A Polícia Civil deflagrou, na manhã desta terça-feira (23), a Operação Capa Dura, que investiga supostos delitos que teriam sido cometidos por gestores públicos e empresários em compras de livros didáticos e de literatura pela Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre (Smed). Quatro pessoas foram alvo de prisão temporária, válida legalmente por cinco dias. A Justiça pode, eventualmente, fixar tempo menor de restrição de liberdade. A polícia não divulgou os nomes, mas entre os detidos estão três gestores públicos e um empresário. São eles: a ex-secretária municipal da Educação Sônia da Rosa, a ex-assessora Mabel Luiza Leal Vieira, a ex-coordenadora pedagógica Michele Bartzen e o empresário Jailson Ferreira da Silva.
Também foram cumpridos 36 mandados de busca e apreensão em cinco Estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro e Maranhão. Foram recolhidos aparelhos de telefone celular, eletrônicos e documentos. Entre os locais de busca e apreensão estão as sedes da Smed e da prefeitura, o Centro Administrativo Municipal, no Centro Histórico. A operação ainda obteve a apreensão e a indisponibilidade de 12 veículos e o bloqueio de sete imóveis. Em outra frente, a Justiça determinou que oito pessoas sejam afastadas das suas funções públicas por 180 dias. Um dos afastados é Alexandre Borck, conhecido na política como Xandão. Ele é presidente do MDB de Porto Alegre, partido do prefeito Sebastião Melo, e ocupa o cargo de secretário municipal Extraordinário de Modernização e Gestão de Projetos. Além disso, a Justiça determinou que 11 empresas e dois empresários fiquem proibidos de firmar contratos com órgãos públicos municipais e estaduais do Rio Grande do Sul.
O inquérito, conduzido pela 1ª Delegacia de Polícia de Combate à Corrupção (1ª DECOR), do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), apura suspeitas de fraudes licitatórias e associação criminosa. Os mandados foram assinados pelo juiz Orlando Faccini Neto, da 1ª Vara Estadual de Processo e Julgamento dos Crimes de Organização Criminosa e Lavagem de Dinheiro. O inquérito policial foi aberto após série de reportagens do Grupo de Investigação da RBS (GDI) revelar supostas irregularidades na aquisição dos livros.
As quatro prisões temporárias ocorreram para permitir o aprofundamento das investigações. O inquérito colheu elementos de suposta participação dos detidos em fraudes licitatórias. Nos casos de afastamentos do exercício da função pública, a justificativa é de que os atingidos pela medida exerceram possível influência nas aquisições sob suspeita.
O prefeito Sebastião Melo não está entre os investigados. A Operação Capa Dura analisa cinco compras feitas pela Smed em 2022 junto às empresas Inca Tecnologia de Produtos e Serviços e Sudu Inteligência Educacional, todas elas por adesão à ata de registro de preço, instrumento conhecido como “carona” por acelerar o gasto público. Nesta modalidade, é possível aproveitar a licitação realizada por outro ente público para fazer uma aquisição. A opção pela carona liberou a Smed da tarefa de realizar os trâmites burocráticos de uma licitação própria.
Nas cinco compras investigadas, a Smed obteve cerca de 544 mil livros ao custo de R$ 34 milhões. Em junho de 2023, reportagem do GDI revelou que as publicações da Inca e da Sudu estavam encaixotadas e empilhadas em dois depósitos da prefeitura. Em um deles, os materiais estavam acondicionados sob goteiras, mofo e fezes de pombos. Também em escolas havia milhares de exemplares encaixotados e sem uso pelos estudantes. Diretores e professores reclamaram que os materiais foram enviados sem planejamento e em quantidade excessiva. Isso foi reafirmado por auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), cujo relatório apontou que os livros foram adquiridos em número “exorbitante”.
A série de reportagens do GDI ainda revelou que os processos administrativos das cinco compras por carona com a Inca e a Sudu começaram já com os orçamentos dessas empresas e não obedeceram as fases de planejamento do gasto. Uma das etapas é o termo de referência, onde deveria ser apresentada uma demanda do setor público e, depois, discutidas as possíveis soluções e modalidades de licitação. Os termos de referência, contudo, eram baseados nas propostas comerciais da Inca e da Sudu. Houve até cópia de trechos dos materiais informativos das empresas. Servidoras de carreira da Smed, ao prestar depoimento nas duas CPIs que apuraram as suspeitas na Câmara de Vereadores, afirmaram que partiu de uma assessora do gabinete da ex-secretária Sônia da Rosa a determinação para que os termos de referência fossem feitos dessa forma, supostamente direcionados à Inca e à Sudu.
