Escolas da rede municipal de Porto Alegre acumulam, em seus corredores, caixas de livros e equipamentos eletrônicos comprados com dinheiro público, mas sem uso. Nas últimas duas semanas, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) esteve em oito colégios e em galpões de patrimônio e almoxarifado da Secretaria Municipal de Educação (Smed) e localizou milhares de livros guardados precariamente, além de mais de mil chromebooks e kits pedagógicos sem utilização.
Na manhã de terça-feira (6), a titular da pasta, Sônia Maria Oliveira da Rosa, admitiu que há problemas com os materiais acumulados em escolas, lamentou a situação constatada pelo GDI e disse que está adotando medidas para resolver o problema.
— São materiais de excelência que precisam ser usados — ressaltou a secretária.
A reportagem constatou que parte dos equipamentos, adquiridos no ano passado, é guardada sem cuidado e está exposta ao tempo e até a fezes de pombos. Nas instituições de ensino, os servidores dizem que os livros nunca foram solicitados e acabaram comprados pela Smed sem consulta prévia ou qualquer plano pedagógico de aproveitamento.
— Chegaram aqui como disco voador, sem explicação — disse um servidor de escola ao GDI.
Uma parcela dos chromebooks nem sequer foi distribuída aos alunos. Outros tantos estão amontoados em salas de colégios porque faltam aparelhos que os carregam, os hacks.
O desperdício do dinheiro público também fica evidenciado por caixas de kits pedagógicos que estão sem uso, impressoras alugadas pela Smed esquecidas em locais improvisados e aparelhos novos de cozinha industrial e de ar-condicionado que não podem ser utilizados porque as redes elétricas das escolas não suportam a potência dos equipamentos.
R$ 36,2 milhões em compras de dois fornecedores
Somente das empresas Inca Tecnologia de Produtos e Serviços e Sudu Inteligência Educacional, a Smed adquiriu livros que somaram investimentos de R$ 36,2 milhões em 2022. Os procedimentos de compras do governo Sebastião Melo não informam precisamente a quantidade, mas o contrato da Sudu e as propostas comerciais de três das quatro vendas realizadas pela Inca indicam que pelo menos 470 mil livros foram enviados pelas duas fornecedoras para os 42,5 mil alunos da rede municipal, entre Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA).
As aquisições foram feitas a partir de procedimentos de outros entes públicos, chamadas de adesão à ata de registro de preço. É um modelo permitido pela legislação, que retira a necessidade de fazer licitação própria e agiliza a realização do gasto público.
Na lista de itens sem uso, há acervo literário e obras de educação financeira, empreendedorismo e projetos de vida e educação ambiental e sustentabilidade. Como são materiais novos, os professores dizem que seria necessário tempo e orientação para aproveitar os títulos na rotina de ensino, mas isso não teria acontecido.
Um ano depois de feita a maior parte da compra, o GDI localizou 146 caixas de livros da Inca, fechadas e acomodadas improvisadamente, nas escolas municipais Porto Novo e Jean Piaget, na Zona Norte, e na Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro. Somente essa amostragem aponta 7.592 exemplares sem utilização.
No primeiro colégio, uma servidora relatou que as caixas tiveram de ser manipuladas com luvas após terem sido entregues pela Smed sujas, molhadas e mofadas.
Dezenas de kits pedagógicos da Mind Lab do Brasil Comércio de Livros, compostos por publicações e jogos, também estão estocados em caixas nas escolas e em um depósito da Smed, tomando poeira. A aquisição, em agosto de 2022, foi feita por inexigibilidade de licitação, situação em que uma empresa detém a exclusividade de fornecimento de determinado produto. O custo foi de R$ 14,4 milhões.
Com cerca de 450 alunos, também há na Escola Municipal Mario Quintana, na Restinga, amostras de desperdício de compras feitas pela Smed. Em uma sala, armários estão desde o ano passado abarrotados de kits pedagógicos da Mind Lab. O valor unitário do kit do aluno é de R$ 247, e o do professor, R$ 645, conforme proposta de venda.
O objeto do contrato feito pela Smed é a "aquisição de metodologia pedagógica voltada ao desenvolvimento de habilidades cognitiva, social, emocional e ética dos alunos da rede pública municipal de ensino". O detalhe é que, para o material ser usado, é preciso que professores sejam treinados para depois compartilharem com os alunos. Enquanto a formação não ocorre integralmente, o material fica estocado.
— Todo recurso que chega é importante, mas foi um volume (de livros e kits) muito grande e sem orientação e formação. Foi no atropelo, não houve trabalho pedagógico. Os livros têm de ser planejados a partir de cada realidade, tem que ter um significado para professores e alunos — analisa uma servidora.
Na Escola Prof. Larry José Ribeiro Alves, na Restinga, a biblioteca — que não funciona há três anos — serve de depósito (foto abaixo). São dezenas de caixas de livros e de kits pedagógicos integrantes da compra feita do Mind Lab. Quando a reportagem esteve na escola, em maio, estava prevista a chegada de uma funcionária para organizar o local.
Ainda na Restinga, a biblioteca também é o ponto de concentração de livros sem uso na Escola Municipal Senador Alberto Pasqualini. Há caixas da Inca amontoadas em um canto do espaço.
