Em depoimento à Polícia Civil, enquanto estava presa em razão da Operação Capa Dura, a ex-assessora técnica do gabinete da Secretaria Municipal da Educação (Smed) Mabel Luiza Leal Vieira afirmou que foi orientada por pessoas ligadas à prefeitura da Capital a gravar um vídeo para mudar a versão em que apontava indícios de fraudes licitatórias na pasta.
O assunto veio à tona em sessão da CPI da Educação na Câmara de Vereadores. Presidente de uma das comissões, a vereadora Mari Pimentel (Novo) divulgou áudios gravados por Mabel em que ela dizia ter recebido pen drives com dados prontos para inserir em processos de compras da Smed, ou seja, já com fornecedor definido. Em depoimento aos parlamentares, Mabel negou os fatos. Depois, ainda gravou um vídeo reforçando o desmentido.
Mabel foi presa temporariamente em 23 de janeiro, mas acabou liberada no mesmo dia por ter colaborado com o inquérito. Ela é uma das servidoras que trabalharam em processos administrativos na secretaria para a compra de materiais escolares com suposto direcionamento a grupos econômicos, via adesão à ata de registro de preço, procedimento conhecido como carona por acelerar o gasto público. Além disso, as aquisições teriam sido feitas em quantidades excessivas.
Os casos de compras de livros, equipamentos esportivos e brinquedos, incluindo o armazenamento precário em depósitos municipais sob mofo e fezes de pombos, foram revelados em reportagens do Grupo de Investigação da RBS (GDI) a partir de junho de 2023. Logo depois, Mabel e a então secretária da Educação, Sônia da Rosa, foram exoneradas.
Neste período, foram instaladas duas CPIs na Câmara de Vereadores para apurar os mesmos fatos. Foi nesse contexto que Mabel, já fora da Smed, procurou Mari no início do segundo semestre de 2023 para reforçar denúncias de supostas irregularidades. O diálogo começou pelo Instagram e, depois, migrou para o WhatsApp. Mabel enviou áudios à vereadora dando detalhes sobre como o então secretário de Modernização e Gestão de Projetos, Alexandre Borck, conhecido como Xandão, teria distribuído pen drives contendo atas de registro de preço para que fossem utilizadas pela Smed na aquisição de materiais escolares. Essa seria a origem do suposto direcionamento de compras.
— Tu lembra da história do Xandão indicar ata e coisa e tal — disse Mabel em um dos áudios, interagindo com Mari.
Na ocasião, Mabel afirma ter encontrado um dos pen drives supostamente entregues por Xandão, que também é presidente do MDB em Porto Alegre e está afastado das funções públicas na prefeitura por 180 dias por ordem judicial, em decorrência da Operação Capa Dura.
Os áudios de Mabel sobre o suposto direcionamento de compras, com a possível participação de Borck, foram veiculados pela vereadora Mari na sessão da CPI do dia 2 de outubro, na Câmara de Vereadores, durante o depoimento da ex-secretária Sônia. O episódio causou constrangimento à base governista. A partir deste dia, começaram a se desenrolar os fatos relatados por Mabel no depoimento à Polícia Civil. Depois de exoneradas de Porto Alegre, entre junho e julho de 2023, ela e Sônia voltaram a trabalhar na prefeitura de Canoas, onde são servidoras de carreira.
Mabel narra no depoimento que elas saíram para almoçar certo dia e que, durante a conversa, Sônia comentou sobre a hipótese de ela escrever uma carta dizendo que tinha feito as acusações anteriores por estar "pressionada". Alegando sentir "medo", Mabel concordou e foi marcada uma reunião em Porto Alegre, no escritório do advogado Pedro Henrique Poli de Figueiredo, que faz a defesa de Sônia e a acompanhou no depoimento à CPI. No encontro, Mabel repetiu que estava com "medo" e "chateada" por ter conversado com a vereadora sem a ciência de Sônia, com quem tinha proximidade.
— Ela (Sônia) disse: te acalma e tal. Quem sabe grava um vídeo justificando, colocando que não estava bem. (...) O vídeo gravei por ideia deles (Sônia e Figueiredo) e porque eu estava com medo e queria me proteger — relatou Mabel.
