Relatório de auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) sobre aquisição de materiais pedagógicos e equipamentos para a rede municipal de educação de Porto Alegre apontou supostas irregularidades nos processos de compras e sugeriu responsabilização do prefeito Sebastião Melo, de mais 15 pessoas e de quatro empresas. Também houve indicação para imposição de débitos no valor de R$ 6,2 milhões para Melo e outros agentes públicos. O valor corresponde ao potencial dano aos cofres públicos.
O trabalho focou em 10 adesões a atas de registro de preços feitas em 2022 pela Secretaria Municipal de Educação (Smed). Essa modalidade de compra é prevista em lei, também conhecida como carona por permitir o aproveitamento de licitação de outro ente público.
A auditoria faz parte de um processo de contas especiais do TCE para aprofundar a fiscalização sobre "potencial dano ao erário" na prefeitura de Porto Alegre. O caso está em fase de apresentação de defesa pelas pessoas e empresas citadas como responsáveis pelas supostas irregularidades. Depois disso, o procedimento ainda será analisado por outros setores do TCE, passando também pelo Ministério Público de Contas (MPC). O relatório, atualmente, está disponível para consulta pública no site do tribunal. O Grupo de Investigação da RBS (GDI) teve acesso à íntegra do conteúdo nesta semana.
As 10 compras por carona envolvem principalmente livros, mas também laboratórios de ciências e matemática, aparelhos esportivos, brinquedos, mesas digitais e telas interativas. Também foram examinadas uma aquisição de kits de robótica por inexigibilidade, modalidade de contratação direta quando inviável a competição, e pregões para a compra de chromebooks (minicomputadores) e estações de recarga. No total, as despesas analisadas pela auditoria do TCE somaram R$ 137 milhões.
O relatório aponta supostas fragilidades na instrução dos processos, direcionamento de compras a determinados fornecedores, erros na execução das despesas e sobrepreço de itens adquiridos. Entre os citados na auditoria estão a ex-secretária municipal de Educação Sônia da Rosa, a ex-secretária-adjunta pedagógica Claudia Gewehr Pinheiro, a ex-assessora técnica de gabinete Mabel Luiza Leal Vieira e quatro empresas que venderam para a Smed: Astral Cientifica Comercio de Produtos e Equipamentos, Edulab - Comercio de Produtos e Equipamentos, Inca Tecnologia de Produtos e Servicos e Wr Distribuidora e Industria Textil.
Relatório da auditoria na íntegra:
Materiais acumulados
Em junho de 2023, o GDI revelou que livros, chromebooks, kits pedagógicos e materiais esportivos estavam acumulados em escolas ou em depósitos precários da Smed sem uso pelos estudantes. Nas escolas, havia queixa de excesso de livros enviados pela Smed e falta de planejamento e de formação dos professores para uso de alguns itens. Nos depósitos o GDI encontrou computadores, livros e outros materiais sob goteiras, fezes de pássaros e ratos mortos.
Ao analisar os processos administrativos, auditores apontam terem encontrado uma série de problemas, a começar pela falta de documentos que deveriam compor os procedimentos de compras. Conforme a auditoria, e como também foi apontado em reportagens do GDI, as tramitações iniciavam sem ter estudo prévio justificando a necessidade para a aquisição. Os auditores repetiram, mais de uma vez, que o termo de referência — documento que detalha a demanda a ser resolvida por uma compra — já era feito a partir da proposta do fornecedor. Compras em duplicidade também foram destacadas.
"À revelia do que busca o princípio da eficiência, a Smed adquiriu, ao todo, 112 kits (56 de ciências da natureza e outros 56 de matemática) e pagou o mesmo curso de formação 112 vezes, fornecido através de exposição transmitida pela rede mundial de computadores, com posterior disponibilização da gravação a qualquer um interessado", diz trecho do relatório.
Sobre o decreto por meio do qual o prefeito autorizou que a ex-secretária Sônia tivesse autonomia para fazer as compras por carona, a auditoria apontou que foi delegada "competência para (fazer) adesão a órgão sem capacidade técnica e experiência na condução de procedimentos licitatórios e de compras".
Antes do sinal verde dado por Melo, as aquisições eram conduzidas pela Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (Smap), que tem expertise em licitações. A exceção concedida pelo prefeito à Smed, feita com o objetivo de acelerar as aquisições da pasta, é o principal argumento dos auditores do TCE para sugerir a responsabilização de Melo.
Após a revelação feita pelo GDI dos desperdícios na educação, o prefeito revogou o decreto que dava autonomia à Smed para fazer compras por carona. O relatório ainda destacou uma autorização de Melo para que os processos administrativos de gastos por adesão à ata recebessem um "selo emergencial".
Em comparativos para verificar a vantajosidade sustentada nos processos pela Smed, auditores chegaram a encontrar livros com suposto sobrepreço maior do que 200%. Em itens esportivos, como uma bola de futsal, o sobrepreço seria de 261%.
Também foram registrados pagamento antecipado a fornecedor e emissão de atestado de recebimento de materiais antes da devida conferência. Sobre visitas dos auditores a escolas, foi dito: "há de se registrar que os relatos colhidos demonstraram que o material está subutilizado (ou simplesmente sem uso) nas escolas, em número exorbitante".
Nas conclusões, o relatório ainda sugere que os "achados" da equipe de auditoria "sejam considerados na emissão do parecer prévio, de natureza opinativa, sobre as contas do chefe do Executivo Municipal (Melo), inclusive com a aplicação de multas".
