A compra de votos é prática recorrente no Rio Grande do Sul, a julgar pelo volume de relatos desse tipo protocolados na Justiça Eleitoral e investigações abertas pelo Ministério Público (MP) e Polícia Federal (PF). Moradores de diferentes cidades procuraram também o Grupo de Investigação da RBS (GDI), que reúne, nesta reportagem, mensagens de políticos prometendo dinheiro a eleitores e gravações com pessoas que dizem ter apoiado candidatos em troca de favores.
As promessas feitas pelos aspirantes a vereador ou prefeito envolvem dinheiro, combustível para veículo, vagas hospitalares e até doação de animais para festas. Conforme a lei, os dois lados dessas negociações ilegais estão sujeitos a processos judiciais — trata-se de um crime. Os suspeitos são investigados por captação ilícita de sufrágio (também chamado corrupção eleitoral), enquadrado no Artigo 299 do Código Eleitoral, que prevê reclusão de até quatro anos e pagamento de multa a quem "dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita". Além disso, quem compra votos pode ser punido também com cassação da sua eleição e inelegibilidade por oito anos.
O número de investigações do Ministério Público Eleitoral que podem levar à cassação de eleitos cresceu 25% este ano, em relação ao pleito de 2020. Até o momento, são contabilizadas 411 ações para anular eleições de políticos ocorridas em 2024, movidas pela instituição ou por políticos adversários do suposto infrator. Ainda que sejam maioria, nem todos os processos são por compra de votos — há também abuso de poder econômico e outras irregularidades.
Na Polícia Federal, aumentaram todos os indicadores: de inquéritos, indiciados, operações policiais e prisões (veja tabela abaixo), conforme números da Divisão de Repressão a Crimes Eleitorais.
Cresceu também o número de ações de investigação judicial eleitoral — tipo de processo que pode levar à cassação do eleito e inelegibilidade dele por oito anos. Elas podem ser movidas tanto pelo MP como por partidos políticos, coligações e federações partidárias, explica o promotor de Justiça Rodrigo López Zilio, coordenador do Gabinete de Assessoramento Eleitoral (Gael).
— Uma das grandes novidades em 2024 é que, havendo cassação do prefeito eleito, não há mais posse do segundo colocado. É preciso realizar nova eleição — ressalta Zilio.
Ou seja, um transtorno, porque a população fica por algum tempo sem um dirigente municipal, no caso dos prefeitos cassados. Por último, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) também verifica um aumento de ações que podem levar a cassações de eleitos. As estatísticas de processos judiciais fornecidos abrangem compra de votos (corrupção eleitoral), abuso de poder econômico e similares. Uma das hipóteses para o crescimento da demanda judicial é que 2020 foi ano de pandemia e escassa campanha eleitoral nas ruas. O Grupo de Investigação da RBS (GDI) apurou casos de compra de votos espalhados pelo Estado. Confira, abaixo, alguns desses relatos. Os nomes dos eleitores serão preservados.
Arroio do Sal (Litoral Norte)
Nesse município, a suspeita de compra de votos recai sobre a chapa vencedora do pleito, formada pelo prefeito eleito Luciano Pinto da Silva (Republicanos), e de um primo e cabo eleitoral dele, o contabilista Marcus Vinícius de Souza Viana. A vitória ocorreu com uma diferença de 99 votos em relação à chapa adversária, do PSD. Foram abertas duas investigações. Uma, pelo Ministério Público Estadual e a pedido dos derrotados, com pedido de cassação dos eleitos (na parte cível). Outra, de responsabilização criminal dos supostos compradores de votos, por parte da Polícia Federal.
A reportagem contatou eleitores que apresentam supostos comprovantes de Pix, no valor de R$ 100, que teriam sido repassados por Viana a eles. Uma das que admite ter vendido o voto para eleger Luciano Pinto é uma adolescente de 16 anos. Ela diz que soube que pagavam por eleitor e mandou mensagem ao próprio candidato a prefeito pelo Republicanos, oferecendo apoio. Luciano teria dito que Pix não é com ele e mandou falar com Viana, seu cabo eleitoral e parente.
— Não deu nem dois minutos e Marcus (Viana) me ligou. Perguntou quantos eleitores tinha na casa e depois pediu minha chave Pix. Em seguida, mandou R$ 100, além de imagens de panfletos da campanha do Luciano e do (Valdir) Censi (candidato a vice) — disse a adolescente, que guarda o suposto comprovante da movimentação.
Outra eleitora, de 20 anos, também afirma que recebeu ligação de Marcus Viana, após mandar mensagem a ele avisando que votaria em quem lhe ajudasse.
