Psiquiatra do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), Vitor Crestani Calegaro, 38 anos, conhece como poucos os traumas desencadeados pelo incêndio na boate Kiss. Em 27 de janeiro de 2013, data da catástrofe que tirou a vida de 242 jovens, o médico estava de plantão. De lá para cá, sua carreira jamais se dissociou da tragédia.
Desde 2015, Calegaro coordena o ambulatório de Psiquiatria do Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava) do HUSM, que se tornou referência para os sobreviventes. Em outubro de 2019, com base em depoimentos de pacientes, ele defendeu uma tese de doutorado sobre o tema, na Faculdade de Medicina da UFRGS.
Nesta entrevista, o professor do Departamento de Neuropsiquiatria da UFSM conta um pouco do que aprendeu e do que sentiu nos últimos sete anos e projeta o significado simbólico do primeiro júri do caso, previsto para o dia 16 de março, em Santa Maria.
Como começou o seu trabalho junto aos sobreviventes da Kiss?
Começou na manhã daquele domingo, quando cheguei ao hospital para o plantão na emergência psiquiátrica. Estava concluindo a residência médica. Era minha última semana. Entrei no pronto-socorro, vi a TV ligada e me disseram: aconteceu um incêndio e tem 90 mortos. As vítimas se multiplicaram. Tudo aconteceu muito rápido. Pensei na minha filha, que na época tinha nove meses. Não perdi ninguém na tragédia, mas me coloquei no lugar daqueles pais.
O que mais marcou você?
A solidariedade das pessoas. Foi uma mobilização geral. Vários serviços entraram em contato conosco, veio gente de fora para nos dar apoio. Lembro bem da chegada do Christian Kristensen (do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse da PUCRS), que tem grande experiência em estresse pós-traumático e trouxe alunos para ajudar. Foi importantíssimo, porque era uma situação atípica para todo mundo. Lembro que acabaram os remédios nas farmácias, mas no Centro Desportivo Municipal, onde ocorreu o velório coletivo, tinha muito medicamento porque as pessoas levavam o que tinham em casa.
Nos primeiros dias, foram chegando pacientes em situações extremas. Eram quadros muito diferentes do que estávamos habituados. Apareciam pessoas da comunidade andando sem rumo, sem lembrar de quem eram. Os velórios duraram a semana inteira. A cidade ficou em um silêncio assustador, nunca visto.
VITOR CALEGARO
Psiquiatra
Naquele momento, qual era o principal desafio?
Nos primeiros dias, foram chegando pacientes em situações extremas. Eram quadros muito diferentes do que estávamos habituados. Apareciam pessoas da comunidade andando sem rumo, sem lembrar de quem eram. Os velórios duraram a semana inteira. A cidade ficou em um silêncio assustador, nunca visto. Com a ajuda de voluntários, fomos nos organizando e conseguimos montar um ambulatório para dar conta da demanda, que mais tarde daria origem ao Ciava (Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes, do Hospital Universitário de Santa Maria, que hoje é referência mundial e é 100% dedicado ao Sistema Único de Saúde).
Qual foi o papel do Ciava?
Foram criados dois programas: o Acolhe Saúde, pela prefeitura, e o Ciava, pelo HUSM (Hospital Universitário de Santa Maria). O Ciava surgiu com a perspectiva de ser um serviço permanente, pensando no longo prazo. A ideia era que continuasse prestando atendimento a vítimas de outros traumas, etapa na qual estamos hoje. Desde o início, foi um serviço multidisciplinar (com médicos de diferentes especialidades, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos etc.). Começou com um plantão vespertino, das 17h às 21h, aberto a qualquer pessoa que nos procurasse. Na psiquiatria, atuávamos tanto no plantão quanto no ambulatório, com consultas marcadas. Estudamos muito naquele primeiro ano. As consultas eram tensas, as pessoas choravam muito. Às vezes, conversávamos por duas horas com alguns pacientes. Nem todo mundo que apresentava sintomas tinha TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), mas era necessário fazer o monitoramento, porque esses sintomas apresentam evolução.
Você decidiu produzir uma tese de doutorado com foco na tragédia. Como surgiu a ideia? Foi logo no início?
Naquele primeiro ano, a gente não tinha cabeça para pensar nisso. A demanda era muito grande. Depois foi reduzindo. Algumas pessoas foram melhorando, outras se mudaram. Então, a partir de 2014, conseguimos levantar questões de pesquisa para elaborar um projeto. Havia um senso de dever ali, afinal, atuamos em uma instituição de ensino. Era um momento único para gerar conhecimento e ajudar outras pessoas. A minha tese é parte desse projeto, desenvolvido por um grupo de professores.
