Uma auditoria da Secretaria Estadual da Saúde (SES) revela suspeita de desvio de recursos públicos e descontrole no serviço de reabilitação auditiva da prefeitura de Bagé, na Região da Campanha, que atende a 22 municípios da região. Há casos de pessoas que morreram na fila de espera, segundo revelou reportagem do RBS Notícias, da RBS TV, desta quinta-feira (1°).
A investigação aponta que foi autorizada a compra de 3.665 aparelhos auditivos entre 2016 e 2021, mas somente foi comprovada a entrega de 602 equipamentos, sendo que em apenas 38 prontuários foi anexada a nota fiscal.
— Hoje nós temos um volume de mais de 4 milhões que poderia a vir a ser devolvido se não houver comprovação. No que nós temos até o momento de comprovação é um número bastante excessivo até de pacientes que não tiveram a entrega das próteses ou porque o aparelho não está lá ou mesmo que sequer foram comprados — afirma Bruno Naundorf, diretor do departamento de auditoria do SUS da SES.
Em tratamento auditivo, a dona de casa Maria Elisabete Soares de Oliveira aguarda pela prótese desde 2018. Ela compensa com os olhos a deficiência nos ouvidos. Por não escutar o barulho dos carros, precisa redobrar a atenção quando atravessa a rua. Escutar o rádio, só com volume alto. E nem sempre consegue escutar o chamado de quem liga pra saber notícias dela.
— Eu me sinto profundamente triste e sinto muito descaso com a gente que tem esse problema, idoso ainda né — queixa-se Maria Elisabete.
O relatório de auditoria obtido pela reportagem mostra que vários pacientes morreram na fila de espera. Em 2019, por exemplo, apenas dois receberam próteses, e 15 faleceram aguardando o equipamento pra ouvir melhor. É o caso da dona Maria Hortênsia Dutra Monteiro, de Jaguarão, que também precisava de uma prótese, mas morreu em 2019 aguardando pelo aparelho na prefeitura de Bagé.
— Ela começou, não ouvia mais, e era caro realmente, aí resolveu ir atrás das próteses, antes tava esperando que chamassem ela, entendeste? E acabou essa história que faz três anos que ela morreu, e não recebeu prótese nenhuma — diz a cunhada Ana Rosa Ferreira Monteiro.
Durante três dias vasculhando tudo no setor de saúde auditiva da prefeitura, os auditores descobriram descontrole e desorganização. Encontraram 408 aparelhos auditivos armazenados, sem molde, que é parte que encaixa a prótese nos ouvidos. E 1,5 mil moldes, sem os equipamentos. O nome da dona de casa Mara Regina Rezende Jardim, 60 anos, aparece na lista de pacientes para os quais o equipamento estaria disponível na prefeitura, desde 2018.
Mas ela nunca recebeu a prótese. Nesses cinco anos, a saúde auditiva dela vem piorando. Sempre que sai de casa, ela leva junto o neto Yuri. No mercado, é ele quem faz a ponte com os atendentes, repetindo cada frase, em voz alta, ao pé do ouvido da avó.
— Maior judiaria que estão fazendo. Porque eu sou pobre, não tenho condições de comprar um aparelho. Eu tô cansada, eu me estresso, não consigo escutar, as pessoas ficam olhando, falando comigo, e eu não consigo escutar. É muito triste para um ser humano não poder escutar — reclama.
Para o professor da faculdade de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Sadi Selaimen da Costa, a demora em receber um aparelho auditivo pode trazer graves prejuízos aos pacientes.
— Tem vários e vários trabalhos que mostram uma associação importante entre uma deficiência auditiva não corrigida na terceira idade e déficits sensoriais e cognitivos no futuro, sendo bem simples, demência senil e Alzheimer. Mas a principal consequência é no bem-estar das pessoas.
Para o professor de Direito Administrativo, com especialização em Direito Administrativo e Constitucional, José Luiz Blaszak, os gestores da saúde em Bagé podem ser responsabilizados.
— Não é uma ocasião, não é 30 dias, são anos de ineficiência e é nesse requisito que vai pesar a lesão ao erário público — disse.
Prefeitura diz que está em dia
A prefeitura de Bagé afirma que a prestação do serviço foi impactada pela pandemia, mas está em dia. E contesta os números da auditoria, garantindo que mais da metade do valor a ser devolvido foi utilizado.
— Há uma discrepância entre um valor apontado como devido ao município e o que é efetivamente devido quando se interrompeu o serviço, que esses valores já esta sendo providenciado por empenho por parte da prefeitura mas nós não vamos fazer a devolução até que intime esse trabalho que está sendo feito nesse processo administrativo da Secretaria (da Saúde) — declarou José Heitor Gularte, procurador-geral da prefeitura de Bagé.
Cópia da auditoria foi encaminhada ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) e ao Ministério Público Estadual (MP-RS). O MP diz que está apurando o caso, já o TCE não respondeu ao pedido de informações da reportagem.