— Escrevi no Whats que moro no bairro Figueirinha, onde tem um posto de saúde, que não tinha em quem votar e que meu marido e eu iríamos votar em quem nos ajudasse. Aí ele me ligou, confirmou, pegou meu Pix e mandou R$ 100. E pediu para eu falar para meus vizinhos que, se ganhassem, iriam ajudar mais ainda — relata, mostrando supostas mensagens trocadas com Viana e o suposto comprovante do Pix recebido.
Outra eleitora disse ter mandado mensagem direto ao candidato a prefeito, Luciano, prometendo:
"Tô indo ver com minha família. É 10. E vamos lutar para dar certo".
O número que seria do candidato responde:
"Já foi feito. 100".
A reportagem contatou uma líder comunitária que afirma ter denunciado o suposto esquema de aliciamento de eleitores em troca de dinheiro. Ela reuniu um dossiê com prints de supostos pagamentos a cabos eleitorais de Luciano, que foram enviados à Justiça Eleitoral como prova.
Promotor de Torres, Márcio Roberto Silva de Carvalho vai atuar tanto na questão eleitoral quanto na criminal. Ele solicitou e conseguiu quebra de sigilo bancário do prefeito e do vice eleitos, concedida pela juíza eleitoral de Torres, Marilde Angélica Webber Goldschmidt.
— Existem provas indicativas da veracidade dos fatos, como alguns Pix enviados pelo representante do prefeito eleito para eleitores. E há depoimentos também de eleitores que dizem terem sido procurados por integrantes da campanha do Luciano para vender seu voto, no dia da eleição — diz Carvalho, que, em princípio, vê elementos para pedido de cassação do prefeito e do vice eleitos.
CONTRAPONTOS
O que diz a defesa de Luciano Pinto da Silva:
O advogado Vanir de Mattos diz que não tem receio nenhum de que seu cliente seja condenado. "É um movimento político dos adversários do Luciano. Não há absolutamente nada que comprometa ele com infração eleitoral, a oposição tenta mutilar o resultado da eleição no Judiciário".
O que diz a defesa de Marcus Viana:
O advogado Sérgio Teixeira diz que a quebra de sigilo vai comprovar que não houve compra de votos. "Os alegados Pix são para pessoal que trabalhou na campanha ou prestadores de serviço. A nossa prova é muito mais robusta que a dos que acusam."
Caraá (Litoral Norte)
Nessa cidade encravada na Serra do Mar, mais de 20 pessoas declaram ter vendido apoio nas urnas para o vereador mais votado em 2024, Fabiano Santos (Republicanos). Os depoimentos constam em um inquérito aberto pela Divisão de Repressão a Crimes Eleitorais da Polícia Federal (PF), que investiga suspeita de corrupção eleitoral. O político também é alvo de pedido de cassação da sua eleição por parte do Ministério Público Estadual. A ação de investigação judicial eleitoral, movida pelo promotor de Justiça Camilo Vargas Santana, é por abuso de poder e captação ilícita de sufrágio. Caso condenado, o vereador pode ser cassado e ficar inelegível por oito anos.
Fabiano Santos é servidor público municipal e trabalha com operação de máquinas. Conforme depoimentos de eleitores à PF, ele teria prometido ajuda por meio de máquinas pertencentes a um familiar (para consertar estradas) e saibro. Há ainda indícios de que Fabiano teria pago por votos em Pix.
O GDI obteve cópias de diálogos por WhatsApp entre moradores de Caraá e o vereador. Em uma das conversas, uma eleitora se oferece para conseguir dois votos em Fabiano (dela e de uma amiga), desde que ele consiga ajuda. Fabiano pergunta "Quanto?", ela responde "300" para ela. O candidato baixa a oferta para R$ 300 pelos dois votos, e ela aceita. Depois exibe o Pix recebido em nome dele. A reportagem conversou com a eleitora, que confirma ter recebido o dinheiro do vereador.
— Eu sou uma dos mais de 40 que foram prestar depoimento, confirmando que venderam voto. Em dinheiro e material para casa — admite.
Outra eleitora, dona de casa, diz que recebeu R$ 150 em Pix. Afirma que escutou comentários de que Fabiano estava pagando por voto. Uma amiga teria recebido e repassado a ela.
— Pobre precisa de dinheiro, né. Aqui sempre deu compra de voto. Em todas as eleições é assim. Não tem risco de eu ser presa, né? Porque aí vai ter que precisar de um ônibus para levar essa cambada de gente, pelo amor de Deus — justifica.