Depois de instruída na reunião, a ex-servidora da Smed gravou em casa o vídeo dizendo que as afirmações anteriores, feitas nos áudios dirigidos à vereadora, haviam ocorrido por vingança contra o governo que a exonerou. Ela arrematou dizendo que não tinha conhecimento de nada que desabonasse a conduta do governo do prefeito Sebastião Melo. O conteúdo foi entregue por Mabel ao advogado Figueiredo.
Na sessão da CPI do dia 16 de outubro, duas semanas após a reprodução dos áudios que inquietaram o governo, o relator Mauro Pinheiro (PL), aliado de Melo, informou ter recebido documentos enviados pela ex-secretária Sônia por intermédio de Figueiredo. O material continha o vídeo de Mabel, o qual foi veiculado no telão do plenário da Câmara por determinação de Idenir Cecchim (MDB), líder do governo e presidente da segunda CPI.
À Polícia Civil, questionada sobre a controvérsia, Mabel afirmou que a verdade dos fatos é a versão narrada nos áudios enviados à vereadora, cujo conteúdo menciona o direcionamento de compras por indicação de atas de registro de preço, com a suposta intermediação de Borck. Ela relatou pressões para fazer as aquisições por carona de fornecedores específicos e disse ter apenas cumprido ordens. Ela ainda reafirmou que havia uma determinação superior na Smed para destruir os pen drives que continham as atas após o uso.
Também em depoimento à polícia, a ex-secretária adjunta pedagógica da Smed Claudia Gewehr Pinheiro afirmou que a versão do áudio "é verdade", reforçando que a gravação do vídeo foi uma tentativa de "amenizar a situação".
O advogado Figueiredo, além de atuar em defesa de Sônia na CPI e no Tribunal de Contas do Estado (TCE), possui contrato com o governo Melo por inexigibilidade. Entre 2021 e 2023, conforme o Portal Transparência da prefeitura, ele recebeu pagamentos que somam mais de R$ 811 mil por serviços de assessoria jurídica para as secretarias municipais de Parcerias e de Mobilidade Urbana.
Inexigibilidade é um modelo de contratação previsto na Lei das Licitações que dispensa a concorrência quando somente uma pessoa ou fornecedor pode prestar um serviço ou vender um produto, seja por notório saber ou exclusividade de comercialização.
O inquérito é conduzido pelo delegado Max Otto Ritter, da 1ª Delegacia de Polícia de Combate à Corrupção. Ele não se manifestou em função da diretriz da Associação dos Delegados de Polícia do RS, que veta entrevistas, mas confirmou que os fatos estão sob investigação.
Procurado pela reportagem para comentar o caso, o vereador Cecchin disse que "o tal pen drive nunca apareceu". Mauro Pinheiro não respondeu.
Contrapontos
O que diz Brunno Pires, advogado de Alexandre Borck
Não há nenhum elemento nos autos da investigação que incrimine de qualquer forma Alexandre Borck. As versões controversas de uma servidora apenas comprovam isso, sendo absolutamente infundadas as acusações assacadas contra ele, como já está claro pelo quanto aportado nos autos e noticiado na imprensa.
O que diz João Pedro Petek, advogado da ex-secretária de Educação Sônia da Rosa
Nos manifestaremos exclusivamente nos autos.
O que diz o advogado Pedro Henrique Poli de Figueiredo
Ela (Mabel) não foi "orientada" por mim a gravar. Isso não aconteceu. Ela foi no meu escritório e disse que tinha ido inicialmente até a Câmara numa situação de muita perturbação psicológica e que tinha dado aquela versão sob a pressão de perda de cargo, raiva e forte abalo psicológico. Ela nunca fez qualquer vídeo no meu escritório. Me mandou por WhatsApp um vídeo (o ambiente não é do meu escritório) e disse que seria para desmentir a versão que ela tinha dado anteriormente para a vereadora Mariana Pimentel. O vídeo foi entregue na CPI como elemento de defesa da Sônia.