Aos 50 anos, o economista Aod Cunha carrega no currículo o feito de ter conseguido equilibrar as contas do Estado entre 2007 e 2009, quando comandou a Secretaria da Fazenda, na gestão de Yeda Crusius (PSDB) – algo que jamais se repetiu. Agora, volta à cena como um dos principais conselheiros do governador eleito Eduardo Leite (PSDB).
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Convencido de que a crise do Estado não tem solução sem "união e consenso", Aod diz que o grande desafio de Leite será convencer a sociedade de que é preciso persistir no ajuste das contas. Embora considere inviável a promessa do futuro chefe do Executivo de pagar a folha dos servidores em dia em 2019, o ex-secretário aposta no talento do amigo para vencer dificuldades e mobilizar aliados – inclusive no MDB de José Ivo Sartori, adversário na eleição, e no PT de Tarso Genro, refratário ao ideário liberal. Aod também defende o engajamento de Leite e de outros governadores na briga pela reforma da Previdência, em Brasília.
Convidado a participar da nova gestão, ele decidiu continuar nos bastidores, "ajudando no que for preciso". Com compromissos em São Paulo (onde atua em conselhos de administração e na boutique de investimentos We Capital), o ex-secretário só tem olhos para a primogênita Victoria. A racionalidade do doutor em Economia some por completo – e dá lugar a lágrimas – quando ele fala da filha recém-nascida, que visita todos os finais de semana em Porto Alegre.
— É minha prioridade — justifica, orgulhoso.
O que esperar da política econômica do governo Bolsonaro, considerando as contradições externadas desde a campanha, as polêmicas e os recuos?
Há grande expectativa sobre como a política econômica será conduzida. O mercado está esperando um sinal concreto sobre o encaminhamento da reforma da Previdência. Ainda que o país tenha enormes desafios para voltar a crescer, no curto prazo, o grande desafio é resolver o problema fiscal, que é gravíssimo. A dívida pública está passando de 80% do PIB e pode chegar a 100% em 2023. Grande parte disso se explica pelo déficit previdenciário. Acho, inclusive, que os governadores deveriam se unir em torno dessa causa, porque é do interesse de todos.
O mercado apoiou a eleição de Bolsonaro, mas dá sinais de que a lua de mel tem prazo de validade. Até onde vai a trégua?
A trégua tem prazo relativamente curto. É normal que o mercado esteja otimista, porque temos um presidente novo e um discurso, do ponto de vista econômico, mais liberal, especialmente do Paulo Guedes (futuro ministro da Economia). Mas, até o final do primeiro ou do segundo trimestre de 2019, exigirá sinais concretos. A sinalização de uma reforma pequena, com foco apenas na mudança da idade mínima, é pouco.
Qual seria a reforma ideal?
A nova proposta entregue a integrantes do atual e do futuro governo por Armínio Fraga (ex-presidente do Banco Central) e Paulo Tafner (economista e especialista no tema) é muito boa, desde que seja realmente discutida. Qualquer proposta muito reduzida é um problema. Se o Congresso aprovar algo pontual agora, acho difícil que volte ao assunto em 2019.
Fora do país, há preocupação com os rumos do Brasil e dúvidas sobre as mudanças na política externa e seus impactos na economia. Há motivos para isso?
Precisamos esperar. Minha intuição é de que, aos poucos, o novo presidente vai aprender com as mensagens equivocadas. As declarações precipitadas tendem a ser reequilibradas. Do ponto de vista do discurso econômico, há aspectos positivos, como a intenção de abrir a economia, mas ainda há dúvidas sobre como implementar as boas ideias. Esse será o grande desafio.
Como avalia a proposta de criação de um super ministério da Economia, com Paulo Guedes à frente?
No momento em que o tema do ajuste fiscal é tão relevante, não há dúvida de que ter uma estrutura ligada à Fazenda com força e capacidade de execução é importante. Agora, ter três ministérios juntos, com quase 90 secretarias, vai exigir enorme capacidade de gestão. A questão é: como executar isso.
Pode dar certo?
Ainda quero ver um pouco mais para responder com segurança.
Com a mudança de comando no Palácio do Planalto, pode haver maior sensibilidade em relação aos Estados em crise?
