Fã de Legião Urbana, Carina Adriane Corrêa sempre se sentiu intrigada por uma música do álbum O Descobrimento do Brasil (1993). Ouvida tantas vezes ao longo de duas décadas, a canção Love in the Afternoon fala de saudade, paixão, uma partida precoce. "É tão estranho / Os bons morrem jovens / Assim parece ser", canta Renato Russo. O que poderia justificar o fim precipitado de uma vida em seus primeiros anos?, perguntava-se Carina. A canção se revestiu de um trágico sentido na manhã de 27 de janeiro de 2013.
Alertada sobre um incêndio na boate Kiss, no centro de Santa Maria, na madrugada, ela saiu do hospital onde trabalhava, como auxiliar em nutrição, em busca de informações sobre o paradeiro da filha mais velha, que tinha ido à casa noturna para comemorar o aniversário de um amigo. Pela manhã, voltou para a residência do bairro Itararé sem notícias, mas o cenário de desespero protagonizado pelos parentes logo se traduziu em uma resposta.
Em um vídeo que circulava pelas redes sociais com as primeiras imagens dos corpos retirados da danceteria que expelia uma densa fumaça preta na Rua dos Andradas, Carina reconheceu a bolsa, a saia e as pernas da filha. Thanise Corrêa Garcia, 18 anos, estava morta. No computador, tocava Love in the Afternoon, trilha escolhida pela caçula, Camilly, então com 13, para o momento inconcebível.
Carina passou tempos reclusa. Não penteava os cabelos, necessitava que lhe dessem banho, saía só para consultas médicas. Juntou forças para ir até o estúdio de um tatuador que aceitou abrir uma exceção em sua agenda, repleta durante o verão, para atender a sua ânsia de mãe enlutada. O profissional a recebeu em um domingo e imprimiu, em letra cursiva preta, no alto das costas da cliente, abaixo do nome de Thanise, a estrofe final da composição da Legião: "Lembro das tardes que passamos juntos / Não é sempre mas eu sei / Que você está bem agora / Só que este ano o verão acabou / Cedo demais".
– Por que os bons morrem jovens? Eu não entendo como os bons morrem jovens. E de repente os bons morrem jovens dentro da minha família. Alguém com 18 anos, na plenitude da vida, morrer... e da forma como foi. Um pedaço meu. Perdi meu chão, perdi tudo. Era uma música que eu sempre ouvi e nunca casou com a minha história. E de repente... – recorda Carina, 39 anos, na sala de casa.
De manhã ainda penso: "Que não tenha sido verdade". Agora logo cai a ficha. Hoje penso assim: graças a Deus que tive ela por 18 anos. Ainda bem que conheci ela, que fui mãe dela.
CARINA ADRIANE CORRÊA
Mãe de Thanise
Carina é uma entre dezenas, talvez centenas, de familiares e amigos que resolveram homenagear os 242 mortos da maior tragédia do Rio Grande do Sul, ainda impune, com uma marca eterna na pele. Há mães, pais, irmãos, primos, amigos e sobreviventes que exibem nomes, frases e rostos gravados pelo corpo. Orgulham-se dos laços que tinham com quem partiu, lamentam o pouco tempo compartilhado, realizam o desejo de quem morreu. Nesta reportagem, além de Carina, outras sete pessoas contam a história de suas tatuagens: Núria, viúva de Luiz Carlos; Juliana, prima de Flávia; Matias e Kellen, sobreviventes que perderam amigos; Vera Lúcia, irmã de Marcos; Ogier, pai de Vinícius; e Maristela, mãe de Michele e Clarissa.
Thanise foi um imprevisto na vida da mãe, que engravidou aos 15 anos. Com um ano e meio, "já falava tudo". Apaixonada pelos livros do bruxinho Harry Potter, a menina questionadora mais tarde se encantaria também por Karl Marx e política e decidiria cursar Filosofia no Centro Universitário Franciscano (Unifra), sonhando ser professora. Adorava que a mãe a acompanhasse até a porta da sala de aula para apresentá-la a seus colegas e professores. As duas saíam juntas à noite, eram confidentes, gostavam de música – Thanise tinha a capa do disco Help, dos Beatles, tatuada nas costas. Por conta dos penetrantes olhos negros da adolescente, Carina lhe deu os apelidos de Di e Dime, em referência a Dime Luna, da banda mexicana Maná, que entoa: "Dime luna / ¿Por qué me miras siempre así?" (Diga-me, lua, por que me olhas sempre assim?). Não eram necessárias palavras para a mãe adivinhar o que a menina queria ou o que não ia bem.