O Ministério Público cogita propor a suspensão do processo judicial aos vendedores de voto que colaboraram com a investigação.
A PF já tomou cerca de 80 depoimentos e também, com mandados judiciais, realizou busca e apreensão na residência e em empresas de terraplenagem de familiares de Fabiano.
CONTRAPONTO
O que diz Fabiano Santos:
"Meus advogados aconselham a não me manifestar e nem comentar o processo. Vamos aguardar".
Veranópolis (Serra)
A Justiça Eleitoral investiga suspeitas de que o candidato a vice-prefeito vencedor das eleições de 2024 em Veranópolis, na serra gaúcha, praticou o crime de compra de votos no fim de agosto, durante a segunda semana da campanha eleitoral. A acusação se fundamenta em trocas de mensagens pelo WhatsApp nas quais o suposto negócio é acertado e em dois comprovantes de transferência Pix que estariam relacionados ao crime.
Os indícios anexados na ação de investigação apontam que, em um primeiro momento, um eleitor busca o candidato a vice-prefeito na chapa, João Guilherme Mazetto (PSD), e pede dinheiro em troca de sete votos. O candidato a vice, então, diz não ter dinheiro e sugere que o eleitor procure o coordenador da campanha, Moisés Pertile.
"Me arruma uns 200 de gasolina eu arruma 7 voto certo né", diz o eleitor, em um trecho inicial da conversa.
"Eu não tenho nada de dinheiro", responde o número que seria do vice da chapa.
"Me ajuda que te ajudo", reforça o eleitor.
"Tá tudo com a coordenação. Tô falando sério", justifica o candidato a vice, que na sequência encaminha ao eleitor um contato identificado como "Moises".
Segundo a investigação, trata-se de Moisés Pertile, então coordenador da campanha e presidente municipal do PSD. Conforme os diálogos investigados, Pertile teria acertado com o eleitor a compra de sete votos pelo valor de R$ 200.
"Boa noite, Moisa. Tudo certo. Tava falando cm Mazetto. E ele mandou fala cntg cara tenho 7 voto garantido (...) Eu pedi pra ele me arruma 200 pila pra coloca gasolina. Cm eu preciso d ajuda de vcs e cm vcs precisam da minha família pra apoia vcs. Teria cm me dá essa força pede pro mazeto se conhecemos a tempo", escreve o eleitor, que nas mensagens seguintes já encaminha a sua chave Pix.
A resposta de Moisés Pertile, conforme diálogos de Whatsapp extraídos pela PF, sugere concordância com o negócio:
"Olá. Sim. Farei o Pix."
Segue a conversa, e o eleitor indica ao político que precisa de R$ 350 e sugere ter potencial de, em troca, conseguir 10 votos.
"Tá difícil as coisa meu. Manda ai 350. 10 votos na caneta se n tiver pode me cobra amanhã vamos tá tudo lá reunido e vou cobrar deles poise confia moisa", escreve o eleitor.
O diálogo segue com o envio de um comprovante Pix no valor de R$ 200. O comprovante bancário está anexado à investigação e mostra a transferência de Moisés Pertile para o eleitor.
"Já mando os outros 150", acrescenta o número atribuído pela investigação da PF a Pertile.
Depois de mandar o comprovante do segundo Pix, o número atribuído ao coordenador afirma que também quer votos para a candidata à vereadora Rose Stasiak, do PSD.
"Então quero os votos pra Rose Stasiak. Pra vereadora", afirma.
Por determinação da Justiça Eleitoral, a Polícia Federal realizou a extração das conversas dos celulares dos envolvidos e a perícia do conteúdo. Pertile, o vice da chapa e o eleitor que teria vendido voto são investigados por captação ilícita de sufrágio.
A ação de investigação judicial eleitoral foi movida pela chapa que perdeu as eleições em Veranópolis.
CONTRAPONTOS
A defesa dos suspeitos afirma que não houve compra de votos e que as duas transferências por Pix se referem a doações motivadas por solidariedade.
“Nós entendemos que isso tem mais a ver com solidariedade, piedade e comoção do que com uma má-fé. Não vejo (na conversa) o objetivo de comprar votos daquela pessoa (o eleitor). Sobretudo porque a questão eleitoral surge depois (no diálogo)”, argumenta Rafael Morgental, advogado que representa os acusados.
