Socorrer e reabilitar as vítimas da boate Kiss não era o suficiente nos dias que se sucederam ao fatídico 27 de janeiro de 2013. Logo que Santa Maria se deu conta da dimensão do estrago e do impacto das 242 mortes, profissionais que atuaram na frente de batalha perceberam que era preciso cuidar da saúde mental de sobreviventes, familiares e agentes envolvidos nos resgates.
Em menos de 24 horas, germinava o embrião que daria origem, em fevereiro de 2013, ao Acolhe Saúde – serviço de atendimento psicossocial criado pela administração municipal e que, mais tarde, auxiliaria cidades como Borborema (SP), Itaqui (RS), Mariana (MG) e Chapecó (SC).
Por cerca de dois meses, a estrutura de apoio foi mantida com a ajuda de voluntários e de organismos como a Cruz Vermelha. Depois, 42 funcionários foram contratados em caráter emergencial para dar continuidade à assistência. Até setembro daquele ano, a iniciativa funcionou 24 horas dia, sem fechar as portas.
No início, mesmo recebidos com desconfiança — já que muita gente responsabilizava a prefeitura pelas mortes —, servidores da Secretaria Municipal da Saúde tomaram a frente no trabalho.
— O município tinha de assumir aquela tarefa. No começo, foi muito difícil, mas, aos poucos, as pessoas entenderam que éramos técnicos e que estávamos ali para ajudar — recorda a enfermeira Patricia Bueno, 32 anos, que integrou a equipe.
Uma das singularidades da ação foi o acompanhamento direto nos enterros, nos depoimentos prestados no fórum e nas passeatas e vigílias organizadas pelos parentes das vítimas.
— Tudo começou do zero. No fim, construímos vínculos muito fortes — diz a assistente social Camila Fighera, 34 anos, uma das atuais coordenadoras do programa.
A experiência não ficou restrita a Santa Maria. Em novembro de 2016, quando o avião com a delegação da Chapecoense despencou na Colômbia, deixando 71 mortos e seis feridos, o Acolhe se apresentou para colaborar. Um dia depois, cinco integrantes estavam na Arena Condá para auxiliar no velório coletivo.
— Eles demonstraram um equilíbrio incrível. Participaram de todas as reuniões estratégicas. Orientaram, previram situações que seriam difíceis de lidar, relataram a experiência da Kiss. Reviveram o próprio inferno conosco, mas percebemos que deram o melhor de si. Santa Maria nunca vai ter noção de quanto foi importante para nós — afirma a empresária Fabiana Funk, 36 anos, designada pela direção do clube para receber e acompanhar o grupo à época.
Como a gente também tinha vivido um desastre, percebemos que eles nos olharam de forma diferente.
ADRIANA DE CASTRO RODRIGUES KRUM
Enfermeira
Os profissionais ficaram cinco dias no município catarinense e se dividiram em diferentes frentes.
— Como a gente também tinha vivido um desastre, percebemos que eles nos olharam de forma diferente — conta a enfermeira Adriana de Castro Rodrigues Krum, 47 anos.
Para o psicanalista Volnei Antonio Dassoler, a semelhança deu legitimidade ao trabalho:
— Ajudamos no que foi possível, principalmente na retaguarda. Eles já tinham uma estrutura muito boa montada do ponto de vista clínico e hospitalar.
Em janeiro de 2017, Fabiana viajou a Santa Maria, representando a Chapecoense, para entregar uma medalha de campeão catarinense de futebol em agradecimento ao município. A condecoração está guardada na sede da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, e é motivo de orgulho.
Inspiração para Mariana
O histórico do Acolhe Saúde também chegou a Mariana (MG), onde serviu de modelo para a criação de um serviço semelhante. Batizado de Conviver, o programa de saúde mental atende os atingidos pelo rompimento da barragem da Samarco Mineração, ocorrido em novembro de 2015.
Coordenador da Rede de Atenção Psicossocial do município, Sergio Rossi, 32 anos, conta que o exemplo de Santa Maria foi fundamental.
— Nos inspiramos no Acolhe porque não havia outra experiência ou estratégia similar. Não havia expertise e preparo para lidar com o desastre, e a rede de saúde local tinha de dar uma resposta — conta Rossi.
Por e-mail e por telefone, ele recebeu orientações e tirou dúvidas com os colegas gaúchos. Hoje, o Conviver tem entre 180 e 220 pacientes em acompanhamento regular, e o contato com a equipe de Santa Maria continua. Em novembro de 2017, um dos ex-integrantes do Acolhe, o psicanalista Volnei Antonio Dassoler, participou do primeiro Simpósio Mineiro de Emergências e Desastrares, onde falou sobre o tema de sua tese de doutorado no curso de Psicologia Social da UFRGS: o atendimento em situações de crise e urgência.
Promessa de continuidade e casa nova
Passados cinco anos de sua criação, o Acolhe Saúde vive um momento de impasse. Nos últimos tempos, o número de atendimentos vem caindo — de 6,4 mil em 2013 para 1,7 mil em 2017 — e hoje o serviço é voltado exclusivamente a 135 vítimas diretas ou indiretas da boate, ao contrário do Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava), no Hospital Universitário de Santa Maria, que ampliou o escopo.
Hoje, seis funcionários atuam no local. Os contratos temporários se encerram em fevereiro, e um concurso público foi realizado no ano passado para suprir as vagas. Ciente da situação, o prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom (PSDB), promete dar continuidade à iniciativa, mas diz que fará mudanças. A primeira delas é transferir o programa para imóvel próprio e convidar a associação de familiares a se instalar no local, que ainda precisa de reforma.
— Assumi o compromisso com a entidade de que manteria o serviço mesmo que tivesse de cortar recursos de outras áreas. Vou cumprir a promessa. O tratamento não vai parar — garante Pozzobom.
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