A opção de fazer uma licitação de carona na compra de livros didáticos e de literatura pela Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre (Smed), mesmo que permitida, não é ideal quando se fala de aquisição de materiais. A avaliação é de Fernando Cássio, docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
No dia 23 de janeiro, a Polícia Civil deflagrou a operação Capa Dura, que investiga supostos delitos que teriam sido cometidos por gestores públicos e empresários. A investigação analisa cinco compras feitas pela secretaria em 2022 junto às empresas Inca Tecnologia de Produtos e Serviços e Sudu Inteligência Educacional, todas elas por adesão à ata de registro de preço. Conhecido como "carona", por acelerar o processo de compra, esse instrumento permite aproveitar a licitação realizada por outro ente público para fazer uma aquisição.
Com a carona, a Smed ficou liberada da tarefa de realizar os trâmites burocráticos de uma licitação própria. Neste caso, se aproveitou de uma compra feita pelo governo do Sergipe.
— Embora seja uma prática comum, não estamos falando da aquisição de vassouras, de materiais de limpeza, por exemplo. Estamos falando de livros didáticos, produtos que carecem de avaliação técnica pedagógica muito mais complexa. Então, em nome de pegar "carona", abriu-se mão daquilo que seria obrigação da secretaria, que é analisar o material com o auxílio de especialistas e dialogar com os professores — argumenta Fernando Cássio, docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Contatada por GZH, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) defendeu que "os materiais foram adquiridos através de Ata de Registro de Preços (ARP), que respeitou todo o processo formal e cumpriu com os requisitos estabelecidos pela legislação. Importante destacar ainda que toda a ARP é oriunda de uma licitação, e que para a realização da mesma é necessária a divulgação de edital".
A nota acrescenta, evocando a autonomia do executivo, que "todos os materiais pedagógicos e equipamentos foram adquiridos de acordo com o número de alunos matriculados na rede municipal e estão diretamente ligados aos objetivos dos programas estratégicos da pasta (Recompoa, Alfabetiza+POA, Correção de Fluxo e Programa competência do Século XXI: integração do currículo, contextualização e temas transversais contemporâneos) e pautados nos dispositivos legais que regulamentam a educação básica no Brasil".
A investigação apontou nomes de funcionários públicos, empresários e empresas que teriam participado das aquisições irregulares, elencando relações pessoais e profissionais entre os envolvidos. Um deles é o empresário Jailson Ferreira da Silva, que foi preso no âmbito da operação policial.
Nas compras por carona, é necessário reunir orçamentos de outros potenciais fornecedores para demonstrar a chamada “vantajosidade”. Na prática, significa comprovar que, ao aderir a uma ata de registro de preço, a prefeitura estaria pagando um valor menor do que o cobrado por outros fornecedores.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) revelou que esses orçamentos foram apresentados por empresas do grupo econômico de Jailson. Ele é representante da Inca e usou uma empresa de propriedade dele, a World Soluções Educacionais, para acostar no processo administrativo da Smed um orçamento de valor mais elevado, utilizado para demonstrar a vantajosidade na compra de livros junto à Sudu — fornecedora também representada por Jailson nessa aquisição.
Como é feita a seleção de livros didáticos
O grande problema apontado pelos pesquisadores é a falta de uma análise criteriosa realizada por especialistas das respectivas áreas, como acontece com os materiais que entram no catálogo do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). No caso dos livros da Smed, as obras não passaram por um procedimento parecido.
— É um processo longo e minucioso, de discussão e avaliação em cima dos critérios do edital, até que os livros sejam aprovados. Quando eu participei, eram mais de 40 livros inscritos e apenas quatro foram aprovados, por exemplo. E tudo isso passa pelo MEC (Ministério da Educação), por equipes de professores vinculados à pesquisa na área. Todo livro didático precisa passar por um processo de avaliação em cima de critérios que têm a ver com questões pedagógicas e com a legislação nacional — explica a professora Simone Santos de Albuquerque, da Faculdade de Educação da UFRGS, que participou da avaliação de obras didáticas de educação infantil no programa em 2019.
Para execução do programa federal, que garante distribuição gratuita de livros didáticos para todo o país, o Ministério da Educação (MEC) produz editais com uma série de critérios a serem seguidos pelas editoras. Assim, os livros são preparados já levando em consideração estas exigências. Posteriormente, são escolhidos com base na análise técnica de especialistas os materiais que entrarão para o catálogo do PNLD.
