Empresas processadas judicialmente por suspeitas de desvios de verbas foram contempladas com contratos para remoção de detritos em quatro das 10 cidades com mais atingidos pelas enchentes de maio no Rio Grande do Sul. É o que constatou o Grupo de Investigação da RBS (GDI), ao analisar as ações judiciais a que elas respondem.
São negócios milionários e firmados de forma emergencial, o que permite a dispensa de licitação, como o GDI apurou, ao verificar todos os contratos. A escolha de prestadores de serviço, em situações como essa, costuma ser feita mediante dispensa eletrônica com disputa, um formato de seleção mais rápido e simplificado (menos documentação e sem prazo para recurso, por exemplo). Apesar de as empresas contratadas ou seus diretores responderem a vários processos judiciais, elas não estão proibidas de firmar contratos com o poder público. Isso porque a proibição só acontece após condenações definitivas por crime ou improbidade e, em alguns casos, por punições administrativas que consideram a empresa inidônea. Isso, aparentemente, não ocorreu com essas contratadas por municípios flagelados pelas cheias.
Os contratos firmados após as enchentes preveem locação de maquinário (retroescavadeiras e caminhões) e fornecimento de equipes.
A THV Saneamento Ltda, de Pouso Alegre (MG), deve receber a maior quantia prevista: até R$ 165,2 milhões acertados pela prefeitura de Canoas para limpeza dos danos causados pela enchente (caso o total de detritos se confirme). O município teve 157 mil atingidos, o maior número do Rio Grande do Sul, e os valores ainda estão sendo calculados.
Já a Urban Serviços e Transportes Ltda, de Charqueadas, firmou cerca de R$ 81 milhões em contratos para fazer esse rescaldo dos detritos das cheias em outros três municípios: São Leopoldo, Alvorada e Guaíba. A empresa já tinha serviços de limpeza em Alvorada e Guaíba antes da enchente e firmou outros após os alagamentos.
A Urban acertou receber quantia que poderia chegar a R$ 74 milhões em São Leopoldo, R$ 6 milhões em Alvorada e R$ 1 milhão em Guaíba pelo rescaldo pós-enchentes (caso se confirme a previsão do volume a ser recolhido, mas até agora a quantia está menor que a estimada nos contratos). Em São Leopoldo a empresa continua os trabalhos de remoção de lixo, tanto do que ainda falta recolher nas vias como o dos depósitos provisórios para transbordo. Em Alvorada e Guaíba o serviço está praticamente no fim.
O GDI apurou que tanto a THV quanto a Urban são objeto de processos judiciais ou denúncias que envolvem contratos milionários com o poder público:
AS SUSPEITAS ENVOLVENDO A THV
Superfaturamento e suborno em Pirassununga (SP) - processo que tramita na 10ª Vara Criminal de Pirassununga, em fase de instrução, apura supostas fraudes em contratos que somam R$ 30 milhões para limpeza pública naquele município. Thiago Narciso Rezende, sócio da THV, virou réu. A empresa de coleta de lixo, segundo denúncia do Ministério Público feita no final de 2023, teria subornado servidores municipais para ser favorecida em contratos de remoção de detritos, varrição e roçagem. Entre os beneficiados estariam o prefeito e secretários municipais. Parte dos repasses teria envolvido triangulação financeira para empresas de familiares dos servidores públicos. O prefeito foi afastado do cargo.
O MP aponta superfaturamento. Só em outubro de 2023, conforme promotores de Justiça, teriam sido recolhidos 904 toneladas de resíduos, mas a THV emitiu nota fiscal de cobrança por 2.621 toneladas (quase três vezes mais que o serviço efetivamente prestado). Em cinco meses o superfaturamento seria de R$ 1,8 milhão, referente a 12,3 mil toneladas não recolhidas, mas cobradas. Todas as provas, incluindo as oriundas de interceptação telefônica e telemática, foram compartilhadas com o Ministério Público Federal (MPF), para que prossiga com as investigações. Isso porque, segundo o MP estadual de São Paulo, houve a identificação do uso de recursos federais na licitação com suspeita de fraude que gerou a contratação da empresa THV.
Improbidade em São Gonçalo do Sapucaí (MG) - uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal desse município mineiro, concluída em 2023, apontou 15 atos de improbidade administrativa envolvendo contrato da THV Saneamento com a prefeitura. Os documentos levantados pela CPI foram encaminhados ao Ministério Público, que ainda analisa a questão. Conforme os participantes da CPI, o prejuízo aos cofres públicos pode chegar a mais de R$ 1,2 milhão. A denúncia relata suspeitas de pagamentos ilegais por serviços e falsidade ideológica, por inserção de assinaturas em documentos de pagamentos após a instauração da CPI.
AS SUSPEITAS ENVOLVENDO A URBAN
Superfaturamento em Canoas (RS) - O sócio majoritário da Urban, o gaúcho Marcos da Rosa Lopes, virou réu na Justiça Federal em fevereiro por integrar um suposto esquema de desvio de recursos públicos do sistema de saúde de Canoas. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a Urban coletava, transportava e tratava resíduos hospitalares a serviço do Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (Gamp), contratado por R$ 996 milhões para administrar hospitais e unidades de pronto atendimento do município. Lopes é acusado de peculato (apropriação irregular de bens públicos), em contratos de menos de R$ 1 milhão.
