O início de novembro marca seis meses desde o início da enchente que devastou o Rio Grande do Sul e consagrou a maior tragédia ambiental de sua história. Após a ocorrência do evento climático extremo, os governos federal e estadual se mobilizaram para anunciar medidas que buscavam acelerar a recuperação estrutural, econômica e social do Estado. Dos cerca de R$ 114,8 bilhões já anunciados, aproximadamente R$ 54,9 bilhões, 47,8% do total, foi efetivamente repassado para financiar essas ações.
Desse montante total, cerca de R$ 110,9 bilhões são referentes a medidas anunciadas e realizadas pelo governo federal, dos quais aproximadamente R$ 52,7 bilhões, ou 47,5%, já foi investido de fato no Rio Grande do Sul. Já o governo estadual anunciou por volta de R$ 3,8 bilhões em ações, com repasse efetivo próximo a R$ 2,1 bilhões, que representa 55,4% do total. O Painel da Reconstrução, ferramenta desenvolvida pelo Grupo RBS, acompanha os anúncios do poder público e monitora os repasses realizados.
— É um certo padrão quando ocorre esse tipo de catástrofe. Primeiro, há uma mobilização muito grande do poder público, ainda durante a ocorrência do fato, que começa a anunciar ações para combater os efeitos do evento, e muitas dessas medidas iniciais têm caráter emergencial, com salvamentos, abrigos. Depois, em uma segunda etapa, as ações que exigem maior planejamento e execução com prazo mais longo devem começar a ser postas em prática — afirma Gustavo Frio, economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS.
O primeiro grande pacote de medidas para ajudar na recuperação do Rio Grande do Sul após o início da enchente foi apresentado pelo governo federal em 9 de maio, somando R$ 50 bilhões em anúncios. Poucos dias depois, em 15 de maio, foi oficializada a criação do Ministério da Reconstrução, órgão estabelecido em Porto Alegre para coordenar as ações do Palácio do Planalto em solo gaúcho. Chefiado por Paulo Pimenta, a pasta funcionou por quatro meses com esse status, até em setembro ser transformada em uma secretaria ligada à Casa Civil, com previsão de existir até o final de dezembro, agora sob comando do secretário Maneco Hassen.
— A iniciativa do governo federal em montar uma estrutura física de emergência aqui no Estado foi fundamental para a execução das ações de reconstrução do Rio Grande do Sul. Já fui prefeito e sei da dificuldade de levar as demandas para frente, e com a presença permanente do ministro Pimenta aqui, mais dos outros ministros e do próprio presidente Lula, que veio ao Estado várias vezes, conseguimos acelerar o que era preciso fazer, e o que não conseguimos concluir nesse período, pelo menos vai ficar bem encaminhado — projeta Maneco Hassen.
O governo do Estado também anunciou, em 17 de maio, a criação de uma secretaria própria para centralizar as ações de recuperação após a enchente. O governador Eduardo Leite transformou a antiga Secretaria de Parcerias e Concessões na Secretaria da Reconstrução Gaúcha (Serg), liderada por Pedro Capeluppi. Um dia antes, o governo enviou à Assembleia Legislativa o projeto que criaria o Plano Rio Grande, principal documento de orientação das atividades de reconstrução do Estado por parte do Palácio Piratini, e o Funrigs, fundo que seria a principal fonte de financiamento das ações previstas no plano, com recursos provenientes da suspensão do pagamento da dívida do Estado com a União.
— A secretaria acaba funcionando como um hub da reconstrução. Além de ser a principal responsável pela execução do Plano Rio Grande, também serve como referência para o contato com as outras secretarias do governo, com os municípios e com o próprio governo federal, nas ações integradas, além de dialogar diretamente também com as entidades empresariais e com a população — observa Capeluppi.
