Dos 160 sobreviventes da Kiss procurados por Zero Hora, mais de duas dezenas se queixaram de falta de atendimento ou de medicamentos. Mas, em alguns casos, as próprias vítimas largaram o tratamento pela metade, não comparecem mais a consultas e deixam de buscar os remédios requisitados.
É o que mostra um levantamento feito pelo Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava), criado pelo Hospital da Universitário de Santa Maria (Husm) para ajudar os atingidos pela tragédia na boate. Em 2013, 19,6% dos pacientes com consultas marcadas no Ciava faltaram aos encontros com os médicos. Em 2014, a situação praticamente se repetiu: 19,86% não compareceram. Ou seja, uma em cada cinco pessoas com sequelas provocadas pelo incêndio deixou de se tratar, mesmo após requisitar cuidados.
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É gente que procura auxílio de diversos tipos. Na neurologia, por exemplo, 24,9% dos pacientes não apareceram nos consultórios do Ciava em 2013. Isso representa o cancelamento de um em cada quatro agendamentos - por parte do convalescente, não dos profissionais. Em 2014, o índice de não-comparecimento foi de 25%. Mesmo em pneumologia - uma das áreas mais procuradas por conta das lesões decorrentes da inalação da fumaça tóxica -, o índice de faltas preocupa: 15,2% em 2013 e 24,9% no ano seguinte. O mesmo ocorre em especialidades como fonoaudiologia e oftalmologia.
Os especialistas não estranham o sumiço dos sobreviventes. A médica Elaine Resener, superintendente do Husm, diz que o resultado, em parte, é decorrência da melhora gradual dos doentes.
- Eles sentem que estão mais saudáveis e simplesmente abandonam o tratamento. Quando fazem isso, muitos esquecem de desmarcar as consultas agendadas. O problema é que o envenenamento por fumaça é crônico. A pessoa precisa monitorar por toda a vida seu quadro clínico, que pode piorar de uma hora para outra. Tenho um filho que também estava na Kiss e reluta em se tratar - lamenta Elaine.
Outra explicação para as ausências relaciona-se à faixa etária predominante entre as vítimas. Quase todas são jovens e tendem a "se sentir imortais", diz Elaine. Visando a reverter as taxas de abandono, o Ciava passou a telefonar para as vítimas e seus familiares, a fim de que voltem ao tratamento.
- Mas muitos dizem: 'Me deixa em paz, não quero mais saber disso'. São casos de pessoas com depressão, que ainda não se deram conta (da doença). Nosso desafio é superar o problema - conclui Elaine.
Medicamentos, a principal queixa
Entre os sobreviventes que sofrem com doenças físicas e psíquicas decorrentes do incêndio, a principal queixa envolve contratempos na obtenção de alguns medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). É o caso da estudante Shelen Rossi, 21 anos.
Ela conseguiu escapar da morte na danceteria, mas não sem sequelas. Sofreu queimaduras nos olhos e desenvolveu problemas pulmonares, neurológicos e psicológicos. É uma das pacientes que dizem enfrentar dificuldades para obter medicação no Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava).
- Tenho crises de enxaqueca e preciso de um remédio que não está disponível. Sou obrigada a gastar R$ 80 por mês. Também preciso de um antidepressivo, mas só consigo graças a um vizinho que é médico e que me dá amostras grátis - diz Shelen.
Outro problema relatado é a demora na marcação de algumas consultas. O sobrevivente Laurício da Fonseca, 22 anos, diz ter feito um exame no hospital universitário que detectou manchas em seus pulmões. Para ver um médico e saber de que se tratava, teria de esperar 40 dias. Desistiu.
- Fiquei muito preocupado e decidi procurar um médico particular, porque não queria esperar. Por sorte, não era nada grave - afirma Fonseca.
A gerente de Atenção à Saúde do Hospital Universitário de Santa Maria, Soeli Guerra, encara as queixas com serenidade. No caso dos fármacos, reconhece que nem todos os rótulos prescritos são oferecidos de forma gratuita, mas garante que as medicações padronizadas são disponibilizadas - e chegam até a sobrar, porque muitos pacientes não comparecem para retirar.
Quanto às consultas, Soeli afirma que cada caso é classificado conforme a gravidade, e isso determina a frequência das consultas. É por isso, argumenta a gerente, que algumas vítimas conseguem ser atendidas com presteza e outras não.
Os processos na Justiça
Menos de dois meses depois da tragédia, a Polícia Civil indiciou 28 pessoas como responsáveis de alguma forma pelo incêndio. Dias depois, o MP denunciou oito pessoas. No momento, ninguém está preso. Confira como estão os processos.
22/3/2013
Inquérito policial responsabiliza 28 pessoas.
2/4/2013
MP denuncia à Justiça oito pessoas: quatro (sócios e integrantes da banda) por homicídio doloso qualificado por fogo, asfixia e motivo torpe e tentativa de homicídio de 636 feridos e quatro por fraude processual e falso testemunho.
3/4/2013
A Justiça aceita a denúncia e começa a tramitar o processo criminal.
26/6/2013
Começa a fase de instrução do processo com as acusações de homicídio. Ao todo, 114 sobreviventes são chamados a depor, inclusive em audiências realizadas fora do Estado.
22/5/2014
Inicia-se a segunda fase do processo, com 16 testemunhas de acusação.
16/9/2014
Escolhidas pelos advogados dos réus, 51 testemunhas de defesa são convocadas para depor. Essa é a fase atual do processo e deve ir até março, mas pode se estender.
5/12/2014
MP denuncia 43 pessoas por falsidade ideológica e falso testemunho.
Ainda sem data prevista
Quando forem concluídas as audiências com as testemunhas de defesa, será o momento de ouvir 24 peritos e, por último, os réus. Na sentença, o juiz escolherá uma entre quatro opções: a pronúncia (que leva a júri popular), a impronúncia (o processo é encerrado por falta de materialidade do crime), a desclassificação (de doloso para culposo e julgado pelo juiz) ou a absolvição sumária.