Quem foi listado pela auditoria nas sugestões de imposição de débito
- Anelise Tolotti Dias Nardino, Inca Tecnologia de Produtos e Servicos Ltda, Sebastião de Araújo Melo, Simone Silva Correia, Sonia Maria Oliveira da Rosa. Valor: R$ 4.881.091,14
- Claudia Gewehr Pinheiro, Mabel Luiza Leal Vieira, Sebastião de Araújo Melo, Sonia Maria Oliveira da Rosa, Wr Distribuidora e Industria Textil Ltda. Valor: R$ 329.721,63
- Camila Correa de Souza, Claudia Gewehr Pinheiro, Edulab - Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda, Mabel Luiza Leal Vieira, Sebastião de Araújo Melo, Sonia Maria Oliveira da Rosa. Valor: R$ 298.240,84
- Astral Cientifica Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda, Jacqueline Zilberstein, Sebastião de Araújo Melo, Simone Silva Correia, Sonia Maria Oliveira da Rosa. Valor: R$ 745.250,00
Total de débitos: R$ 6,2 milhões
A partir de agora
- O relatório do Serviço de Auditoria do TCE foi assinado no dia 20 de outubro de 2023.
- No dia 21 de novembro de 2023, o conselheiro-relator Renato Azeredo deu prazo de 30 dias para que as defesas dos citados apresentem esclarecimentos. O prazo para o contraditório ainda não se encerrou devido ao período de recesso do TCE.
- Depois de entregues as defesas, o relatório de auditoria e os contraditórios seguem para um setor chamado Serviço de Instrução, que vai fazer um cotejo sobre o que dizem as partes. Ao final, o Serviço de Instrução emite uma análise técnica opinativa sobre quem está com a razão.
- No passo seguinte, a documentação segue para o Ministério Público de Contas (MPC), etapa em que os procuradores produzem parecer com pedidos de punições e recomendações, em caso de irregularidades, ou de arquivamento.
- Por fim, o processo segue para o conselheiro-relator. Ele redige um voto sobre o caso e leva para análise dos outros conselheiros em plenário ou em uma das câmaras de julgamento do TCE.
Contrapontos
O que disse o prefeito Sebastião Melo
O prefeito respondeu por meio de nota enviada pelo gabinete de Comunicação Social da prefeitura:
"Sobre o trabalho preliminar realizado pela equipe de auditoria do Tribunal de Contas do Estado, cabe informar que a avaliação está em curso, tem prazo para manifestação do município e ainda será levada à consideração do conselheiro-relator. Assim, não se trata de uma decisão do TCE-RS. A Procuradoria-Geral do Município irá responder no prazo. Todos os esclarecimentos — incluindo muitos dos apontamentos realizados agora — constam na apuração determinada primeiramente pelo prefeito. O conteúdo da auditoria interna realizada pela Controladoria-Geral do Município já foi integralmente disponibilizado aos órgãos de controle".
O que disse Anelise Tolotti Dias Nardino
"Só executei as orientações da minha coordenadora. Eu estava em desvio de função, sou bibliotecária e a biblioteca estava fechada. Me colocaram nesse processo de aquisição de acervo, eu nem tinha experiência nesse trabalho".
O que disse Camila Correa de Souza
GDI deixou recado pelo celular.
O que disse Claudia Gewehr Pinheiro
Preferiu não se manifestar.
O que disse Giovane Martins Vaz dos Santos
O advogado Adriano Puerari, que representa o ex-servidor, enviou nota:
"Repudia-se veementemente a imputação. Primeiro porque foi alijado dos processos de compra, que se concentraram no setor pedagógico. Segundo porque não houve pagamento antecipado. O ex-servidor agiu em cumprimento de ordem, transmitida pela assessoria direta da secretária, que era a técnica responsável pela aquisição e sua superior hierárquica. Os materiais foram entregues, e a conferência de recebimento foi realizada de acordo com o empenho. Após a entrega das notas fiscais é que o pagamento foi realizado, fato que está documentalmente provado".
O que disse Jacqueline Gomes de Aguiar
GDI deixou recado pelo celular.
O que disse Jacqueline Zilberstein
A advogada Thaís Recoba Campodonico, que representa Jacqueline, disse que está estudando o relatório e só depois disso irá se manifestar.
O que disse Leticia Pires D Andrea
GDI fez contato e aguarda retorno.
O que disse Mabel Luiza Leal Vieira
Preferiu não se manifestar.
O que disse Marina Abichequer Sangalli
Preferiu não se manifestar.
O que disse Marna da Silveira Moreira
Disse que desconhece o relatório e, por isso, não vai se manifestar.
O que disse Melissa de Oliveira Machado Brandão
GDI deixou recado pelo celular.
O que disse Michele Bartzen Acosta
Disse que desconhece o relatório e, por isso, não vai se manifestar.
O que disse Patrícia da Silva Pereira
GDI deixou recado pelo celular.
O que disse Simone Silva Correia
"Todos os materiais vinham fechados em caixas, não tinha como contar todos os livros, todos os vidrinhos. E em todas as entregas vinha um responsável pela empresa. Veio um menino responsável pelos livros, para organizar as bibliotecas, e um responsável pelos kits de ciência e de matemática. E as notas fiscais eram assinadas e enviadas para pagamento imediatamente. Depois, quando se dava falta de algum material, ligava e cobrava da empresa."
O que disse Sônia da Rosa
O advogado Pedro Henrique Poli Figueiredo, que atua na defesa da ex-secretária, disse que o relatório de auditoria está sendo estudado para a preparação dos esclarecimentos.
O que disse a empresa Astral Cientifica Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda
GDI fez contato por email e aguarda retorno.
O que disse a empresa Edulab - Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda
GDI fez contato por telefone e aguarda retorno.
O que disse a empresa Inca Tecnologia de Produtos e Servicos Ltda
GDI fez contato por email e aguarda retorno.
O que disse a empresa Wr Distribuidora e Industria Textil Ltda
GDI fez contato por telefone e email e aguarda retorno.