A enésima reunião diária sobre a pandemia do coronavírus recém havia começado no auditório do Ministério da Saúde quando Luiz Henrique Mandetta contou aos secretários que havia lido A Peste no final de semana. De autoria do franco-argelino Albert Camus, o romance narra a história de uma epidemia que mata habitantes de Orã, na Argélia, e leva o prefeito a colocar toda a cidade de quarentena.
— Vamos viver momentos muito difíceis — declarou o ministro da Saúde à equipe.
Publicado em 1947, o livro transformou-se em best seller na Europa em meio à crise global da covid-19. Dias após a leitura do ministro, os casos no Brasil se multiplicaram, ultrapassando a barreira dos 500 pacientes, e as primeiras mortes foram registradas. Mandetta decidiu que era hora de recrudescer, subindo o tom dos alertas para que a população ficasse em casa.
Aos 55 anos, ele tornou-se protagonista do maior desafio sanitário da história recente, administrando a proliferação de uma doença letal em um país de proporções continentais. Referência do governo na crise, o ministro adotou uma postura técnica e sem ideologia, seguindo protocolos internacionais e colhendo elogios da classe política e da comunidade médica. Segundo o Datafolha, é mais bem avaliado pela população na condução da pandemia do que o presidente, Jair Bolsonaro.
— Sinceramente, neste momento ele deveria ser considerado pelos brasileiros o presidente da República em exercício — propõe o presidente da Unimed Campo Grande (MS), Maurício Simões Corrêa, ex-colega do ministro.
Nascido na capital sul-mato-grossense, Mandetta é o caçula dos cinco filhos de Maria Olga e Hélio, médico referência em ortopedia no Estado. Passou a infância nas ruas vermelhas de Campo Grande, atirando mamonas em andorinhas e em pardais com estilingue.
Deixou o Centro-Oeste aos 17 anos, quando se mudou para o Rio para cursar Medicina na Universidade de Gama Filho. Em meio aos encontros da União Sul Mato-Grossense de Estudantes e às partidas do Botafogo, conheceu a esposa, Terezinha.
Seguindo o currículo do pai, especializou-se em ortopedia. Estudou em Atlanta, nos Estados Unidos, antes de retornar a seu Estado. Fez carreira médica em Campo Grande, atuando nos hospitais do Exército e Universitário e na Santa Casa. Não tardou a despontar como liderança da categoria, comandando um grupo de doutores que derrubou a hegemonia de profissionais mais antigos no comando da Unimed da cidade. Em 2001, tornou-se o mais jovem presidente da cooperativa.
Nativo de uma oligarquia (é primo de senador, de deputado e de prefeito), o ministro teve seu primeiro cargo público em 2005, na prefeitura do primo, Nelsinho Trad (PSD-MS), hoje senador e o primeiro integrante do Congresso a testar positivo para covid-19 após retornar dos Estados Unidos na comitiva de Bolsonaro. Mandetta foi nomeado secretário de Saúde de Campo Grande, enfrentando um grave surto de epidemia de dengue.
Trabalhava das 6h às 2h, indo às ruas para dizer à população que não deixasse água parada. Saiu da crise em alta, viajando pelo país para dar palestras sobre o controle do mosquito. Para o primo Hélio Mandetta, o Aedes aegypti foi seu teste para o coronavírus:
— À época, era "limpem suas casas". Agora, é "fiquem nas suas casas".
Na secretaria, Mandetta foi investigado, em 2008, por suposta fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois na implementação de um sistema informatizado de saúde. Até hoje, não há denúncia do Ministério Público, e o ministro nega irregularidades.
Sem nunca ter concorrido a um cargo público, lançou-se a deputado federal dois anos depois, rejeitando os conselhos de que, inicialmente, deveria tentar uma cadeira na Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Repetia que sua discussão, a saúde, estava em Brasília.
Hélio foi o coordenador da campanha, ligando o primo à imagem de seu homônimo tio, conhecido por ter feito 65 mil atendimentos no Estado. Em santinhos, Mandetta aparecia ao lado do pai e do slogan "voto saudável". Elegeu-se com mais de 78 mil votos.