– Ela era muito minha – define.
Um ano depois do primeiro registro a tinta, Carina foi a outro tatuador para um toque mais delicado: os escritos foram cercados de flores coloridas. A quem pergunta o significado do que carrega nas costas, ela diz se tratar de uma homenagem. "Quem é Thanise?" "Por que o verão acabou?" Não é a todos que dá a explicação completa. A mãe sente o infortúnio com a intensidade de um episódio ocorrido na véspera, mas, quando a questionam sobre quantos filhos tem, a resposta explicita os cinco anos decorridos – para ela, Di não parou de aniversariar.
– Tenho duas: uma de 18 e uma de 23.
A auxiliar em nutrição segue com acompanhamento psiquiátrico, tomando quatro medicamentos. Teve alta das sessões de terapia quando finalmente compreendeu que a filha havia morrido e não voltaria mais – o que levou penosos quatro anos. As primeiras semanas após o incêndio foram insanas: no cemitério, Carina tentou arrombar o túmulo de Thanise, batendo com pedras e até com as próprias mãos. Os meses corriam, a mãe já estava em plena atividade junto à Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), clamando por justiça, e ainda esperava Thanise voltar da faculdade à noite, no portão da frente, ou tinha a certeza, na hora de dormir, de que, ao despertar no dia seguinte, a menina estaria ali outra vez.
– Para, isso está te torturando, está acabando contigo. Você viu as coisas acontecerem, você viu ela dentro do caixão – as pessoas argumentavam.
– Não, ela vai voltar.
Indago se ela temeu, em algum momento, estar enlouquecendo.
– Não. Eu só achei que amava demais e que aquilo não podia terminar assim.
Ainda há pesadelos recorrentes: a mãe se vê tentando abrir o esquife da filha ou entrando na boate para arrastar o corpo da garota para dentro do quarto. Certa vez, um sonho serenou seu coração: deitada, Carina viu Thanise, estendeu o braço e pediu que a menina deitasse a seu lado. Acariciou a filha, mexeu em seus cabelos. Ao acordar, relata ter sentido um peso no braço e divisado, no lençol amarrotado, os contornos de alguém que havia estado ali. Lamentou se tratar apenas de um sonho quando recuperou a plena consciência.
– Mas me fez bem por ela dormir comigo de novo. De manhã ainda penso: "Que isso seja um sonho, que não tenha sido verdade". Agora logo cai a ficha, antes não. Hoje penso assim: graças a Deus que tive ela por 18 anos. Ainda bem que conheci ela, que fui mãe dela.
Carina conta não ter mais condições de planejar a longo prazo. Ocupa-se das coisas da casa, da caçula (o nome de Camilly está grafado no braço direito), quer retomar a participação na agenda da AVTSM.
– Você não pode voltar a fazer planos depois que perde do jeito que perdi. Ainda tenho dias muito ruins, de ficar deitada o dia todo. Você não vê o dia de amanhã.
Afastada do trabalho por depressão, síndrome do pânico e estresse pós-traumático desde a morte da filha, Carina tem retorno programado ao emprego para o dia 26 de junho, aniversário de Thanise.
Conheça os outros personagens desta reportagem:
Núria fez um leão para cumprir desejo do marido. Leia mais.
Juliana relembra a prima com a música "De Janeiro a Janeiro". Leia mais.
Os namorados Matias e Kellen celebram seu renascimento. Leia mais.
Vera gravou túmulo e pássaros voando "em memória do irmão caído". Leia mais.
Ogier traz no braço – e perto do coração – o retrato do herói. Leia mais.
Maristela carrega as duas filhas no pulso. Leia mais.