele não chegou ainda, mas vai chegar. A minha caneta funciona".
6 de abril
Jair Bolsonaro
A informação de que a demissão de Mandetta estaria definida aumentou a tensão entre o presidente e seu auxiliar. Em reunião ministerial no Planalto, Bolsonaro defendeu união da equipe, mas deixou evidentes as diferenças com o responsável pela Saúde. A ala militar teria evitado a demissão do ministro, que também recebeu apoio do Legislativo e do Judiciário.
Luiz Henrique Mandetta
Em pronunciamento após a reunião, o ministro foi aplaudido pela equipe e assegurou que permaneceria no cargo. "Continuando, vamos enfrentar o nosso inimigo. Nosso inimigo tem nome e sobrenome: covid-19", disse. Mandetta afirmou que teve uma reunião "muito produtiva" com o governo, mas declarou que reiterou a necessidade do isolamento social e mostrou incômodo com as críticas que "trazem dificuldade" ao ambiente. Também saiu em defesa da ciência e mencionou a leitura do Mito da Caverna, uma alegoria entre o conhecimento e o obscurantismo.
8 de abril
Jair Bolsonaro
Em pronunciamento, Bolsonaro anunciou que o governo irá importar insumos para produzir hidroxicloroquina. O medicamento, contudo, está em fase de testes, e o Ministério da Saúde aponta dúvidas sobre sua eficiência e seu risco. O presidente ainda voltou a responsabilizar governadores e prefeitos por medidas restritivas.
9 de abril
Jair Bolsonaro
Em mais uma demonstração de descumprimento às recomendações das autoridades sanitárias, Bolsonaro foi a uma padaria na Asa Norte de Brasília. O presidente abraçou apoiadores, comeu um sonho e causou aglomeração. Também ouviu vaias e gritos. Trata-se do mesmo estabelecimento que costuma ser frequentado por Mandetta. Por isso, o ministro encarou a atitude do presidente como uma armadilha. No dia seguinte, Bolsonaro passeou por Brasília. O presidente foi flagrado limpando o nariz e, em seguida, cumprimentando apoiadores. Entre eles, uma idosa que usava máscara.
11 de abril
Jair Bolsonaro
Novamente, o presidente ignorou as recomendações e gerou aglomerações. Bolsonaro visitou a obra de um hospital de campanha em Águas Lindas de Goiás (GO). De longe, Mandetta acompanhou a movimentação de seu chefe e criticou seu comportamento.
12 de abril
Luiz Henrique Mandetta
O ministro concedeu uma entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, considerada o estopim da crise. Mandetta defendeu que o governo federal tenha "uma fala única" no combate ao coronavírus e disse que o "brasileiro não sabe se escuta o ministro ou o presidente". Na conversa, direcionou uma série de indiretas a Bolsonaro, mencionando, por exemplo, que "quando você vê as pessoas entrando em padaria, em supermercado, grudadas, é claramente uma coisa equivocada".
14 de abril
Luiz Henrique Mandetta
Mandetta admitiu a assessores que errou ao conceder entrevista ao Fantástico com críticas indiretas ao presidente. O ministro perdeu o apoio da ala militar do governo e reconheceu a interlocutores próximos que sua permanência no cargo estava novamente ameaçada. No dia anterior, orientado pelo Palácio do Planalto, não participou da coletiva de imprensa diária sobre a pandemia.
15 de abril
Jair Bolsonaro
Pela manhã, em frente ao Palácio da Alvorada, o presidente disse que resolverá "a questão da Saúde" para "tocar o barco". A apoiadores, declarou que está "fazendo a sua parte". Nos bastidores, acelerou a escolha pelo substituto.
Luiz Henrique Mandetta
Mandetta concedeu sua última entrevista coletiva em tom de despedida. Ele admitiu o descompasso com Bolsonaro, afirmou que foi procurado por cotados para o ministério e disse que sua equipe permaneceria unida até o fim. Depois, em entrevista à Revista Veja, declarou que estava há 60 dias "nessa batalha". "Isso cansa! Sessenta dias tendo de medir palavras. Você conversa hoje, a pessoa entende, diz que concorda, depois muda de ideia e fala tudo diferente. Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né? Já ajudamos bastante", disse.