Sete anos depois da tragédia que comoveu o país, Santa Maria segue exigindo respostas, mas já não esconde o cansaço e o desejo de virar a página. Com o julgamento dos quatro réus no centro de um imbróglio jurídico interminável, familiares e amigos dos 242 mortos no incêndio da boate Kiss voltarão ao cenário da catástrofe na madrugada desta segunda-feira (27) para, mais uma vez, pressionar por justiça.
Outrora visível nas ruas, o clamor já não tem a força da unanimidade. Com o passar do tempo, o município asfixiado pela fumaça letal da Kiss passou a se debater em sentimentos contraditórios, que transitam entre a indignação e o desânimo.
Pais que antes cerravam fileiras na Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) se distanciaram. Houve quem se mudasse para outro Estado. Alguns adoeceram e saíram de cena. Apenas um grupo restrito segue na linha de frente – e paga um preço alto por isso.
A população, que no início sofreu com os pais e protestou ao lado deles, agora se divide entre os que permanecem solidários e aqueles que se cansaram do luto sem fim. Há até quem critique a associação por manter em pé a tenda em memória aos mortos, na Praça Saldanha Marinho, e por apontar problemas estruturais em festas promovidas na região.
— Dizem que somos raivosas, vingativas. Recebemos críticas pesadas. Mas queremos apenas que se cumpra a Constituição. Só isso. Em Santa Maria, nada mudou. A irresponsabilidade continua. Não podemos nos calar e deixar que o pesadelo se repita. Nossos filhos não podem ter morrido em vão — desabafa a vice-presidente da AVTSM, Carina Adriane Corrêa, mãe de Thanise, uma das tantas vidas sepultadas pela Kiss.
A falta de apoio e a morosidade da Justiça também angustiam Maria Aparecida Neves, 61 anos, uma das secretárias da entidade. Ela perdeu o único filho no sinistro.
— Sete anos se passaram e está tudo igual. Tem horas que tenho vontade de jogar a toalha, mas não vou desistir. Um dia, eu tive o sonho de ser avó. Esse sonho foi cortado. Aí simplesmente fica por isso mesmo? Como é que vou deixar a morte do Augusto a Deus dará? — questiona Aparecida.
Mesmo aqueles que se distanciaram da associação, como Ariane Pires Floriano Aguirre, 55 anos, lamentam os rumos que a história tomou. Hoje, Ariane avalia que "os pais não perceberam a força que tinham". Mãe de Rogério, vítima do incêndio, ela acredita o grupo "poderia ter mudado o mundo".
— Nos afastamos, perdemos a força e o apoio. O incêndio foi triste para o mundo inteiro há sete anos. Hoje, infelizmente, não é mais. Hoje, a tristeza é só nossa. As pessoas esqueceram do que aconteceu. Estamos sozinhos — lamenta Ariane.
A decepção que aflora a cada entrevista não é em vão. Além da ausência de punições, o caso é profícuo em reviravoltas judiciais. Os pais – que até processados já foram – sofreram novo revés no fim do ano passado (leia os detalhes no fim do texto), quando a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça decidiu que um dos quatro réus no processo – o sócio da boate, Elissandro Spohr, conhecido como Kiko – deveria ser julgado em Porto Alegre. A defesa do empresário argumentou que a transferência seria uma forma de garantir segurança e imparcialidade.
Com aval da associação, o Ministério Público (MP) recorreu da decisão na última semana. O órgão pede que o caso fique em Santa Maria, como querem os pais, e que a data prevista para o primeiro júri (16 de março de 2020) seja preservada. Não há qualquer garantia de que o pedido seja atendido, mas as famílias já decidiram: caso Kiko seja sentenciado na Capital, farão desta cidade a sua casa.
— Se não aceitarem que o Elissandro seja julgado aqui em Santa Maria, vamos para onde for. Meu pai me ensinou que uma hora temos de enfrentar os fantasmas que nos perseguem. Esse momento chegou e nós vamos lutar até o fim — diz Flávio Silva, presidente da AVTSM.
Chance de recomeçar
O júri da Kiss, na avaliação de profissionais da saúde que acompanham o caso desde o início, é mais do que o desfecho de um processo judicial que se arrasta há anos. Ainda que pairem dúvidas sobre a ação – os pais entendem que há outros culpados –, para muitas famílias é a chance de seguir em frente.
— Para a maioria, justiça significa condenação, mas há muitas visões sobre isso e sobre quem são os responsáveis. Esse não é um tema pacífico em Santa Maria. Ainda assim, de alguma forma, os pais precisam desse fechamento para poder recomeçar. O julgamento vai ser um marco — sintetiza a enfermeira Patrícia Bueno, 33 anos, que atuou no atendimento psicossocial às pessoas atingidas pela catástrofe.
Mesmo os mais céticos planejam estar presentes às audiências. É o caso de Ariane Pires Floriano Aguirre, 55 anos, e do companheiro dela, Luiz Pedro Fortes dos Santos, 55 anos. Ela perdeu um filho e ele, uma filha no incêndio.