Qual foi a proposta?
Pela experiência clínica, víamos que algumas pessoas apresentavam alterações de comportamento persistentes. Se não soubéssemos que isso decorria do trauma, poderíamos erroneamente diagnosticar como transtorno de personalidade. A pessoa passa a desenvolver comportamentos e pensamentos desadaptativos (extremos) que em geral aparecem no início da vida adulta. O que nos intrigava é que as pessoas relatavam que não tinham nada antes. Mas, depois da Kiss, isso se manifestava em características de personalidade. Então, qual seria a relação entre o trauma e a personalidade? A gente percebia que havia extremos: pessoas que deixavam de estudar, que não conseguiam mais trabalhar e pessoas que encontravam maneiras de ficar melhor, que eram mais resilientes. Esse foi o ponto de partida.
Segundo a literatura, pessoas que tiveram queimaduras ou lesões físicas graves teriam mais transtornos do que outras, mas concluímos que isso não ocorria. Como explicar? Uma das hipóteses é de que esses pacientes tiveram um cuidado maior e mais intenso desde o início, o que reduziu os riscos.
VITOR CALEGARO
Psiquiatra
Como evoluiu o estudo?
Chegamos à conclusão de que não deveríamos coletar dados apenas das pessoas que estávamos atendendo. Devíamos buscar, também, aqueles que não estavam no serviço psiquiátrico. Aí fizemos uma parceria com o ambulatório de pneumologia do Ciava. A ideia era aplicar a mesma entrevista inicial a todos, com questionários de graduação de sintomas, de resistência, qualidade de vida e traços de personalidade. A minha tese se baseia nesses dados, coletados com a ajuda de residentes, de alunos voluntários e bolsistas de iniciação científica, todos sob minha coordenação. Ouvimos 198 pessoas entre 2015 e 2017, sendo 120 sobreviventes, 68 policias e bombeiros e 10 familiares de vítimas. Foi um processo muito impactante e rico.
A que conclusão se chegou?
A análise mostrou três perfis. Vimos que 50% dos indivíduos não tinham diagnóstico de transtorno, 25% tinham TEPT com adoecimento mais sério e 25% apresentavam sintomas mais leves. Comparamos os sintomas clínicos à capacidade de resiliência, aos traços de personalidade de cada um. Confirmamos coisas que já estavam na literatura e descartamos outras. Por exemplo: sendo sobrevivente, a pessoa tinha mais chance de ter psicopatologia do que sendo bombeiro. Isso ficou claro. Por outro lado, segundo a literatura, pessoas que tiveram queimaduras ou lesões físicas graves teriam, hipoteticamente, mais transtornos do que outras, mas concluímos que isso não ocorria. Como explicar? Uma das hipóteses é de que esses pacientes tiveram um cuidado maior e mais intenso desde o início, o que reduziu os riscos.
E as diferentes personalidades? Que peso têm na superação de um trauma?
Pessoas com traços de esquiva do dano (tendência a fugir de potencial perigo) tinham maior tendência a desenvolver sintomas de TEPT. Frente ao perigo, essas pessoas tendem a se desestabilizar. São mais propensas à ansiedade, ao medo, à instabilidade emocional. Outro traço analisado foi o de autodirecionamento, que significa autonomia, independência. Frente às dificuldades da vida, as pessoas com esse traço tentam ser mais proativas para resolver o problema, são mais objetivas, mais racionais. Quanto maior esse traço, maior a resiliência e menores os sintomas de TEPT. Também nos chamou muito a atenção as pessoas com traços de autotranscendência, uma característica associada à espiritualidade, à religiosidade, a um apego menor a coisas materiais. Quem tinha mais esse traço, tinha sintomas de TEPT, mas também tinha resiliência. Era como se uma crença dissesse que era necessário seguir em frente.
Esses padrões podem ser aplicados a qualquer tragédia?
Sim, acidente de carro, trauma sexual, violência urbana. A avaliação da personalidade ajuda o profissional a entender melhor o paciente e a nortear as intervenções dentro de psicoterapia e até mesmo o tratamento com medicamentos. Tem medicamentos que podem até acalmar a pessoa, mas ao mesmo tempo reforçar o traço de esquiva do dano, por exemplo. Isso merece atenção. Outra coisa: ficou evidente que as pessoas submetidas a traumas não devem deixar de ser acompanhadas e devem ter atendimento desde o início. É um trabalho de prevenção. As pessoas já sabem o que é depressão, mas desconhecem o TEPT. Têm pesadelos, ficam muito irritadas, não dormem direito, têm problemas de concentração e memória, começam a ter dificuldades no emprego ou na universidade. Podem não reconhecer que isso é um transtorno e que tem tratamento.