Na Câmara, cumpriu dois mandatos. Ganhou destaque ao presidir a Comissão de Seguridade Social e Família, mas ficou mais conhecido em 2013, ao fazer oposição ao governo Dilma Rousseff e declarar que a vinda de cubanos para o Mais Médicos era um "navio negreiro do século 21". Em 2018, ao discordar do andamento do partido no Mato Grosso do Sul, anunciou que não concorreria à Câmara novamente.
Saída do Congresso e apoio a Bolsonaro
Depois de oito anos em Brasília, distante de Terezinha e dos três filhos (Marina, Pedro Henrique e Paulo Henrique), declarou-se para a esposa pelo Facebook. "Agora, é hora de voltar para ela. Hora de quem mais amo: ela! Qualquer desafio de agora em diante só será possível se ela estiver ao meu lado. Chega de distância! Pode armar o coreto e preparar aquele feijão preto que eu 'to' chegando." O anunciado retorno a Campo Grande, contudo, foi adiado.
Mandetta aproximou-se de Bolsonaro durante a campanha eleitoral e sugeriu propostas para a saúde. Do grupo político da hoje ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), sua conterrânea, teve seu nome especulado e recebeu o respaldo de entidades médicas, hospitais filantrópicos e deputados ligados à saúde. Em 20 de novembro de 2018, depois de encontro com representantes do setor no Centro Cultural Banco do Brasil, sede de transição do presidente eleito, foi anunciado ministro de uma pasta com orçamento de R$ 128,2 bilhões.
— Foi uma escolha acertada. Mandetta não tem omitido fatos, está sendo muito claro em todo o processo, mesmo que nem todos queiram ouvir o que ele vem falando — analisa a coordenadora da Frente Parlamentar Mista da Saúde, deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC).
Atento aos sinais emitidos da China, Mandetta alertou a equipe em janeiro. Após o primeiro caso de coronavírus ser confirmado no Brasil, em 26 de fevereiro, passou a comandar coletivas de imprensa diárias e a encaminhar estratégias de enfrentamento à pandemia, cobrando mais orçamento para sua área. Pela equipe, é descrito como exigente. Tem se mantido sereno, mas quando uma iniciativa esbarra na burocracia, irrita-se e pede agilidade.
— Esse é um momento de exceção — insiste aos subordinados.
O protagonismo, porém, causou desconforto no chefe, que tem adotado discurso divergente do ministério. Bolsonaro classificou de "histeria" os cuidados com a pandemia e comparou a covid-19 a uma "gripezinha". A auxiliares, o presidente sinalizou o desejo de que Mandetta adotasse um discurso mais alinhado a ele, acalmasse a população e insistisse que a economia não pode parar.
Bolsonaro incomodou-se pela aparição de Mandetta ao lado do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), potencial candidato à Presidência em 2022, em entrevista sobre a doença. Também se irritou quando o ministro desaprovou sua ida aos protestos contra o Congresso, na qual desrespeitou o período de isolamento após retornar dos Estados Unidos.
— Aquilo, para mim, foi perfeito. Geralmente, quando você está do lado do seu chefe, pelo menos tosse, se engasga. Ele nem embargou a voz — comenta o prefeito de Campo Grande, Marquinhos Trad (PSD), também primo de Mandetta.
Em resposta, Bolsonaro tentou esvaziar o trabalho do ministério. Escolheu o chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, para coordenar o comitê do coronavírus no governo federal e anunciou que o país produzirá hidroxicloroquina mesmo sem testes conclusivos no tratamento à covid-19.
Para interlocutores, os sinais provocaram uma mudança de estratégia de Mandetta, que incorporou uma postura mais cautelosa para escapar de complicações. Passou a consultar Bolsonaro antes de entrevistas e, em algumas delas, a defendê-lo.
Na emblemática coletiva em que Bolsonaro e ministros apareceram de máscara, recebendo críticas de infectologistas, coube a Mandetta dar explicações. Disse que o uso seguia protocolo "técnico". Depois, ele também desobrigou o presidente de apresentar seu teste negativo para covid-19, argumentando que o exame "é do paciente".
Analistas avaliam que Mandetta sentiu a fritura e politizou o discurso. Menos ponderado, porém, foi criticado por modular o celebrado posicionamento técnico.
— Em alguns momentos, ele está cuidando seu comportamento, mas até o limite de sua responsabilidade. Não será irresponsável para atender a esse sentimento imaturo — diz um interlocutor.