Nas compras por carona, é necessário reunir orçamentos de outros potenciais fornecedores para demonstrar a chamada “vantajosidade”. Na prática, significa comprovar que, ao aderir a uma ata de registro de preço, a prefeitura estaria pagando um valor menor do que o cobrado por outros fornecedores. O GDI revelou que esses orçamentos foram apresentados por empresas do mesmo grupo econômico de Jailson Ferreira da Silva e Sergio Bento de Araújo.
O primeiro, Jailson, é representante da Inca. Ele usou uma empresa de propriedade dele, a World Soluções Educacionais, para acostar no processo administrativo um orçamento de valor mais elevado, utilizado para demonstrar a vantajosidade na compra de livros junto à Sudu. Sergio é o proprietário da Inca, sediada em Curitiba, onde foram cumpridos mandados de busca e apreensão.
A Polícia Civil se manifestou somente por meio de nota. Os delegados não estão concedendo entrevista por uma questão institucional. A Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul (Asdep) suspendeu as coletivas e o detalhamento de operações como forma de pleitear aumento salarial.
Contexto das compras de livros
Em 2021, a prefeitura de Porto Alegre não conseguiu investir o mínimo constitucional de 25% da receita corrente líquida em educação. Isso ocorreu em diversos municípios brasileiros naquele período e pode gerar sanções para os gestores responsáveis. Como era época de pandemia, o que causou o fechamento de escolas, o Congresso Nacional aprovou uma emenda constitucional permitindo que as prefeituras e Estados gastassem entre 2022 e 2023 os recursos que haviam sobrado dos anos de 2020 e 2021.
A Smed da Capital tinha, em 2022, o seu orçamento anual e mais as sobras de 2021 para aplicar. Com isso, foi dado início a uma série de compras por carona. Sônia da Rosa assumiu a titularidade da Smed em março de 2022. Em maio daquele ano, o prefeito Sebastião Melo publicou decreto para autorizar Sônia a fazer compras na modalidade da carona. Melo justificou que havia “a necessidade de celeridade das adesões pretendidas pela Smed”. Antes do decreto, a competência para as aquisições era da Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (Smap), que tem expertise em licitações.
No total, sob a gestão de Sônia, a Smed fez 11 compras por carona em 2022, incluindo as cinco investigadas pela Operação Capa Dura. O gasto total foi de R$ 73,5 milhões. Após as reportagens do GDI, Melo revogou o decreto que dava autonomia à Smed para fazer as caronas. Sônia acabou pedindo demissão da titularidade da Smed em junho de 2023.
Os livros
— Os mais de 500 mil livros que são objeto da investigação eram de literatura, educação financeira e consumo, empreendedorismo e projetos de vida, educação ambiental e sustentabilidade. Também havia exemplares da coleção Aprender Mais, direcionada ao reforço escolar para o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
— Mais de 73 mil livros de português e matemática, da coleção Aprender Mais, tiveram de ser recolhidos e substituídos por conterem erros de impressão e de tabuada. Esses exemplares foram vendidos pela Inca à Smed ao custo de R$ 6,6 milhões.
Contraponto
A Polícia Civil informou que Michele Bartzen e Mabel Luiza Leal Vieira ainda não constituíram defesa.
O que diz Sônia da Rosa
O advogado João Pedro Petek diz que se manifestará nos autos do processo.
O que diz Jailson Ferreira da Silva
O advogado José Henrique Salim Schmidt, que representa o empresário, enviou nota na qual diz:
"A prisão temporária possui como principal objetivo a oitiva do investigado. Quando convidado a prestar esclarecimentos junto à CPI da Câmara de Vereadores, este compareceu espontaneamente e respondeu aos questionamentos. Desde então, encontra-se à disposição de toda e qualquer autoridade, mediante simples convite. Nesse sentido, mostra-se desproporcional e desnecessária qualquer constrição de liberdade”.
O que disse o prefeito Sebastião Melo
O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, se manifestou por meio da rede social X, o antigo Twitter, e reiterou que as investigações sobre as irregularidades começaram na prefeitura. "Nenhuma eventual ilegalidade teve ou terá guarida na nossa gestão. Se comprovados crimes, que os agentes - públicos ou privados - sejam exemplarmente punidos", afirmou Melo.
O que diz a prefeitura de Porto Alegre
A prefeitura de Porto Alegre se manifestou por nota do Gabinete de Comunicação Social:
"Sobre a operação da Polícia Civil na manhã desta terça, 23, a Prefeitura de Porto Alegre reforça que a apuração de ocorrências na Secretaria Municipal de Educação (Smed) iniciou no âmbito Executivo, por determinação do prefeito, em junho do ano passado.
Todas as informações levantadas na auditoria interna foram divididas com os órgãos de controle para aprofundamento das investigações, além da adoção de medidas de reestruturação na operação logística e de aquisições no órgão. A gestão prima pela transparência e lisura na aplicação dos recursos públicos e tem todo o interesse em elucidar os fatos, estando em plena colaboração com as instituições."