O desequilíbrio fiscal dos Estados será um dos temas predominantes nos próximos meses. Todos sabem que Rio, Minas e Rio Grande do Sul estão em piores condições, mas o conjunto dos Estados caminha para a mesma direção. O governo federal vai ser muito pressionado a apresentar uma solução agregada. No governo Temer, isso foi equacionado de forma emergencial com o regime de recuperação fiscal, mas o agravamento da crise vai exigir mais.
O que pode ser feito?
Será preciso criar uma engenharia parecida com a que ocorreu no fim da década de 90. Na época, a União assumiu as dívidas dos Estados, criou os mecanismos da lei de responsabilidade fiscal e passou a monitorar o ajuste. Isso funcionou por um tempo, mas ruiu a partir das brechas no cumprimento da lei, principalmente dos critérios de gastos com pessoal.
O fato de haver dois gaúchos no núcleo duro do governo – Onyx Lorenzoni e o general Hamilton Mourão – pode ajudar o Rio Grande do Sul?
Como gaúcho, espero que sim. Onyx conhece muito o Estado. É um parlamentar atuante e acho que terá um olhar especial para cá, mas os dois assumirão responsabilidade maior, com o Brasil. Os gaúchos não devem esperar que seus problemas sejam resolvidos apenas pela União.
O atual chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, também é gaúcho, mas nem por isso o Estado conseguiu aderir ao regime de recuperação fiscal. Por que seria diferente?
É um autoengano gaúcho esperar que a solução venha de Brasília. É importantíssimo ter essa interlocução, mas a verdade é que o Estado tem de fazer sua parte. As pessoas que estão lá, por mais que tenham boa vontade, não podem resolver tudo só porque são daqui.
Em que bases o governador eleito Eduardo Leite deve negociar a adesão do Estado ao regime de recuperação fiscal?
Houve um enorme esforço do governador Sartori para avançar nas negociações. É importante que se diga isso. Muito das dificuldades tem relação com questões que pararam no Parlamento gaúcho, como o tema das privatizações. Olhando de longe, acredito que a definição do acordo vai ficar com os novos eleitos. O governo federal vai querer fazer um desenho geral mais amplo, que pode ser favorável ao Estado.
A adesão é mesmo imprescindível? Já não pagamos a dívida e, ainda assim, as dificuldades persistem.
Se estivéssemos pagando, talvez o atraso nos salários fosse de dois ou três meses, e não de um mês. E vale lembrar que só não estamos pagando por uma liminar temporária, que pode cair a qualquer momento. Os gaúchos precisam se convencer de que a saída para crise é persistir no esforço de ajuste das contas. Digo isso há mais de 10 anos. O gasto público tem de caber na arrecadação. Qualquer coisa fora disso é solução transitória. É como cavar um buraco cada vez maior. Por que seguimos nesse caminho? Essa é a discussão que precisamos fazer.
Não é uma discussão fácil.
Mas vai ser difícil sair do buraco enquanto continuarmos esperando que o próximo governador seja um salvador da pátria e que todas as demandas sejam atendidas. O desafio do Eduardo é mobilizar a sociedade em favor do ajuste.
Todos sabem do tamanho da crise e, nesse exato momento, há projetos na Assembleia prevendo o aumento da folha dos poderes. Isso mostra imaturidade. Os problemas do Estado não serão resolvidos por milagre ou por uma solução do governo federal.
AOD CUNHA
Ex-secretário da Fazenda
Seria o momento de rever benefícios salariais dos servidores?
É uma discussão a ser feita. O principal gasto do Estado é com pessoal, e o Rio Grande do Sul gasta com inativos mais do que com ativos. É insustentável. As folhas encostaram uma na outra, e a situação tende a piorar. Talvez seja necessário estabelecer uma contribuição mensal adicional aos servidores, ainda que com prazo determinado, para fazer frente a esse gasto.
E as privatizações? Leite fala em vender CEEE, CRM e Sulgás, mas promete preservar o Banrisul. O que acha?
Esse é um dos pontos que já conversei com ele. O Estado brasileiro, de um modo geral, acumulou funções demais e deixou de cumprir de forma satisfatória os serviços básicos. Isso precisa ser revisto. Há muito espaço para privatizações, inclusive no Rio Grande do Sul. Precisamos ter um banco comercial? Acho que não. Mas o Eduardo tem de fazer escolhas, e a posição é muito defensável.
