Todo Dia a Mesma Noite, livro da jornalista Daniela Arbex que tem lançamento previsto para a próxima quinta-feira (25/1), dois dias antes de a tragédia da boate Kiss completar cinco anos, em Santa Maria, relembra o episódio e traz depoimentos de quem vivenciou a noite em que 242 pessoas morreram. Confira, a seguir, um trecho da obra:
Na madrugada em que ninguém na região dormiu, centenas de pessoas estavam na rua – muitas delas, em choque, andavam sem rumo. Ao avistar a fumaça preta que saía da boate, Müller, há 26 anos no Corpo de Bombeiros, já sabia, pela sua cor, que havia um alto grau de toxicidade no ambiente. Qualquer minuto a mais significava vidas a menos a salvar. Guardou para si a impressão, mas pressentiu que haveria muitos mortos no interior da casa noturna, talvez uns 15. Ele imaginava que a maioria dos frequentadores já tivesse saído lá de dentro.
– Bombeiro, tem gente, tem gente – gritou um rapaz para Müller, apontando na direção da boate.
– Quantas pessoas tu achas que ainda tem lá? – perguntou o comandante de Socorro.
– O dobro daqui de fora.
Müller gelou. Olhou a multidão ao redor, cerca de 300 pessoas, sem acreditar que haveria duas vezes mais lá dentro.
– Como o dobro? Não pode ser! Essa boate é pequena – argumentou, tentando não demonstrar o pavor que sentiu.
E, virando-se para a equipe, composta apenas por mais três profissionais, gritou:
– Vamos lá!
Os alunos do Corpo de Bombeiros pegaram então as mangueiras para proteger o grupo que entraria na boate, caso o fogo chegasse até a porta, ainda que nenhuma chama estivesse sendo vista.
Entrando na boate sem enxergar nada, apesar da lanterna que carregava, o sargento se deparou com uma muralha humana após cruzar a porta que ligava o hall ao salão. As vítimas estavam empilhadas umas sobre as outras, e para chegar até elas ele precisou ir tateando. Sem ter como determinar quem estava vivo ou morto – em função do grande número de pessoas inconscientes –, o bombeiro voltou para a porta de entrada da Kiss e berrou, dirigindo-se aos alunos da guarnição do Centro:
– Precisamos clarear aqui dentro. Providenciem um holofote!
Novamente dentro da boate, o sargento não ouvia gritos de socorro. Descobrira, entretanto, que havia pessoas vivas, porque se agarravam aos pés e às pernas dos bombeiros. Müller tentou puxar o braço de uma menina que esboçava alguma reação, porém outras duas pessoas estavam sobre ela.
– Não consigo puxar – disse ele, buscando outra vítima que pudesse ser salva primeiro.