Nem sempre lembrados, os sobreviventes da boate Kiss acompanham de longe e sem grandes expectativas os desdobramentos jurídicos do caso. Para a maior parte deles, cuidar das feridas e enfrentar os medos ainda é prioridade. Quem conseguiu sair do pesadelo, agora se une para ajudar o próximo.
Desde o início do ano, um grupo empresta imagem e voz à campanha Janeiro Branco - Sobreviventes da Kiss, dedicada à saúde mental. O objetivo, segundo a terapeuta ocupacional Kelen Ferreira, 26 anos, que venceu a morte naquela madrugada e idealizou o projeto, é mostrar como os impactados lidam com o trauma. Mais de 600 pessoas sobreviveram.
— Superar o que aconteceu é muito difícil, mas a gente tem resiliência. Acreditamos que esses exemplos podem auxiliar outras pessoas em dificuldades. A campanha também é uma forma de dizer que a tragédia não pode ser esquecida — diz Kelen, que trabalha no Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas.
Para concretizar o plano, ela contou com o apoio do fotógrafo Derli Soares e do produtor editorial André Polga, responsável pela página Kiss: que não se repita.
— Seis jovens toparam participar. Gravamos os depoimentos e fotografamos. O trabalho é totalmente voluntário — ressalta Polga, que perdeu duas amigas na catástrofe.
Um dos participantes é o veterinário Gustavo Cauduro Cadore, 38 anos. Ele traz nos braços as cicatrizes do fogo. À época, ficou internado por cerca de 20 dias no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre – 12 deles em coma induzido. Hoje, fala do passado sem problemas.
— Meu maior medo, quando começou aquele tumulto, era morrer pisoteado. Quando caí, tive a certeza de que morreria lá dentro. O que me salvou foi ter levado um chute no peito, que me jogou para perto do corrimão. Consegui levantar e sair vivo. Primeiro, não me dei conta de que estava mal. Só depois fui perceber que havia perdido a pele dos braços. Agora, já não penso mais nisso. Me apoiei principalmente nos meus pais — conta Cadore.
Como ele, a designer Angélica Pires Sampaio, 27 anos, também carrega no corpo as marcas do desastre. Ela lamenta o fato de que os sobreviventes sejam lembrados "apenas em janeiro".
— Até o ano passado, eu pensava todos os dias na Kiss. Tive síndrome do pânico, quis entrar em depressão. Agora estou bem. Não penso mais naquela madrugada. Minha fé me ajudou a enfrentar os medos — diz Angélica.
Sobre o julgamento, ela e Cadore mantêm distância. Dizem que não esperam nada do júri.
— Vai ser importante, claro, mas não tenho expectativa de que vá dar em alguma coisa. Entendo que a tragédia foi resultado de uma cadeia de irresponsabilidades. Julgar apenas quatro pessoas não é suficiente — opina a designer.
Nesta segunda-feira (27), quando o incêndio na Kiss completa sete anos, a campanha será tema de uma roda de conversa na Praça Saldanha Marinho, no centro de Santa Maria. Haverá exibição dos vídeos e depoimentos de sobreviventes e familiares sobre saúde mental. A atividade ocorrerá a partir das 19h.