O setor de auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) apontou, em relatórios oficiais de caráter público, possíveis irregularidades na aquisição de telas interativas para escolas da rede municipal pelas prefeituras de Porto Alegre e Cachoeirinha. Nos dois casos, as compras ocorreram da mesma fornecedora, a Smart Tecnologia em Comunicações, de Lajeado, por adesão a uma ata de registro de preços, espécie de "carona" em procedimentos licitatórios feitos por outros entes públicos.
Os auditores do TCE apontam suposta prática de sobrepreço, restrição à competitividade entre potenciais fornecedores, ausência de planejamento e inobservância de alertas de servidores das prefeituras de que a compra seria desvantajosa.
Os relatórios de auditoria são feitos por servidores técnicos e auxiliam os processos de análise de contas do setor público, mas não significam condenação. Depois dessa etapa, cabe ao Ministério Público de Contas (MPC) a decisão de requerer eventuais punições, o que é julgado pelos sete conselheiros do TCE.
Os dois casos aguardam manifestação do MPC. Não há, até o momento, decisão final da Corte de contas.
188 telas interativas na Capital
No procedimento de Porto Alegre, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) adquiriu, nos últimos dias de dezembro de 2022, 188 telas interativas de 75 polegadas. Para concretizar o negócio, aderiu à ata de registro de preço da prefeitura de São Leopoldo. O custo unitário foi de R$ 32 mil, o que deixou o valor final em R$ 6 milhões.
Para comparar os preços praticados no mercado, auditoria registrou que a prefeitura de Campinas do Sul (RS) adquiriu equipamento, com exigências semelhantes às do pregão realizado por São Leopoldo, incluindo o tamanho de 75 polegadas, pelo valor unitário de R$ 20.898 — mais de R$ 11 mil a menos.
As telas interativas são instaladas em sala de aula para o ensino dos alunos, tendo a opção de uso de caneta digital para escrita, acesso à internet para a realização de atividades pedagógicas e suporte dos sistemas operacionais Android e Windows.
O relatório informa que Porto Alegre havia lançado edital próprio para a aquisição das telas no segundo semestre de 2022, mas optou pelo cancelamento. Cerca de dois meses depois, no final de dezembro, a prefeitura aderiu a ata de registro de preço de São Leopoldo.
A Procuradoria-Geral do Município (PGM) apontou, em parecer, que não houve pesquisa de preço suficiente que demonstrasse vantagem em aderir ao procedimento do município do Vale do Sinos. A sinalização foi de que seria mais econômico fazer a compra em licitação própria, mas a Smed decidiu levar adiante o modelo da carona.
Também foi indicado que o pregão realizado por São Leopoldo conteve suposta restrição ao caráter competitivo por exigir certas características das lousas digitais que diferem da média dos produtos do mercado.
Ao embarcar no procedimento via adesão, a Smed de Porto Alegre teria adquirido as tecnologias a partir de licitação que teria essas inconsistências. São destacadas as supostas falta de planejamento, ausência de manifestação do Conselho Municipal de Educação e de reuniões com os professores sobre a aquisição dos equipamentos para uso em sala de aula.
"Essa é uma lacuna fatal para que um projeto não dê resultados esperados, pois as partes interessadas tendem a rejeitar a solução das quais não participaram desde o início. Os professores, enquanto usuários finais, deveriam ser ouvidos", diz trecho do relatório.
321 telas interativas em Cachoeirinha
No município da Região Metropolitana, a decisão foi por fazer a compra de 321 lousas digitais, ao custo unitário de R$ 32 mil, a partir de adesão a ata de registro de preço do Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Rio Taquari (Consisa VRT). O valor total do negócio, realizado em setembro de 2022, foi de R$ 10,272 milhões.
O relatório de auditoria trouxe, a título de comparação, a compra de telas interativas de características semelhantes feita pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), com valor unitário de R$ 7,7 mil. O equipamento adquirido pela universidade reproduz, na sua descrição, algumas especificações semelhantes às do aparelho de Cachoeirinha. Na compra baiana, a tela era maior, de 86 polegadas contra 75 da cidade gaúcha.
A auditoria informou que os equipamentos comercializados pela Smart Tecnologia são importados da China pelo custo unitário de R$ 10,1 mil, o que foi verificado em nota fiscal de armazenagem emitida pela empresa para que um depósito de propriedade de terceiro estocasse a mercadoria enquanto não fosse vendida.