O governo federal negocia com as editoras e define quais publicações irá comprar, e em qual quantidade. O programa é financiado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Por último, as escolas decidem quais materiais ofertados no catálogo desejam utilizar. Livros de cada etapa escolar, do Ensino Infantil ao Médio, são selecionados a cada quatro anos. No momento, o MEC trabalha no edital do PNLD Educação Infantil 2026, por exemplo, que deve ser lançado ainda neste ano.
Problemas no conteúdo
GZH obteve acesso a alguns dos materiais investigados, incluindo dois livros didáticos de Língua Portuguesa da coleção Aprender Mais, voltados aos anos finais do Ensino Fundamental. De acordo com o professor Marcelo Gonçalves Maciel, Doutor em Estudos da Linguagem pela UFRGS, que analisou os materiais, o conteúdo apresenta problemas nítidos.
Ele diz que ambos os livros de Língua Portuguesa, tanto o livro do professor (voltado ao 9º ano) quanto o livro destinado aos alunos (voltado ao 6º ano) têm abordagens muito simples, que não buscam despertar o olhar crítico dos alunos e não trazem temas pertinentes da atualidade, o que respinga no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), conforme o professor.
— São livros de baixa qualidade, se levarmos em consideração as atuais recomendações do PNLD. A meu ver é algo vergonhoso, pensando em todo o dinheiro investido nesse tipo de material. Suspeito que estes livros jamais seriam aprovados pelo PNLD, têm problemas que gritam aos olhos. Não consigo enxergar como um professor poderia organizar suas aulas a partir desses materiais — diz Marcelo, que é professor de Literatura e Língua Portuguesa no Colégio de Aplicação da UFRGS.
Ele diz que os livros apresentam textos muito curtos, que não chegam a uma página, além de não contemplarem temáticas previstas em lei, como a Educação das Relações Étnico-raciais. O professor também destaca que os livros contam com poucas referências teóricas, indicando somente os links de onde os textos foram retirados, e não referências a respeito da produção textual, o que já é um problema por si só.
— Esta coleção de livros é típica do problema. Livros para "treinar", mentalidade do tipo "ensino por apostilas", ou seja, "aprender para testes". Isso está explícito na apresentação. E, muitas vezes, as editoras vendem o material didático casado com "formação de professores", que não é formação. É apenas um verniz, um treinamento raso, sem fundamentos — diz sobre os livros investigados a professora Maria Beatriz Luce, que também é da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faced-UFRGS).
A reportagem de GZH tentou contato com as autoras dos livros analisados, a psicóloga Ângela Cordi e a pedagoga Regina Portela, sem sucesso, até o momento.
Contatada pela reportagem, a Secretaria da Educação do RS informou que nenhuma escola da rede estadual utiliza os livros das coleções em questão. Já o Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS) destacou que as escolas particulares têm autonomia para definirem os materiais a serem adotados, e que a entidade não tem um levantamento sobre quais livros são utilizados.
Mais de 500 mil livros adquiridos
Nas cinco compras investigadas, a Smed obteve cerca de 544 mil livros ao custo de R$ 34 milhões. Em junho de 2023, reportagem do GDI revelou que as publicações da Inca e da Sudu estavam encaixotadas e empilhadas em dois depósitos da prefeitura de Porto Alegre.
Em um deles, os materiais estavam acondicionados sob goteiras, mofo e fezes de pombos. Também havia milhares de exemplares encaixotados e sem uso pelos estudantes em escolas na Capital.
Os livros investigados são de Literatura, Educação Financeira e Consumo, Empreendedorismo e Projetos de Vida, Educação Ambiental e Sustentabilidade. Também há exemplares da coleção Aprender Mais, direcionada ao reforço escolar para o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
Mais de 73 mil livros de português e matemática, da coleção Aprender Mais, tiveram de ser recolhidos e substituídos por conterem erros de impressão e de tabuada. Esses exemplares foram vendidos pela Inca à Smed ao custo de R$ 6,6 milhões.
O material não chegou a ser usado nas escolas. Como são materiais novos, os professores ouvidos por GZH dizem que seria necessário tempo e orientação para aproveitar os títulos na rotina de ensino e incluir nas aulas, mas isso não teria acontecido.
Diretores e professores reclamaram que os materiais foram enviados sem planejamento e em quantidade excessiva. Isso foi reafirmado por auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), cujo relatório apontou que os livros foram adquiridos em número "exorbitante".