Confira a seguir algumas das principais ações anunciadas e realizadas pelo poder público para acelerar a recuperação do Rio Grande do Sul após a enchente de maio:
Crédito a Empresas
Logo no primeiro pacote de medidas anunciadas pelo governo federal já foram incluídas ações que buscavam oferecer crédito em condições especiais para as empresas atingidas pela enchente. Assim, foi estabelecido o Pronampe Solidário, com aporte de R$ 5 bilhões no Fundo de Garantia de Operações (FGO) e projeção de alavancagem de até R$ 30 bilhões em contratação de crédito, e que no momento está em R$ 3,1 bilhões. Em complemento, o governo estadual, em julho, via parceria com o Banrisul, começou a operar o Pronampe Gaúcho, que rapidamente esgotou os R$ 250 milhões em crédito projetados com a ação após aporte de R$ 100 milhões realizado.
Ainda em maio, o governo federal anunciou aporte de R$ 500 milhões no Fundo Garantidor de Investimentos do Programa Emergencial de Acesso a Crédito (FGI-PEAC) buscando alavancar até R$ 5 bilhões, dos quais R$ 2,8 bilhões já foram contratados. Também foram anunciadas medidas de reforço em dois programas destinados a produtores rurais, o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Após novos incrementos, as contratações de crédito realizadas nesses dois programas, até o momento, estão em cerca R$ 668 milhões, ante os R$ 4 bilhões projetados inicialmente.
O programa mais demandado para contratação de crédito pelas empresas atingidas, contudo, é o BNDES Emergencial, que começou a operar em julho. Dos R$ 15 bilhões já disponibilizados pelo governo federal pelo Fundo Social, R$ 11,6 bilhões foram contratados, em 5,6 mil operações. No final de outubro, também pelo Fundo Social e com operação do BNDES, o Planalto liberou crédito de R$ 5 bilhões para agricultores quitarem dívidas.
— As iniciativas foram importantes, mas não podemos deixar de observar alguns problemas que ocorreram na execução. Os programas tiveram alguns limitadores, como a questão da mancha (que indicava a área atingida pela enchente) e a não inclusão de quem teve só o faturamento afetado, por exemplo, e também a exigência de garantias por parte dos agentes financeiros, o que fez com que, na prática, muitas pequenas e micro empresas duramente afetadas não conseguissem contratar crédito — aponta Luiz Carlos Bohn, presidente da Fecomércio-RS e do conselho deliberativo do Sebrae RS.
Auxílios financeiros diretos à população
Como grande medida de apoio financeiro direto à população, o governo federal anunciou, em 15 de maio, o pagamento de R$ 5,1 mil por família diretamente atingida pela enchente, com a criação do Auxílio Reconstrução. Até o momento, mesmo com centenas de milhares de pedidos ainda aguardando resposta definitiva, os pagamentos do programa já somam cerca de R$ 1,9 bilhão em benefício de 377 mil famílias.
Também prevendo recursos extraordinários ao orçamento, foi instituído o pagamento de duas parcelas extras do seguro-desemprego para quem já estava recebendo o benefício até abril, sendo já pagos R$ 301 milhões dos R$ 497 milhões projetados. Destacam-se ainda, nas ações federais, a antecipação e a liberação excepcional de benefícios, como o saque calamidade do FGTS, que somou R$ 3,4 bilhões e beneficiou 1,05 milhão de trabalhadores em 446 municípios gaúchos. Também já foram antecipados pagamentos referentes ao Bolsa Família (R$ 417 milhões), abono salarial (R$ 801 milhões), restituição do Imposto de Renda (R$ 1 bilhão) e benefícios de prestação continuada (R$ 159 milhões), além da antecipação do pagamento de benefícios previdenciários gerais, que soma outros R$ 4,2 bilhões.
O governo estadual teve iniciativa semelhante ao Auxílio Reconstrução, desenvolvendo a criação do Volta por Cima, prevendo pagamento de R$ 2,5 mil para famílias em situação de vulnerabilidade social que foram diretamente atingidas pela enchente. Com o pagamento de mais um lote nesta quarta-feira (30), o programa já soma R$ 251 milhões, tendo contemplado 100,4 mil famílias. O Piratini ainda coordena os pagamentos realizados no âmbito do Pix SOS RS, que concede parcela única de R$ 2 mil também a famílias em condições de pobreza que tenham sido atingidas pela enchente, que já repassou R$ 101,5 milhões aos beneficiários.