O serviço de instrução do TCE é responsável por produzir análises a partir dos achados da auditoria e das defesas dos envolvidos, promovendo cotejo. Ficou registrado no processo pelo setor de instrução que o custo final de cada aparelho é de R$ 16,7 mil, somando os R$ 10,1 mil da aquisição mais os impostos de nacionalização e de venda.
A área de instrução avaliou que a contratação foi desvantajosa aos cofres públicos porque há no mercado opções mais baratas que poderiam satisfazer as necessidades da prefeitura, mas avaliou que não foi possível, até o momento, fazer "apuração precisa de sobrepreço". Ao mesmo tempo, afirma que a Smart Tecnologia não conseguiu comprovar a estrutura da formação de preço final de R$ 32 mil, o que inclui alegados custos operacionais, garantias e despesas indiretas.
Chamada a se manifestar no processo no TCE, a fornecedora argumentou o valor de R$ 32 mil por equipamento em decorrência de custos adicionais como pacote de softwares e aplicativos, entre outros.
A auditoria considerou "bastante questionável" a justificativa de gastos adicionais pela empresa de R$ 7,2 mil por lousa para a instalação de softwares e aplicativos. Isso porque os produtos já vieram com os sistemas Android e Windows e, depois de importados da China, ficaram em um depósito de terceiro. De lá, saíram para a posse das prefeituras que efetuaram compras.
"Nenhum tipo de adicional de serviço ou peça foi embutido nos equipamentos importados, de modo que eles já foram importados prontos para serem comercializados com os municípios", diz o relatório de auditoria.
Em setembro de 2022, a Superintendência de Compras e Licitações da prefeitura de Cachoeirinha se opôs, via memorando, à compra por adesão a ata de registro de preço. Em documento endereçado ao prefeito, Cristian Wasem, o órgão afirmou ser contrário ao uso do instrumento e manifestou preferência por edital de licitação próprio, com "ampla divulgação e concorrência".
Pouco antes, entre julho e agosto de 2022, a prefeitura de Cachoeirinha já havia comprado 38 telas interativas de 65 polegadas ao custo unitário de R$ 24,8 mil, em pregão eletrônico realizado pelo município. A superintendência manifestou estranheza com a mudança de postura sobre os quantitativos. O documento interno destacou que, "nos últimos meses, a Smed vem encaminhando solicitações de adesões em atas de registros de preços" com o objetivo de "gastar os recursos públicos sem planejamento".
"Alguns meses atrás 38 equipamentos seriam suficientes, agora terão que adquirir 321 telas interativas", diz o ofício do setor de Compras e Licitações enviado ao prefeito.
Wasem respondeu, igualmente por memorando, sustentando que a aquisição estava amparada pela Diretoria de Tecnologia da Informação do município e por um escritório de advocacia privada que emitiu parecer. O gestor respondeu que "nesse tipo de aquisição o preço (...) não deve ser o único balizador", destacando itens como especificações técnicas, funcionamento e manutenção.
Para a auditoria do TCE, a análise jurídica do caso cabia exclusivamente à Procuradoria-Geral do Município (PGM), o que pode ter ocasionado outra irregularidade.
A legislação federal prevê que as aquisições por sistemas de registro de preços serão regulamentadas por decreto. No caso de Cachoeirinha, essa norma determina que, ao pegar uma carona, a gestão poderá adquirir, no máximo, 50% do quantitativo de itens licitados originalmente.
Como a ata de registro de preços do Consisa VTR era para 600 telas interativas, Cachoeirinha teria como limite a compra de 300 unidades. Ao adquirir 321, excedeu o limite legal e cometeu nova irregularidade, aponta a auditoria.
Por fim, o setor registrou ter visitado duas escolas do município em outubro de 2022 para inspecionar o uso dos equipamentos. Em ambos locais, foi constatado que a rede de internet não estava em "perfeito funcionamento", o que prejudicou o desempenho das lousas digitais.
Pedidos cautelares
O setor de auditoria tem competência para solicitar aos conselheiros do TCE medidas cautelares que barrem temporariamente a vigência de contratações e desembolsos possivelmente danosos aos cofres públicos.
No caso de Cachoeirinha, em novembro de 2022, foi concedida uma medida cautelar por um conselheiro-substituto do TCE: ele suspendeu a adesão do município à ata de registro de preço do Consisa VTR e impediu qualquer pagamento em favor da Smart.
