
Passados cinco anos do incêndio que tirou a vida de 242 jovens e comoveu o país, Santa Maria assume, aos poucos e sem alarde, uma nova condição. Marcada pela tragédia da boate Kiss, a cidade que ainda chora seus mortos ressurge como referência no atendimento a vítimas de catástrofes e vem ajudando a salvar vidas.
Desde a fatídica madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando o fogo atingiu a danceteria e destilou veneno em forma de fumaça negra, profissionais da saúde envolvidos no caso compartilham experiências e lições. Premidos pelas circunstâncias, elaboraram protocolos que ensinam como agir em situações extremas, desenvolveram técnicas de tratamento, publicaram livros e artigos científicos, orientaram trabalhos acadêmicos e passaram a dar palestras e cursos.
Por telefone, e-mail, WhatsApp, teleconferência e pessoalmente, esses especialistas já auxiliaram colegas em locais como Chapecó (SC), onde foram velados os mortos do acidente aéreo da Chapecoense, em 2016, Mariana (MG), palco do maior desastre ambiental do país, em 2015, e Itaqui (RS), atingida por uma grande enchente em 2014.
No mesmo ano da inundação na Fronteira Oeste, Borborema (SP) entrou na lista, depois de ter um ônibus escolar envolvido em grave acidente de trânsito. Mais recentemente, em 2017, médicos, enfermeiros, psicólogos e fisioterapeutas de Santa Maria orientaram ações no auge da crise em Janaúba (MG), dilacerada pelo ataque incendiário à creche Gente Inocente. Também atenderam a um chamado da Associação Portuguesa de Fisioterapeutas para ajudar Pedrógão Grande, cidade no centro de Portugal acossada por queimadas de proporções colossais.
Forjada na tragédia, a expertise santa-mariense começou a ser construída nos momentos subsequentes ao drama vivido na Kiss. Àquela altura, 236 vítimas haviam sucumbido na casa noturna e, na primeira hora após o incidente, nada menos do que 577 pacientes recebiam assistência emergencial. De alguma forma, mais de 2 mil pessoas foram afetadas pelo incêndio.
— O desastre fez com que cada um de nós buscasse o seu melhor para colocar à disposição daqueles que mais precisavam — recorda a enfermeira Soeli Guerra, 55 anos, que atuou na linha de frente no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM).
Organizações internacionais como Cruz Vermelha e Médicos sem Fronteiras enviaram equipes e ensinaram o que sabiam. Instituições reconhecidas, entre as quais os hospitais Albert Einstein e Sírio Libanês, ofereceram suporte. Sociedades e conselhos de classe fizeram o mesmo. Governos de diferentes lugares ajudaram. Voluntários surgiram de todo os lados, e a Força Nacional do SUS desembarcou em peso. Técnicos do Estado, da União e do município se uniram em torno de um objetivo comum.

Desse esforço coletivo nasceram dois serviços públicos que personificam o know-how construído a fórceps na adversidade. Um deles é o Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava), que funciona dentro do HUSM. O outro é o Acolhe Saúde, mantido pela prefeitura.
É reconfortante saber que estamos ajudando a salvar vidas. Se na prevenção a incêndios nada mudou, pelo menos sob esse aspecto nossos filhos não se foram em vão.
SERGIO DA SILVA
Presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia
— Santa Maria recebeu contribuições de muita gente qualificada, e a equipe que ficou soube incorporar e qualificar esse conhecimento em relação à realidade local — avalia o psicanalista Volnei Antonio Dassoler, que atuou no Acolhe.
O legado que hoje desperta o interesse de pesquisadores dentro e fora do país e oportuniza trocas científicas ultrapassou os limites acadêmicos. Para a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia, os avanços registrados na área da saúde têm um significado especial.
— É reconfortante saber que estamos ajudando a salvar vidas. Se na prevenção a incêndios nada mudou, pelo menos sob esse aspecto nossos filhos não se foram em vão — diz o presidente da entidade, Sergio da Silva.
Siga lendo a reportagem
Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava) ajudou nos incêndios de Portugal e no ataque à creche Gente Inocente, em Minas Gerais. Leia mais
Acolhe Saúde se tornou exemplo e inspirou serviço semelhante em Minas, após o rompimento da barragem da Samarco. Leia mais
Termo de compromisso para garantir atendimento às vítimas do incêndio assinado em 2013 expira em 22 de fevereiro de 2018. Leia mais