Único secretário da Fazenda a tirar o Rio Grande do Sul do vermelho nos últimos 15 anos, Aod Cunha decidiu quebrar o silêncio após quase seis anos longe do governo. Radicado em São Paulo, onde atua como sócio do banco de investimentos BTG Pactual, o colorado de 47 anos estará de volta à Capital na próxima semana para encerrar o 20º Encontro dos Economistas da Região Sul, na Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Na palestra marcada para sexta-feira, abordará o cenário de incertezas que domina o país.
Mesmo longe, Aod acompanha com preocupação o agravamento da crise nas finanças do RS. Em 2007, ao assumir o comando da Fazenda no governo Yeda Crusius (PSDB), foi obrigado a parcelar a folha do funcionalismo - tal como o governador José Ivo Sartori (PMDB), na última sexta-feira. A diferença, segundo ele, é que as dificuldades se aprofundaram. Hoje, o Estado "é uma Grécia sem os países ricos do euro para ajudar", avalia Aod.
Sob duras críticas da oposição, ele e sua equipe conseguiram atingir o "déficit zero" em 2008, mas o equilíbrio durou pouco. Desde 2010, os gastos voltaram a superar a arrecadação e saíram do controle. Agora, com a economia em retração e o esgotamento das fontes de financiamento, a conta estourou.
A pedido de ZH, em uma conversa de duas horas na capital paulista, Aod fez um diagnóstico da atual situação, falou sobre o passado e projetou o futuro do Rio Grande do Sul. A receita do ex-secretário para superar a crise envolve um conjunto de medidas de austeridade, uma dose cavalar de persistência e algo que independe de governos: uma mudança cultural profunda.
- Essa coisa do gaúcho do acirramento da briga política, do tudo ou nada, precisa mudar. Sem o apoio da sociedade, não existe solução - sintetiza Aod.
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Juliano Rodrigues: onde foi parar a transparência de Sartori?
O Brasil caminha para uma década perdida?
O país vem fazendo avanços. Foram menores do que gostaríamos, mas permitiram melhorias. Se olharmos para a última década, ela não foi perdida. O problema, nos últimos anos, é que o padrão de crescimento do país, muito baseado em expansão de consumo e de gastos públicos, se esgotou. No cenário global, o mundo está se recuperando, mas, no caso brasileiro, isso dependerá de um ajuste consistente.
A revisão da meta fiscal foi uma confissão de incapacidade do governo federal?
Foi uma demonstração de realismo e da dificuldade de se fazer o ajuste fiscal inicialmente pretendido. Um ajuste dessa dimensão tem dois componentes. Um é econômico. Envolve a capacidade de identificar novas fontes de receita e de conseguir ter o controle dos gastos. O outro é político. Para executar o plano, o governo precisa do Congresso. A tarefa do ministro Joaquim Levy é muito importante para o Brasil, mas também muito difícil.
Alguns economistas acreditam que o país só voltará a crescer em 2017. Qual é a sua aposta?
O mercado tem projetado isso. É o mais provável que aconteça.
O menino Aod tinha de sobra o que falta ao adulto: cabelo. ZH pediu-lhe uma imagem em que a calva não estivesse a céu aberto. A única disponível é da infância: "Aos 20 anos, já tinha perdido todo o cabelo".
E o Rio Grande do Sul, tem conserto?
É lógico que tem. Como gaúcho, tenho de acreditar nisso. Mesmo estando quase seis anos fora, tenho família e amigos no Estado. Muito provavelmente vou querer envelhecer lá. Tem conserto, mas é um conserto difícil, que precisa de persistência, que não vai ser executado por um só governo ou por um único governante. Vai precisar do envolvimento de toda a sociedade.
O governador José Ivo Sartori chegou a comparar a crise do Estado à da Grécia.
Tanto um quanto outro, durante muito tempo, gastaram mais do que arrecadaram, e viram a dívida crescer mais rápido do que a expansão do seu crescimento econômico. Ambos têm populações que vêm envelhecendo e enfrentam problemas com aposentadorias. Junto desse fenômeno demográfico, há uma perda recente de dinamismo econômico que faz com que haja não só migração de capital físico, mas humano. Pessoas jovens, talentosas, estão procurando oportunidades em outros lugares, o que representa uma perda de potencial de crescimento lá na frente.
O caso do Rio Grande do Sul é mais grave?