A direção planeja a aquisição de sacolas reforçadas para que os alunos carreguem para suas residências parte dos livros — há indicação de que algumas obras são para uso do estudante em casa. Para servidores, no entanto, a liberação do material, sem a capacitação dos professores para os conteúdos, pode tornar a proposta de aproveitamento inócua.
— Usar o material de forma errada também é desperdício de dinheiro público — atesta uma diretora da rede municipal.
Equipamentos digitais parados
O desperdício não se limita aos milhares de livros e centenas de kits pedagógicos. Em duas escolas municipais — Jean Piaget (foto abaixo) e Saint Hilaire — e no galpão de patrimônio da Smed, a reportagem localizou 1.238 chromebooks sem uso, cujo custo unitário é de R$ 1.984, somando R$ 2,456 milhões em equipamentos guardados sem chegar aos alunos.
Esses aparelhos foram adquiridos em um pregão eletrônico pela Smed em março de 2022. A prefeitura acordou que pagaria R$ 49,6 milhões por 25 mil chromebooks, que são notebooks de pequeno porte, junto à fornecedora Microsens S/A. Nas escolas em que o equipamento está em operação, professores e diretores elogiam o uso da ferramenta para o ensino das crianças.
Somente no depósito da Smed, na Rua Olavo Bilac, são 850 cromebooks estocados sem o cuidado necessário. Caixas sujas de poeira e de excremento de pombos guardam equipamentos que seriam muito melhor aproveitados pelos estudantes.
A distribuição das estações de carga dos aparelhos, chamadas de hacks, também prejudica o uso dos cromebooks. Para algumas instituições de ensino, foram enviados carregadores em número abaixo do necessário, o que inviabiliza o uso dos aparelhos e obriga diretores a deixar centenas de notes em salas improvisadas.
Enquanto parte dos aparelhos está desligada por falta de carga, uma instituição de educação infantil da Zona Norte recebeu um hack de forma desnecessária. Nessa escolinha, a estação ganhou o apelido de "elefante branco" e está sendo usada como armário e cômoda. Para a mesma unidade foram dados cadernos universitários, material não usado na Educação Infantil.
Em outra unidade escolar na Zona Sul, mesas digitais interativas — de um total de 400 adquiridas em adesão à ata de registro de preço pela Smed, em um contrato de R$ 10,4 milhões — estão paradas por falta de tomadas. A escola precisa comprar réguas e, só depois, saberá se a rede elétrica suporta os equipamentos.
O que os funcionários já sabem é que as estações de carregamento dos chromebooks não podem ser acionadas ao mesmo tempo. Como a rede não tem capacidade, é preciso fazer rodízio para ligar os equipamentos evitando, assim, que os disjuntores desliguem automaticamente.
— A educação tem escassez de infraestrutura básica, desde caixa d'água, rede elétrica e manutenção. Há falta de monitores para crianças especiais e de professores para algumas séries. O que vimos é a compra questionável de grande quantidade de itens que não estão sendo aplicados da melhor maneira. É um nítido cenário de desperdício — avalia a vereadora Mari Pimentel (Novo), que tem feito visitas frequentes à rede municipal.
O que diz a Smed
A secretária municipal da Educação, Sônia Maria Oliveira da Rosa, defendeu as compras, mas reconheceu que material parado "não é natural". Ela afirmou que os livros da Inca, da Sudu e da Mind Lab foram adquiridos para dar conta da recuperação de aprendizagem dos alunos no pós-pandemia. Ela destacou que são materiais que fazem parte da base nacional comum curricular, abordando as novas competências do século 21.
Ela reconheceu, contudo, que “não é natural” que os livros estejam encaixotados em locais improvisados em escolas, sem uso. Ela diz que, das 98 escolas próprias da rede municipal, pelo menos 12 têm problemas de desuso de materiais. O GDI esteve em oito e, em todas elas, o entrave foi constatado.
— Já fizemos apontamentos para essas escolas e estamos acompanhando de perto as pouquíssimas que não se enquadraram nessa perspectiva de organização e de colocar esse material na mão de cada aluno — afirmou a secretária.
Questionada se a responsabilidade era exclusivamente das escolas, respondeu, no primeiro momento, que isso seria “óbvio”. Depois, reconheceu que a Smed tem responsabilidade também.
Sobre os chromebooks parados por ausência dos hacks de carga, Sônia declarou que a intenção é regularizar a situação e colocar todos os chromebooks em uso no segundo semestre de 2023. Esses aparelhos foram comprados em março de 2022.
Duas CPIs na Câmara
Na sessão de segunda-feira (5), vereadores protocolaram dois pedidos, ambos contendo o número necessário de assinaturas, de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar supostas irregularidades na Smed.
Há semanas havia o indicativo de que a vereadora Mari Pimentel, com apoio de parlamentares de oposição, poderia emplacar uma CPI para apurar supostas irregularidades que vinham sendo denunciadas com frequência no plenário da Câmara. O governo do prefeito Sebastião Melo, contudo, resolveu se antecipar.
O vereador Idenir Cecchim (MDB), líder do governo no Legislativo, apresentou requerimento com 12 assinaturas para deflagrar uma CPI. Foi uma estratégia para assegurar aos governistas o controle da comissão e das principais funções, a de presidente e de relator.
Os dois requerimentos foram encaminhados à Procuradoria da Câmara, que avalia se estão cumpridos todos os requisitos para a continuidade do processo e instalação das CPIs.