A Gamp atuou até 2018 em Canoas e não teve contratos renovados. Responde a processo judicial por denúncia de irregularidades como superfaturamento de medicamentos em até 17.000%, uso de testas de ferro para disfarçar sociedades, cooptação de agentes públicos, desvio de dinheiro da saúde pública e pagamento de viagens de férias com dinheiro público da saúde de Canoas.
Por envolver verba federal, uma parte do caso foi para o Ministério Público Federal (MPF). Conforme a nova denúncia, agora envolvendo resíduos hospitalares transportados pela Urban, os recursos federais eram transferidos "fundo a fundo" - uma forma simplificada de movimentar dinheiro público sem a necessidade de celebrar convênios - ao grupo empresarial Gamp, que, por sua vez, subcontratava a Urban Serviços e Transportes para remoção de detritos.
Desvio de recursos em Cachoeirinha (RS) - O Ministério Público Estadual aponta desvio de 45% dos valores de contratos de serviços de limpeza urbana em Cachoeirinha no período de 2017 a 2021. As verbas envolvem coleta de lixo, conservação e manutenção de logradouros públicos. Além disso, é apontada também tentativa de direcionamento da contratação dos serviços de disponibilização de eco pontos, coleta, transporte e destinação final de carcaças de animais mortos, remoção de colônias de insetos e destinação dos resíduos do cemitério. É apurado suposto prejuízo aos cofres públicos de R$ 27,9 milhões.
Alguns dos contratos foram suspensos pelo Tribunal de Contas-RS, por evidências de direcionamento em favor de empresários que mantinham relação próxima com o prefeito da época. Em duas operações distintas, o Ministério Público denunciou 17 pessoas, entre elas um dos sócios da Urban, Marcos da Rosa Lopes. O caso tramita na 1ª Vara Estadual de Processo e Julgamento dos Crimes de Organização Criminosa e Lavagem de Dinheiro do RS.
Direcionamento de licitação em Alvorada (RS) - três sócios da empresa Urban (incluindo Marcos da Rosa Lopes) respondem por irregularidades numa grande licitação de coleta de lixo. Entre 2008 e 2014, a Urban e suas subsidiárias, a Transportes J.C. Lopes, a J.C. Lopes Serviços Ambientais e a M.C. Lopes Serviços e Transportes, teriam se beneficiado de direcionamento de licitação para coleta de detritos. Foram detectados indícios de que as empresas financiaram parte da campanha eleitoral em 2008, em troca de obter vantagem na concorrência. As investigações concluíram que houve falta de controle e fiscalização dos serviços, não observância dos prazos legais, frustração do caráter competitivo pelo dimensionamento da licitação, não consideração da quantidade de resíduos recolhidos, superfaturamento de preços na liquidação, pagamentos irregulares, serviços idênticos previstos em diferentes contratos, terceirização indevida de serviços pela contratada e inadimplência contratual. O caso tramita na 2ª Vara Criminal de Alvorada.
Cartel do recolhimento do lixo - as promotorias especializadas criminais detectaram que um grupo de empresas organizou um cartel para vencer licitações da coleta de lixo em 12 municípios gaúchos. Foi apontado superfaturamento de R$ 5 milhões em contratos emergenciais dessas empresas. O caso transformou Marcos Rosa Lopes em um dos réus, num processo judicial por cartelização da limpeza pública que corre na comarca de Torres. Está em fase de elaboração da sentença, mas há possibilidade de prescrição dos crimes.
Licitação e corrupção em Parobé (RS) - Marcos Rosa Lopes responde por fraude em licitação e corrupção num processo que tramita na 1ª Vara Criminal de Parobé. Envolve contratos de coleta de lixo firmados com a prefeitura local.
Rosa Lopes já foi condenado por danos ambientais em Sapucaia do Sul e teve a pena convertida em multa.
Os 10 municípios com maior número de atingidos pelas cheias
MUNICÍPIO NÚMERO DE ATINGIDOS PERCENTUAL DA POPULAÇÃO ATINGIDA
Canoas 157 mil 45,4%
Porto Alegre 125 mil 14,3%
São Leopoldo 90 mil 41,6%
Rio Grande 67 mil 35,4%
Eldorado do Sul 31 mil 80,8%
Guaíba 29 mil 31,5%
Novo Hamburgo 29 mil 12,8%
Pelotas 15 mil 4,8%
Alvorada 13 mil 7,2%
Cachoeirinha 8 mil 6,5%
Fonte: Mapa Único Plano Rio Grande (MUP), do governo estadual
CONTRAPONTOS
O que diz a prefeitura de São Leopoldo:
Em nota, a prefeitura informa que a Urban presta coleta de lixo domiciliar em São Leopoldo desde 2016. O contrato atual é emergencial, porque a licitação está suspensa por mandado de segurança impetrado por uma empresa que questiona a escolha. Para recolher os detritos da enchente, que atingiu 60% do território do município, foi feita pesquisa de preço de mercado. Foram contratadas, além da Urban, outras seis empresas.