São Borja (Fronteira Oeste)
Em São Borja, a Polícia Federal investiga a suposta interferência de uma facção criminosa nas eleições municipais. A apuração, em conjunto com o Ministério Público, identificou apoio material e financeiro de pessoas ligadas ao grupo criminoso a um candidato a vereador do município. Às vésperas das eleições de 5 de outubro, foram cumpridos 16 mandados de busca e apreensão, além do afastamento de sigilo de dados dos suspeitos.
O investigado é Celso Andrade Lopes (PDT), vereador que não conseguiu se reeleger, mas ficou como suplente. O MP move ação contra ele por abuso de poder econômico e captação ilícita de sufrágio (compra de voto). Dono de restaurante e hotel, o político teria feito distribuição de material de construção, de próteses dentárias, de dinheiro e de cestas básicas em troca de votos. Teria usado também cabos eleitorais não declarados.
A representação do Ministério Público fala explicitamente em vínculo com a organização criminosa de atuação dominante na Fronteira Oeste. A investigação aponta que a quadrilha teria captado votos em troca de cestas básicas e financiamento ilícito de gastos de campanha do candidato Lopes.
O promotor de Justiça Valmor Junior Cella Piazza, de São Borja, pede a cassação da diplomação de Celso como suplente e sua inelegibilidade por oito anos, além de multa.
CONTRAPONTO
O que diz Celso Andrade Lopes:
"Fico grato pela oportunidade de me defender, mas fui aconselhado pelos advogados a não me manifestar. Nem fomos citados no processo ainda, mas vamos nos defender".
Santana do Livramento (Fronteira Oeste)
Dois dias antes das eleições deste ano, a PF desencadeou a operação Los Intocables, para investigar delitos de corrupção eleitoral e falsidade ideológica eleitoral (caixa 2) em Santana do Livramento. Policiais federais cumpriram três mandados de busca e apreensão na residência e no comitê de um candidato a vereador, bem como em um posto de combustíveis. Ele teria distribuído gasolina por meio de vales, às vésperas da votação de 5 de outubro.
A investigação teve início a partir de informações de que o candidato estaria realizando doações a moradores, em troca de votos. Há suspeita de que ele seja financiado por contrabandistas. A PF diz que identificou "a atuação ativa e permanente de indivíduos com vasto histórico criminal na campanha do candidato investigado, inclusive por meio de doações em dinheiro".
A PF acrescenta ainda que há indícios de que o custeio do combustível doado teria sido proveniente de uma contabilidade paralela de campanha, com provável origem em crimes. A investigação foi repassada ao Ministério Público Eleitoral, com o fim de avaliar possível abuso de poder econômico, o que poderá ocasionar a cassação do registro do candidato.
O vereador alvo da operação é Cleber Custódio (PDT), eleito em 2020 e que tentava a reeleição — não conseguiu. É dono de uma marmoraria bem na frente do cemitério municipal de Santana do Livramento. Sempre ajudou companheiros de partido, os financiando durante quatro eleições.
CONTRAPONTO
A reportagem tentou contato com o vereador Cleber Custódio, mas não o localizou nos telefones que estão em seu nome.
União da Serra (Serra)
No município com a segunda menor população do Estado, União da Serra, também há uma investigação envolvendo uma suposta compra de votos em favor da chapa que venceu as eleições de 2024. Os alvos da representação do Ministério Público Eleitoral são o prefeito eleito, Cleonir Tauffer (MDB), o vice-prefeito eleito, Maurício Lazzaretti (PSD), e o atual prefeito, Cezer Gastaldo (PSD).
No entendimento do Ministério Público Eleitoral, que acompanha o relato do eleitor, o atual prefeito Gastaldo, buscando votos para os seus aliados políticos, pagou via Pix o valor de R$ 2.590 a um eleitor do município. Segundo a representação, o valor exato tinha como objetivo custear “o pagamento de curso a sua filha (...) para obtenção da carteira nacional de habilitação, em troca de apoio ao candidato a prefeito de União da Serra, Cleonir”.
CONTRAPONTO
Defensor dos três investigados, o advogado Lieverson Perin afirma que a transferência via Pix que aparece na ação diz respeito a uma transação comercial entre político e eleitor, sem relação com as eleições. Conforme o advogado, o eleitor trabalha como pintor e já havia sido contratado por Gastaldo para serviços gerais em anos anteriores. No episódio em questão, ainda segundo a defesa, Gastaldo emprestou dinheiro ao eleitor em troca de futuros serviços de pintura.
— O (eleitor) denunciante pediu o valor emprestado (a Gastaldo) para uma situação bem específica, para pagar a carteira de motorista da filha. Houve uma negociação comercial. Mas não se tratava, absolutamente, de voto, absolutamente nada — afirma o advogado.