A prefeitura e a empresa recorreram e, em janeiro de 2023, a cautelar foi derrubada pelo conselheiro-relator Renato Azeredo. Em consequência, a contratação voltou a ter vigência.
Em Porto Alegre, a auditoria fez pedido de suspensão de repasses de valores e da adesão a ata de registro de preço de São Leopoldo, mas o conselheiro Azeredo negou a requisição e determinou que as possíveis irregularidades sejam analisadas no julgamento de mérito.
Os dois casos aguardam parecer do MPC e, depois, as apreciações de mérito dos conselheiros.
Contrapontos
O que diz a Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre
"A Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) esclarece que as telas interativas foram adquiridas pelo município de acordo com a legislação, com total transparência e lisura. A atual gestão acredita que a inovação e a tecnologia são recursos essenciais para a implantação de uma política pública que ficará como legado para a rede municipal de Ensino, tornando as aulas mais modernas, eficientes, lúdicas e inclusivas para todos os estudantes. Não houve irregularidades.
Inclusive, a própria decisão do Tribunal de Contas do Estado vai ao encontro da justificativa técnica da Smed, conforme fragmento da decisão que não suspendeu a contratação:
'Relativamente às possíveis restrições de competitividade do Pregão Eletrônico nº 47/2022 do Executivo de São Leopoldo - o qual resultou no registro de preços utilizado pelo Executivo de Porto Alegre para adquirir as telas interativas - os itens apontados como restritivos pela Área Técnica dizem respeito às especificações de memória, armazenamento, processamento e operabilidade dos aparelhos, os quais seriam superiores às necessárias para as atividades pedagógicas a que as telas se destinam. Entretanto, a aludida superioridade técnica, por outro lado, possibilita que futuras atividades que eventualmente demandem maiores capacidades de hardware também possam ser efetivadas com as telas interativas em questão sem a necessidade de novas aquisições.'
Nesse sentido, encaminhamos ao TCE informações a respeito da importância e qualidade técnica dos referidos equipamentos. Ainda, ressalta-se que tais telas interativas possuem itens necessários para o melhor desenvolvimento das atividades pedagógicas em sala de aula, seguindo as instruções de capacidade técnica realizada e fornecida pela PROCEMPA, contendo elevada capacidade e superioridade técnica, bem como segurança e proteção, uma vez que possuem, dentre outros:
(a) sistema multitoque de pelo menos 20 toques para que mais alunos possam interagir ao mesmo tempo;
(b) no mínimo 256 GB de armazenamento SSD para melhor comportar e desenvolver as atividades, inclusive com maior durabilidade, sem a necessidade de novas aquisições para substituição;
(c) homologação da ANATEL, o que comprova que o produto respeita padrões normativos de comunicação, imunidade de emissão irradiada e conduzida de perturbações eletromagnéticas e segurança elétrica."
O que diz a prefeitura de Cachoeirinha
"O sobrepreço não foi constatado após auditoria do TCE-RS (não há decisão do tribunal e o entendimento da área técnica é diferente desta afirmação), haja vista as devidas comprovações em relação à qualidade dos equipamentos adquiridos. A Superintendência de Compras comparou equipamentos que em hipótese alguma poderiam ser comparados.
As 38 telas de que tratou a Superintendência de Compras tiveram sua aquisição motivada pela própria Superintendência, situação em que as telas não atenderam o real objetivo da Secretaria de Educação com as escolas, o qual seria oportunizar autonomia aos professores em sala de aula para planejar materiais e aulas contando efetivamente com a disponibilidade de equipamento em sua sala de aula.
Neste quesito, as 38 telas deveriam ser alocadas na quantidade uma por escola, o que tornaria inviável na prática escolar.
Também nas 38 telas apontadas como ideais e com caráter de economicidade pela Superintendência de Compras, estas são formadas por equipamentos fracionados, como computador, caixas de som, entre outros, em que cada empresa licitante deveria entregar uma parte a fim de completar o produto, podendo este ser utilizado somente após a entrega dos equipamentos para montar o produto final.
Ademais, as 38 telas não contaram com parecer da área de TI da prefeitura municipal e não contavam com selo obrigatório de controle de qualidade.
Importante ressaltar que até a presente data as 38 telas não foram instaladas, devido a descumprimento parcial do contrato, o que já fora notificado pela Secretaria de Educação.