— Para mim, não faz diferença se os quatro réus serão condenados ou absolvidos. Houve, sim, imprudência e ganância, mas o Brasil é o país do jeitinho, todo mundo sabe disso. Eu vou estar lá, porque quero ver, quero saber o que eles têm a dizer. É uma necessidade. Acho que tenho de estar lá para ter uma resposta — reflete Ariane.
Criticado por outros pais por, desde o início, discordar do que define como "busca cega por vingança", Ogier de Vargas Rosado, 58 anos, reconhece que, neste ano, "a pauta não tem como não ser o julgamento".
— Que seja feita justiça dentro das provas que se tem. Se vai ser plena, boa ou não, o tempo vai dizer. A gente quer justiça, sim, mas não só justiça. A gente quer que as pessoas mudem. Isso é o que importa — pondera Rosado, pai de uma sobrevivente e de um rapaz que perdeu a vida na Kiss.
A expectativa de Seila Lentz, 58 anos, outra mãe dilacerada pela ausência da filha, é encontrar "um pouco de paz" ao ouvir as sentenças. O cansaço é generalizado.
— A gente quer que esse julgamento saia de uma vez para acabar com essa loucura toda. Ninguém aguenta mais. Vai ficar a dor da perda e já sabemos que não será como esperamos, mas pelo menos vamos ter um resultado — pondera Seila.
Psiquiatra do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), Vitor Crestani Calegaro, 38 anos, não tem dúvidas da carga simbólica do veredito e do seu potencial para elaboração do luto – muita gente, até hoje, não conseguiu superar as perdas. Calegaro é autor de uma tese de doutorado com foco na tragédia e coordena a equipe que cuida da saúde mental dos sobreviventes. Conhece como poucos as dificuldades enfrentadas por quem viveu aquela madrugada de horror. A maioria, além de ter testemunhado o desastre, perdeu amigos na Kiss.
Dependendo do desfecho, avalia Calegaro, o julgamento pode ajudar a restabelecer a confiança nas instituições e a esperança no futuro, fundamentais para a retomada da vida.
— O trauma faz parte da história, mas a história da Kiss continua a ser escrita. O que vai ser escrito nessa próxima página? São coisas que vão ficar na memória coletiva de Santa Maria para sempre. É uma oportunidade para, quem sabe, se reescrever essa história triste — conclui o psiquiatra.
Quem são os réus e qual é a acusação
- Os réus no processo criminal que apura as circunstâncias do incêndio na Boate Kiss são os sócios da casa noturna, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Augusto Bonilha Leão (ajudante).
- Os quatro respondem a ação penal por 242 homicídios e por 636 tentativas, com dolo eventual (quando se assume o risco de matar).
Entenda as últimas decisões da Justiça
– Em outubro de 2019, o juiz Ulysses Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, determinou que os quatro réus do caso fossem julgados em Santa Maria, em dois júris, marcados para 16 de março e 27 de abril de 2020.
– Em dezembro de 2019, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) decidiu que Elissandro Spohr, o Kiko, seria julgado em Porto Alegre, em data a ser definida, atendendo a pedido da defesa. O advogado Jader Marques argumentou que o desaforamento (transferência para outra comarca) evitaria tumultos e garantiria imparcialidade ao júri.
– Na mesma decisão, a 1ª Câmara do TJ definiu que os outros três acusados teriam júri conjunto em Santa Maria.
– Em 16 de janeiro de 2020, o juiz Louzada confirmou a data do julgamento dos acusados Luciano Bonilha Leão, Marcelo de Jesus dos Santos e Mauro Hoffmann em 16 de março de 2020. O júri será no Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), às 10h.
– No mesmo dia, a defesa de Santos pediu para que, como Kiko, ele seja julgado em Porto Alegre. O pedido foi negado em caráter liminar e deve entrar na pauta da 1º Câmara do TJ. Não há data definida.
– Em 21 de janeiro, o Ministério Público entrou com recurso solicitando que Kiko seja julgado em Santa Maria, junto dos outros três réus, mantendo a data prevista (16 de março). O pedido foi feito à 2ª Vice-Presidência do TJ, para que seja remetido ao Superior Tribunal de Justiça.
– Por meio de nota, o advogado de Kiko lamentou o fato e declarou que "a possibilidade de julgamento ainda neste primeiro semestre de 2020 tornou-se impossível".
– Em 22 de janeiro, foi a defesa de Hoffmann que ingressou junto ao TJ com pedido de desaforamento, negado em caráter liminar. Agora, deve entrar na pauta da 1ª Câmara do TJ. A defesa de Hoffmann também aguarda julgamento do recurso que moveu junto ao STF contra a decisão que levou os réus a júri.
- Em 28 de janeiro, o TJ negou o pedido de suspensão da decisão que determinou que o julgamento de Kiko seja em Porto Alegre.
- Em 12 de fevereiro, a 1ª Câmara do TJ decidiu que, além de Kiko, Hoffmann e Santos serão julgados em Porto Alegre.
- Em 28 de fevereiro, o MP ingressou com dois recursos no TJ. Em um deles, pediu que nenhum julgamento ocorresse até ter uma decisão final sobre a comarca onde todos os réus serão julgados. No outro, solicitou que os quatro sentem juntos no banco dos réus na cidade onde ocorreu a tragédia.