Passados sete anos, o trabalho segue nas mesmas linhas? Ou mudou alguma coisa?
O Ciava segue atuando da forma como prevíamos. Ainda temos alguns casos ligados à Kiss que são crônicos, persistentes. Felizmente, são minoria. Com o passar do tempo, abrimos mais o leque para outros traumas: sobreviventes de choque elétrico, de explosões, vítimas de queimaduras de outros tipos. Atualmente, trabalhamos também com casos de violência urbana e trauma sexual.
O que toda essa experiência significou para você?
Na minha carreira, eu costumo dizer que tem o antes e o depois da Kiss. Como coordenador do Ambulatório de Psiquiatria, tomei contato com praticamente todos os sobreviventes atendidos. Mudei como pessoa e me formei como médico. Me tornei psiquiatra no meio da tragédia da Kiss. Percebi que, acima de tudo, somos pessoas. A gente também se sensibiliza nos atendimentos, e o trauma me marcou muito. Poderia ter acontecido comigo, com qualquer um de nós. Isso muda muito na relação do médico com o paciente, é algo com o que precisamos lidar internamente para conseguir trabalhar.
O julgamento pode ajudar a resgatar o sentimento de confiança no Estado e nas pessoas. Isso é fundamental. Quando não existe confiança, a esperança fica abalada, e a desesperança está associada à depressão, ao suicídio, ao adoecimento.
VITOR CALEGARO
Psiquiatra
O primeiro júri do incêndio na boate Kiss está marcado para março, com um dos quatro réus, depois de muitas reviravoltas. O que esse julgamento significa para sobreviventes e pais de vítimas?
Pode significar muitas coisas. O júri terá um simbolismo muito grande para os pais das vítimas, porque, para eles, a tragédia foi um evento que inverteu a ordem natural das coisas. Por tudo o que aconteceu ao longo desses anos, os pais se sentem injustiçados. Estão cansados, com sensação de impotência e de que foi tudo em vão. Isso é traumático por si só. Tem pessoas que aceitaram e mudaram o foco. Outros estão firmes na luta. Não existe certo e errado nisso. A luta por justiça é genuína.
É uma oportunidade para, finalmente, elaborar o luto?
Sim, o julgamento pode contribuir para isso e pode ajudar, principalmente, a resgatar o sentimento de confiança no Estado e nas pessoas. Isso é fundamental. A confiança é uma das primeiras coisas que a gente aprende na vida através dos nossos pais. A partir disso, a gente consegue ter esperança. Quando não existe confiança, a esperança fica abalada, e a desesperança está associada à depressão, ao suicídio, ao adoecimento, ao fato de a pessoa não conseguir recuperar a funcionalidade na vida.
E se o resultado não for o que os pais esperam?
Aí vai ser mais um desafio. As pessoas vão ter de aprender a lidar com isso. No ciclo do luto, em determinado momento, a pessoa precisar aceitar que algo aconteceu e que mudou a vida dela para sempre, mas que agora ela pode pensar adiante, pode voltar a fazer planos. Por isso as reviravoltas jurídicas ao longo desses sete anos dificultam as coisas. A história iniciada com a tragédia da Kiss precisa ter um fecho. Concluir o julgamento, erguer o memorial às vítimas, tudo isso tem um sentido coletivo. É uma chance de virar a página, de encerrar uma etapa e começar outra. O trauma faz parte da história, mas a história da Kiss continua a ser escrita. O que vai ser escrito nessa próxima página? São coisas que vão ficar na memória coletiva de Santa Maria para sempre. É uma oportunidade para, quem sabe, se reescrever essa história triste. Espero que tenha um fim justo.
Há sentimentos contraditórios na cidade em relação aos familiares das vítimas. Muita gente critica os pais e gostaria de esquecer a tragédia. O que explica isso? Por que não existe mais solidariedade?
Quando eu escuto essas críticas, esse julgamento em relação aos pais, e eu escuto muito isso, me parece se tratar de um senso coletivo de negação, algo como “deu, esquece, volta à vida normal”, como se fosse possível. Não é assim. Tem de haver mudanças a partir do que aconteceu. Houve um evento desastroso e não mudou nada? Não, a gente tem de querer uma sociedade melhor.
É fundamental o memorial. Ele representa, dá um sentido à tragédia dentro de uma memória coletiva. É como o Memorial do Holocausto, em Berlim, e o Memorial da Paz, em Hiroshima. Vai fazer as pessoas passarem por ali e recordarem o incêndio para que não se repitam os mesmos erros. Além disso, é um lugar para depositar os sentimentos.