A Urban fez coleta nas ruas e também transferência de resíduos dos pontos de descarte em São Leopoldo para um aterro sanitário em Gravataí. Além dela, duas outras empresas fazem isso. A prefeitura ressalta que a contratação emergencial obedeceu a preceitos legais e a empresa apresentou documentação exigida. A Urban não está inabilitada para contratos, finaliza a prefeitura.
O que diz a prefeitura de Guaíba:
O responsável pelo setor de licitações da prefeitura, Marcelo Verlindo, diz que o serviço da Urban está quase concluído, mas o Tribunal de Contas do Estado (TCE) apontou preços muito similares entre as concorrentes dos contratos para recolher lixo. Por isso, o valor foi reduzido pela metade e não foi pago o R$ 1 milhão previsto e, sim, R$ 522 mil. Outras duas empresas também foram contratadas.
O que diz a prefeitura de Canoas:
Em nota, a prefeitura disse que o processo de contratação foi dentro da emergencialidade em função da situação do município. Ocorreu a dispensa eletrônica, com disputa. "Nesse caso, houve a possibilidade de ampla concorrência por várias empresas, além de se levarem em conta critérios como apresentação de documentação técnica e menor preço. A empresa vencedora do certame apresentou a documentação solicitada no edital e foi considerada habilitada para a prestação do serviço. Do município foram retiradas cerca de 400 mil toneladas de resíduos das ruas _ quatro vezes mais que em Porto Alegre". Até o momento, a THV recebeu R$ 38 milhões dos R$ 160 que previam os contratos iniciais.
A prefeitura esclarece ainda que a empresa Gamp, investigada por irregularidades em vários municípios, não foi contratada pelo prefeito atual e, sim, pelo seu antecessor. Em 2017, antes do atual mandato.
O que diz a prefeitura de Alvorada:
A Secretaria de Serviços Urbanos de Alvorada informa que a empresa Urban apresentou todos os critérios técnicos, jurídicos e financeiros necessários para vencer o processo licitatório. Ressalta ainda que a empresa apresentou proposta de menor valor diante das concorrentes, não havendo assim nenhum impedimento para a realização do contrato. Até o momento, o serviço encontra-se em fase de conclusão, com cerca de 90% dos detritos já recolhidos.
O que diz a Urban:
O advogado Augusto Tarradt Vilela (assessor jurídico da Urban e de Marcos da Rosa Lopes, diretor da empresa), informa que a Urban trabalha há quase 15 anos com limpeza e coleta urbana, gerando mais de mil postos de trabalho diretos e indiretos. E ressalta que a empresa não possui qualquer restrição de contratação com a administração pública. Sobre a contratação emergencial para atuar após as enchentes, diz que a Urban apresentou os orçamentos mais vantajosos, dentro do que estabelece a lei, mas os valores são estimados. Só após a execução é que tudo será efetivamente calculado e pago.
Num dos contratos em São Leopoldo, exemplifica Vilela, estava previsto pagar R$ 47 milhões pelo recolhimento, mas o custo final deve ficar em R$ 36 milhões. Outro contrato, na mesma cidade, previa R$ 22 milhões e até o momento só foi feito serviço equivalente ao faturamento de R$ 1,3 milhão (embora a limpeza não esteja concluída). Em Alvorada, com contratos que atingem 5 milhões, até o momento o faturamento é de R$ 1 milhão (embora o serviço não esteja concluído), acrescenta o advogado. Já em Guaíba, a contratação ficou estimada, após aditivo contratual, em cerca de R$ 500 mil. "Até o momento, naquele município, não houve faturamento e pagamento dos serviços executados, os quais, assim como nos demais casos, ficarão aquém do valor previsto em contrato".
Ou seja, a quantia a ser recebida deve ser bem menor que os R$ 81 milhões estimados no início dos contratos. O advogado salienta que os valores dos contratos são expressivos porque as enchentes exigiram maior intensidade de serviços. Em São Leopoldo, a Urban disponibilizou 300 trabalhadores (diretos e indiretos) e 230 caminhões e máquinas.
Vilela enfatiza que empresas desse segmento e seus administradores seguidamente sofrem investigações ou ações para verificação acerca da prestação desses serviços, mas devem ser considerados inocentes, até o trânsito em julgado de decisão condenatória. "Os processos citados, em que haveria envolvimento da empresa e/ou seu sócio, não foram julgados até o momento". No caso de Canoas, exemplifica, a Urban era contratada por outra empresa e prestou serviços de forma regular. "A defesa ainda não discutiu o mérito, mas tem convicção, como nos outros processos, que se demonstrará ausência de quaisquer ilícitos por parte dela e do seu administrador".
O que diz a THV:
O advogado Reginaldo Rocha (assessor jurídico da THV e do sócio majoritário da empresa, Thiago Rezende), não deu retorno aos pedidos de entrevista, não atendeu telefonemas e nem respondeu mensagens.