A situação financeira do Estado é pior, hoje, do que quando o senhor foi secretário da Fazenda, entre 2007 e 2009?
A situação financeira do Estado piorou, sim. Hoje, o déficit é maior do que no passado e há um esgotamento das fontes de financiamento desse déficit. Eduardo assumirá o Estado em condições muito difíceis.
Naquela época, o senhor conseguiu reequilibrar as contas. Hoje, isso é possível?
Infelizmente, nesse momento, não é possível atingir o equilíbrio no segundo ano de governo, como nós fizemos. Será necessário um esforço mais longo. O grande desafio é convencer a sociedade de que é preciso persistir no esforço de ajuste e, em paralelo, ter uma agenda mais qualificada de discussão do desenvolvimento econômico. Se a gente ficar só na agenda fiscal, será difícil resistir por muito tempo.
Que conselhos tem dado a Leite na área das finanças?
Conheci o Edu há pouco mais de dois anos, quando ele voltou de um curso em Columbia, Nova York. Desde então, ele me procura para conversar sobre os desafios do Estado. As discussões são variadas e nem sempre concordamos em tudo. Eu, pessoalmente, não abriria mão da receita das atuais alíquotas de ICMS daqui a dois anos, como ele propõe, e acho muito difícil colocar a folha em dia no primeiro ano.
Pagar os salários dos servidores em dia em 2019 é inviável?
De maneira respeitosa, eu sempre disse isso. Não acredito nessa possibilidade, mas pode acontecer algo extraordinário. Eduardo é mais otimista do que eu, tem a energia que a idade confere para esse novo desafio e tem várias qualidades.
Quais?
A principal é a que mais precisamos: uma capacidade política muito grande. Isso será fundamental atrair bons quadros e políticos de outros partidos, inclusive do atual governo. Seria muito saudável ver o MDB, que tem ótimo quadro técnico, e o governador Sartori ajudando na tarefa. Há novos e jovens deputados comprometidos com reformas e modernização da gestão pública, como os dois deputados eleitos pelo Novo. Outra coisa: por que não atrair, também, o PT?
Leite está fazendo isso na Assembleia. É o caminho?
É o caminho não só para o Estado, mas para o Brasil. Num país tão polarizado, é vital buscar consensos, como fizemos em torno do controle da inflação. Ainda não conseguimos instituir responsabilidade fiscal como valor para a sociedade, mas acredito nisso. Há gente boa, bem intencionada, em todos os partidos.
Muitos pactos já foram feitos e não deram certo.
Sim, mas se não rompermos esse estado atual de comportamento político não vamos resolver o problema. Tenho esperança de que talvez estejamos mais maduros agora. Está todo mundo cansado, no Rio Grande do Sul, de ouvir que o Estado não tem mais dinheiro. Esse cansaço pode ser o combustível para darmos um salto.
Os gaúchos tinham orgulho do que era o Estado há 40, 50 anos. Temos de explorar esse sentimento. Precisamos de união e consenso para tirar o Estado do buraco.
AOD CUNHA
Ex-secretário da Fazenda
Por que o senhor não aceitou convite para integrar o governo Leite? Essa possibilidade está mesmo descartada?
Está descartada desde a primeira vez que o Edu veio conversar comigo. Sempre vou estar disposto a ajudar o Estado, tenho minha família morando aqui, mas não tenho condições de assumir um cargo. Já não tinha condições antes, do ponto de vista profissional. Agora, tenho a Victoria (filha recém-nascida de Aod) e quero ter tempo livre para ela. É minha prioridade.
Qual deve ser o perfil do novo secretário da Fazenda?
É importante dosar as expectativas sobre o que um bom secretário pode fazer. Eu só pude fazer o que fiz porque tive enorme respaldo da governadora e porque tinha uma equipe muito boa e afinada no governo. Aprendi que não há capacidade técnica que sobreviva sem suporte político. Isso é fundamental. Tem de ser alguém que conheça o tema, que já tenha sido testado em posição semelhante e que encare isso como missão de vida.