VITOR CALEGARO
Psiquiatra
A associação de familiares das vítimas age certo ao não deixar que a cidade esqueça a tragédia?
Sim. Eles são detentores desse poder. Enquanto todo mundo quer esquecer, porque todo mundo quer esquecer as coisas ruins que acontecem, a verdade é que não se esquece. Temos de olhar para trás para construir o futuro. Esse papel da associação é fundamental. Aceitar a tragédia é diferente de esquecer. Aceitar não significa ser totalmente passivo.
A ideia de transformar o prédio da Kiss em memorial é outro ponto polêmico. Para algumas pessoas, é um erro. Para os pais, não. Quem está certo?
É fundamental o memorial. Ele representa, dá um sentido à tragédia dentro de uma memória coletiva. É a representação de um evento que aconteceu e do que veio depois. É como o Memorial do Holocausto, em Berlim, e o Memorial da Paz, em Hiroshima. Vai fazer as pessoas passarem por ali e recordarem o incêndio para que não se repitam os mesmos erros. Além disso, é um lugar para depositar os sentimentos. Isso ajuda tanto na elaboração do luto individual quanto na construção da memória coletiva. Seremos melhores se lembrarmos do que aconteceu.
Algum dia os pais e sobreviventes conseguirão superar a tragédia? A ferida vai sarar?
Essa é uma pergunta muito difícil. Alguns sim, outros não. Talvez a elaboração do luto, em certos casos, seja utópica. Mas a pessoa pode ter uma vida com qualidade, construir outras coisas sem necessariamente sentir todos os dias a dor que sentiu no passado. Não quer dizer que não vai chorar quando olhar uma foto, quando falar do filho perdido na tragédia. Tenho a esperança de que sair da depressão e do estresse pós-traumático é possível, sim.
Quem são os réus e qual é a acusação
- Os réus no processo criminal que apura as circunstâncias do incêndio na Boate Kiss são os sócios da casa noturna, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Augusto Bonilha Leão (ajudante).
- Os quatro respondem a ação penal por 242 homicídios e por 636 tentativas, com dolo eventual (quando se assume o risco de matar).
Entenda as últimas decisões da Justiça
– Em outubro de 2019, o juiz Ulysses Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, determinou que os quatro réus do caso fossem julgados em Santa Maria, em dois júris, marcados para 16 de março e 27 de abril de 2020.
– Em dezembro de 2019, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) decidiu que Elissandro Spohr, o Kiko, seria julgado em Porto Alegre, em data a ser definida, atendendo a pedido da defesa. O advogado Jader Marques argumentou que o desaforamento (transferência para outra comarca) evitaria tumultos e garantiria imparcialidade ao júri.
– Na mesma decisão, a 1ª Câmara do TJ definiu que os outros três acusados teriam júri conjunto em Santa Maria.
– Em 16 de janeiro de 2020, o juiz Louzada confirmou a data do julgamento dos acusados Luciano Bonilha Leão, Marcelo de Jesus dos Santos e Mauro Hoffmann em 16 de março de 2020. O júri será no Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), às 10h.
– No mesmo dia, a defesa de Santos pediu para que, como Kiko, ele seja julgado em Porto Alegre. O pedido foi negado em caráter liminar e deve entrar na pauta da 1º Câmara do TJ. Não há data definida.
– Em 21 de janeiro, o Ministério Público entrou com recurso solicitando que Kiko seja julgado em Santa Maria, junto dos outros três réus, mantendo a data prevista (16 de março). O pedido foi feito à 2ª Vice-Presidência do TJ, para que seja remetido ao Superior Tribunal de Justiça.
– Por meio de nota, o advogado de Kiko lamentou o fato e declarou que "a possibilidade de julgamento ainda neste primeiro semestre de 2020 tornou-se impossível".
– Em 22 de janeiro, foi a defesa de Hoffmann que ingressou junto ao TJ com pedido de desaforamento, negado em caráter liminar. Agora, deve entrar na pauta da 1ª Câmara do TJ. A defesa de Hoffmann também aguarda julgamento do recurso que moveu junto ao STF contra a decisão que levou os réus a júri.
- Em 28 de janeiro, o TJ negou o pedido de suspensão da decisão que determinou que o julgamento de Kiko seja em Porto Alegre.
- Em 12 de fevereiro, a 1ª Câmara do TJ decidiu que, além de Kiko, Hoffmann e Santos serão julgados em Porto Alegre.