Guardando as devidas proporções, há um agravante, sim. Apesar de todas as dificuldades que enfrenta, a Grécia conta com o bloco dos países do euro na mesa de negociação. São vários países ricos que têm interesse na recuperação e que têm capacidade para ajudar, desde que a Grécia faça a sua parte. No Rio Grande do Sul, infelizmente, isso não acontece. Na atual conjuntura, o governo federal precisa fazer o ajuste fiscal e não tem capacidade para auxiliar. Eu diria que o Rio Grande do Sul é a Grécia sem os países ricos do euro para ajudar.
O que é pior: ser secretário da Fazenda no Rio Grande do Sul ou ministro das Finanças na Grécia?
São dois cargos muito difíceis. Exigem não só capacidade técnica, como capacidade de gestão política.
Na sexta-feira, o governo estadual confirmou o parcelamento dos salários do funcionalismo, e a crise tende a piorar nos próximos meses. Como o Estado chegou a essa situação?
É o resultado de décadas de gastos excessivos, principalmente nos últimos anos, muito além da capacidade de arrecadação. O Rio Grande do Sul viu a sua dívida crescer mais rápido do que a de outros Estados, esgotou todas as fontes de financiamento e, mais recentemente, ampliou o descompasso entre despesa e receita. Tudo isso em uma conjuntura muito difícil, em que não pode contar com o governo federal. Nessas circunstâncias, o desfecho era inevitável.
Por que o parcelamento de salários feito em 2007 não gerou tantas críticas quanto agora?
É difícil dizer. Me aventuro a algumas hipóteses. A primeira é que no atual ambiente de forte retração econômica as pessoas sintam ainda mais o drama de não receber salários em dia. No caso de 2007, falamos desde o início da campanha sobre o quadro dramático e dissemos que o foco dos dois primeiros anos seria o ajuste fiscal. O funcionalismo não vinha com a expectativa de que teria grandes aumentos como agora, que existem reajustes escalonados até 2018. Nós dizíamos que o ajuste seria rápido e que voltaríamos rapidamente a pagar em dia, inclusive o 13º. Em 2008, zerado o déficit, fizemos isso. No final do ano, inclusive, antecipamos o pagamento do 13º, sem fazer empréstimo no Banrisul.
O senhor foi o único secretário da Fazenda que, nos últimos 15 anos, conseguiu tirar o Estado do vermelho, mas apenas por três anos. No fim do governo Yeda Crusius (PSDB), o déficit voltou. O que deu errado?
Entre 2007, 2008 e 2009, a duras penas, conseguimos estabilizar receita e despesa. Apesar de todas as dificuldades políticas que existiam no momento, foi possível atingir o déficit zero. Controlamos gastos, contivemos o crescimento dos salários para poder pagá-los em dia sem empréstimos, adotamos medidas de expansão de receita, mas, infelizmente, nós, e eu me refiro à sociedade como um todo, não conseguimos criar mecanismos para que esse ajuste provisório se tornasse permanente.
Que tipo de mecanismos?
Mecanismos como uma lei de responsabilidade fiscal estadual, que, aliás, está voltando ao debate e que é muito relevante para o futuro do Estado. Vou dar um exemplo. Quando foi feito o IPO (abertura de capital) do Banrisul, em 2007, tínhamos atraso de folha e com fornecedores. Entrou mais de R$ 1 bilhão em caixa. Naquele momento, a decisão foi de não usar esse recurso extraordinário no gasto corrente e de criar um fundo para auxiliar a transição a um novo modelo de previdência. Sugerimos que fosse aprovada uma lei vedando o uso, justamente para não cair em tentação. Na época, até brinquei. "Quero que a Assembleia me algeme para não cair em tentação", disse. A lei foi aprovada. Só que, mais tarde, quando eu já não estava mais lá, foi aprovada uma nova lei para desbloquear aqueles recursos.
E qual é a sua leitura disso?
Vejo nisso um problema cultural. É preciso que a responsabilidade fiscal se torne um valor para a sociedade. Já atingimos essa meta na sociedade brasileira em relação à inflação. As pessoas hoje enxergam inflação baixa como um valor. Ninguém discute. Mas isso não é muito claro para a questão do equilíbrio orçamentário. Existe uma visão de que isso significa menos gasto com saúde, educação, salários menores. E é um erro, porque todo déficit continuado no setor público vai significar, em algum momento, menos serviços públicos, atraso de salários e/ou aumento de impostos. Não há mágica. A sociedade precisa se dar conta disso.
Sem isso, a crise não terá solução?