As 321 telas adquiridas, como de fato está ocorrendo, são fixadas por sala de aula, oportunizando que o professor conte permanentemente com o equipamento em seu planejamento.
Outrossim, não exigem qualquer deslocamento, o que não ocorreria com as 38 telas pensadas pela Superintendência de Compras, pois deveriam ser deslocadas permanentemente, o que provoca maior dano e menor vida útil ao equipamento.
O parecer jurídico emitido por escritório privado buscava evidenciar posição de profissional sem vínculo com a administração pública, de modo a não intuir qualquer interferência que pudesse ser suscitada pela relação de servidor público com a administração.
No intuito de esclarecer as medidas adotadas pela Secretaria Municipal de Educação de Cachoeirinha, elucidamos que planejamento fora motivado tomando como base o impacto tecnológico e sua real necessidade no meio educacional, a qual se consolidou com as mudanças exigidas pela pandemia, quando profissionais da educação passaram a fazer uso permanente de recursos como vídeos, plataformas que facilitam o manejo com conteúdos escolares e, em especial, o atrativo tecnológico, característica marcante que identifica esta geração de crianças e adolescentes que hoje frequentam os espaços escolares, atreladas a estes fatores as projeções previstas na Base Nacional Comum Curricular de implantação e uso da tecnologia em meio à educação.
Oportuno tratar que a motivação de adesão à ata se deu em virtude de município vizinho, Gravataí, possuir mesmo produto por intermédio de mesma ata."
O que diz a Smart Tecnologia em Comunicações
"Relativo à informação de suposto sobrepreço, foi esclarecido junto ao TCE/RS que ocorrem dois equívocos por parte da auditoria na avaliação dos equipamentos.
O Serviço de Auditoria despendeu esforços em buscar equipamentos adquiridos por outros órgão governamentais, fazendo tal pesquisa em portais de fora do âmbito do Estado do RS, sem mencionar qualquer busca junto ao LicitaCon, sabidamente um canal criado mantido pelo TCE/RS e que possibilita o parâmetro de preços contratados pela administração pública no âmbito do Rio Grande do Sul, sem ter que se utilizar de achismo ou de precificações distantes de qualquer possiblidade de comparação (o relatório registra que, à época da auditoria, o LicitaCon estava indisponível por conta de ataque hacker sofrido pelo TCE).
O segundo ponto que se esclarece em relação ao preço é o equívoco que o próprio Serviço de Auditoria reconhece e corrige, uma vez que de primeiro momento apenas considerou o valor constante de Nota Fiscal de “entrada” do equipamento, sem fazer qualquer mensuração ou sem nem considerar impostos incidentes sobre a nacionalização e posterior venda do equipamento. Para tanto, a Smart Tecnologia abriu sua planilha de composição de custos, enviando-a para o Serviço de Auditoria. Existem além do custo do equipamento e impostos incidentes no lançamento de entrada, custos operacionais para operações financeiras e a incidência de impostos na venda. Ou seja, em relação ao preço final de R$ 32 mil, 52,208% correspondem ao custo de aquisição e nacionalização do equipamento e mais impostos de incidentes na venda.
O custo operacional de garantia pelo período de 36 meses, onde a empresa realiza manutenção, capacitações, assistência online por sete dias por semana, ou seja, existe um corpo técnico e uma estrutura operacional permanentemente mobilizados para atendimento de assistência técnica. Também se contabiliza a reserva técnica de equipamentos e peças de reposição que, na média, equivale a 3% dos equipamentos vendidos ao cliente.
A título de exemplo de demanda de suporte que representa alto custo é, caso uma tela perca a funcionalidade, esta é totalmente substituída para que jamais fique o cliente sem poder utilizar a ferramenta em sala de aula.
Quanto ao custo de R$ 7 mil, informo que quando nacionalizadas e preparadas para a entrega aos clientes, são revisadas junto ao Centro Logístico (depósito) e, neste momento, são realizadas as instalação/ativação dos pacotes de softwares e aplicativos que compõem os equipamentos. A informação do Serviço de Auditoria de que “não haveria outro software a instalar” é descabida e totalmente especulativa. Além do Sistema Android e Windows com licença perpétua ao cliente, ainda compreendem o rol outros 12 aplicativos específicos para equipamentos destinados ao uso educacional.
Além disto, está englobado neste valor “destacado” na composição do valor da NF de venda a realização de treinamento realizado junto ao cliente, nos formatos ‘presencial e ‘híbrido’ (presencial e EAD)."