A sociedade geralmente se mobiliza apenas em momentos de estresse, quando há atrasos de salário, de repasses para hospitais e, principalmente, aumento de impostos. Mas não tem capacidade de se mobilizar, principalmente no Rio Grande do Sul, quando o descompasso do gasto com a receita é criado. E, quando o déficit está instalado, não há o que fazer. Em algum momento, vai estourar, como está acontecendo agora. E essa ideia de achar um culpado e de achar que agora Sartori ou o secretário da Fazenda vão resolver o problema é algo que a gente vai ter de superar.
O senhor se sente frustrado por não ter conseguido ir além?
Me sinto feliz pela experiência, que foi de muita dedicação e esforço. Consegui provar que é possível atingir o equilíbrio orçamentário. Me sinto frustrado por não ter conseguido dar o segundo passo, que era ter ajudado a convencer a sociedade de que precisávamos criar mecanismos adicionais de controle para a preservação desses resultados.
A resistência foi maior dentro ou fora do governo?
Não foi uma resistência que eu tenha sofrido. Tínhamos um ambiente político muito difícil. O que fica como lição é o seguinte: temos de resolver esse problema financeiro para poder dedicar esforços para outras iniciativas. Essa coisa do gaúcho, da cultura do Gre-Nal, do acirramento da briga política, do tudo ou nada, esse negócio do bairrismo, do orgulho, em alguns momentos é positivo, mas às vezes dificulta muito que se chegue a uma união para resolver os problemas, e nós precisamos disso.
É preciso que o Rio Grande do Sul supere o bairrismo?
Em 2007, escrevi um artigo para ZH que, na época, gerou bastante polêmica. O título era "Pela desargentinização do RS". A Argentina, que no início do século passado era um dos países mais ricos do mundo, foi lentamente se deteriorando, mas sempre preservava a ideia do orgulho argentino, do orgulho pelo passado. Isso gerou uma dificuldade de encarar os problemas e de dizer: "Nós não somos mais tão bons." O Rio Grande do Sul precisa fazer isso. O nosso orgulho gaúcho tem de servir para a gente ter força para resolver os problemas.
Após a experiência no governo, ex-secretário só reencontrou a ex-governadora Yeda Crusius em aeroportos: "Ela me deu respaldo", lembra Aod.
Os críticos do governo Yeda Crusius (PSDB) diziam que a obsessão pelo déficit zero paralisou o Estado. Hoje você faria algo diferente?
Não. No início do governo Tarso Genro, o ex-governador disse que a opção dele seria pelo (fim do) "déficit social" e não pelo "déficit zero". Respeito a opinião, mas é uma falsa discussão.
Se fosse o secretário da Fazenda, retomaria a política do déficit zero?
Prefiro não falar sobre isso. O atual governo está enfrentando uma situação mais difícil hoje do que enfrentei em 2007. Déficit maior, esgotamento maior das fontes de financiamento, economia em retração. E acho que a resolução desse problema não vai ser feita só pelo governo. Vai ser feita com muita negociação com a sociedade.
Ser secretário da Fazenda é um dos piores empregos do mundo?
Sinceramente, gostei muito da experiência. Foi pesado e difícil, com uma carga de trabalho e pressão incomparável, mas tive uma equipe muito boa. A Secretaria da Fazenda tem técnicos de altíssimo nível.
Como foi o primeiro dia fora do governo?
Foi um mix de sensações. Por um lado, uma sensação de dever cumprido por ter provado que era possível equilibrar as contas. Por outro lado, uma sensação de alívio do ponto de vista pessoal, de poder dormir um pouco mais tranquilo. E uma sensação, não diria de frustração, mas de que daria para ter feito mais.
Como ficou a sua relação com a ex-governadora?
Pelo fato de ter saído do Rio Grande do Sul, eu realmente perdi contato com ela. Nos encontramos uma ou outra vez no aeroporto. Tenho gratidão a ela por ter me escolhido para comandar a secretaria, quando havia muitas pressões por outras indicações. Ela efetivamente me deu respaldo para executar um programa de ajuste fiscal.
Vou apontar as principais opções que têm aparecido como saídas para o Rio Grande do Sul e gostaria que você dissesse se são viáveis.
Não vou fugir das perguntas, mas quero fazer uma ressalva. O pior erro que podemos cometer é achar que uma ou outra medida vai resolver o problema. O que precisamos é de um conjunto variado de medidas, pelo lado da despesa e pelo lado da receita. E precisamos ser persistentes ao longo do tempo e não só neste governo. Pode perguntar.
Então vamos lá: privatizar o que for possível.
No Brasil, temos a cultura de que o Estado pode tudo. No final, ele não consegue entregar nem serviços básicos de qualidade. Então, gradualmente, deveria, sim, reduzir a sua participação e se focar em prestar bons serviços nas áreas essenciais.
Fechar a maior quantidade possível de órgãos estaduais não vitais.
Vale a mesma avaliação anterior.
Eliminar os benefícios e estímulos fiscais.
Não estou acompanhando no detalhe e não tenho como avaliar a atual relação entre custo e benefício. O incentivo fiscal é uma demanda natural do setor privado, mas pode significar, às vezes, uma sangria desnecessária de recursos públicos.
Cobrar a dívida ativa.
Isso já vem sendo feito e é claro que tem, sim, de haver um esforço de melhoria, mas não será desse montante que virá a solução. Grande parte do estoque é irrecuperável.
Renegociar a dívida com a União.
Evidentemente seria bom para o Estado, mas a redução do percentual significativo de comprometimento da receita não está, no curto prazo, no rol de medidas exequíveis e prováveis.
Reduzir o número de funcionários públicos.
Precisaria ter um mapeamento muito preciso de todas as áreas para poder responder isso. Há áreas que precisam mais, como segurança, e outras, provavelmente menos. É preciso olhar caso a caso.
Parar de contratar servidores.
Mesma resposta anterior.
Parar de reajustar salários públicos.
O Estado não tem capacidade de continuar concedendo reajustes acima da receita. É uma injustiça com o próprio servidor, porque você cria uma expectativa sobre algo que não poderá executar.
Acabar com regalias e benefícios do funcionalismo.
Existem benefícios que são justos para determinadas funções públicas, mas há ainda um conjunto grande de distorções nos sistemas de remuneração do setor público brasileiro, e o Estado não é exceção. O caso da previdência me parece a maior das distorções. É uma reforma difícil. Um dia terá de ser feita.
Reduzir repasses a outros poderes pelo Executivo.
Quando afirmo que toda a sociedade tem de participar do esforço de ajustamento, é lógico que esse esforço tem de ser compartilhado também pelos outros poderes. Não tenho condições de falar em redução, mas os poderes têm de ser solidários.
Eliminar cargos de confiança e secretarias.
Sempre há a possibilidade de ser mais enxuto. O governo Sartori já fez um esforço de redução de CCs, mas não vai ser isso que vai resolver o déficit. Essa é apenas mais uma contribuição.
Ampliar o limite de uso dos depósitos judiciais.
Usamos os depósitos no primeiro ano de governo, em 2007. Quando reequilibramos as contas, paramos e até devolvemos dinheiro. Em situações emergenciais, pode ser uma alternativa, desde que se tenha claro que é uma dívida que custa juros e que não é uma solução estrutural.
Aumentar ICMS.
Sempre deveríamos pensar em evitar o aumento, mas isso só é crível quando a despesa cresce menos do que a receita. Não é o caso do Rio Grande do Sul. Inevitavelmente, a carga tributária vai subir. Na atual situação, com riscos de paralisações até na área da segurança pública, infelizmente, essa não é uma opção. A pergunta que fica é: o que vamos fazer agora para evitar mais aumentos de impostos lá na frente?
Ao deixar o governo, Aod cursou pós-doutorado na Universidade Columbia, em Nova York, EUA.
Críticos do aumento de impostos argumentam que o governo deveria reforçar o controle sobre a sonegação. O senhor concorda?
Sempre é possível melhorar os controles de combate à sonegação, e os governos têm avançado nisso. Temos de continuar avançando, como no caso da cobrança da dívida ativa. Mas repito: isoladamente, isso não vai mudar o tamanho do déficit instalado.
Valeria correr o risco de suspender o pagamento da dívida com a União?
Como macroeconomista e pensando no Brasil, sou contra. Do ponto de vista prático, se a União cumprir o contrato e suspender repasses para o Estado, o efeito final pode ser até negativo. O ideal seria os Estados, em conjunto, negociarem com a União medidas de auxílio no momento que eles se comprometerem com melhorias de reequilíbrio de suas contas.
Que conselho o senhor dá ao atual secretário estadual da Fazenda?
Que seja forte para resistir às pressões, que ouça bastante a área técnica, e pelo que me consta ele tem feito isso, e que tenha persistência. Este é um governo que tem legitimidade e capacidade política.