Moradias
De uma projeção de pelo menos 17,3 mil, o Planalto — que prometeu dar uma casa nova a todas as famílias das faixas 1 e 2 do Minha Casa Minha Vida que tiveram moradia destruída pela inundação — fez a entrega até o momento de cerca de 400 unidades habitacionais, com início em agosto, durante uma visita do presidente Lula a Porto Alegre. Na quinta-feira (31), o governo federal fez a entrega simbólica das chaves de uma casa adquirida via compra assistida a uma família de Montenegro, projetando acelerar as entregas realizadas por esse programa nos próximos dias. Entregas em Porto Alegre e Santa Maria também já estão programadas, um total de pelo menos 2,5 mil residências devem ser entregues neste modelo.
Das cerca de 17,3 mil novas casas que deverão ser entregues inteiramente de forma gratuita, a maior parte, 11,5 mil, virão com a construção de novas unidades habitacionais no âmbito do programa do Minha Casa Minha Vida Calamidades. A União ainda prevê a construção de 2 mil casas no Minha Casa Minha Vida Calamidades para moradias em áreas rurais. Além disso, planeja a construção de mais 1,3 mil residências por meio do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), para casas isoladas. Para financiar as entregas de residências prometidas, o governo federal já integralizou pelo menos R$ 2 bilhões ao Fundo de Arrendamento Residencial (FAR).
O Piratini também prometeu a entrega de casas para famílias que perderam suas residências na enchente, projetando a entrega de 500 moradias provisórias, que posteriormente serão substituídas por permanentes, e já prevendo a construção de 648 unidades definitivas. As entregas de residências provisórias, que têm investimento previsto de R$ 66,7 milhões, começaram em agosto, com 30 unidades em Encantado, e até o momento somam 212, entregues também em Cruzeiro do Sul, Estrela, Triunfo e Rio Pardo. Já as residências definitivas, com investimento de R$ 57,1 milhões, devem começar a ser entregues nos primeiros meses de 2025.
Logística
Segundo o governo estadual, a chuva e as cheias de rios em maio afetaram cerca de 13,7 mil quilômetros de estradas no Estado, sendo 5.288 quilômetros em rodovias federais e outros 8.434 quilômetros em trechos estaduais, tendo ainda pelo menos 46 pontos de bloqueio total ou parcial do trânsito. Para restaurar toda a malha rodoviária do Estado, com a reconstrução de pontes e o reforço de trechos em encostas, tanto o Piratini quanto o Planalto projetam prazo de até dois anos.
Para recuperar todos os trechos danificados em rodovias estaduais, o Daer projeta investimento do Estado de até R$ 3 bilhões, com recursos provenientes principalmente do Funrigs. Até o momento, o Piratini informa já ter gasto cerca de R$ 264,7 milhões na recuperação de rodovias estaduais, com valores desembolsados em grande parte pelo Tesouro do Estado e pela Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR). O Dnit, para recuperar todos os trechos afetados em estradas federais, projeta investir pelo menos R$ 1,185 bilhão, dos quais já foram gastos R$ 120,2 milhões, com outros R$ 350,1 milhões já empenhados e R$ 491,1 milhões contratados.
Outro fato que impactou drasticamente a logística no Estado após a enchente foi o fechamento do Aeroporto Internacional Salgado Filho com a sua inundação em 3 de maio. Após mais de cinco meses fechado, quando foi montada uma malha aérea emergencial no Estado com a operação comercial da Base Aérea de Canoas, o aeroporto foi reaberto em 21 de outubro com capacidade para 128 voos diários, projetando o restabelecimento completo de sua capacidade a partir de 16 de dezembro. Para apoiar a Fraport nos trabalhos de recuperação do Salgado Filho, o governo federal empenhou R$ 425,9 milhões, dos quais pelo menos R$ 49,7 milhões já foram efetivamente repassados.
— Somos um Estado que depende fortemente da malha rodoviária para escoar os nossos produtos vendidos para fora do Estado, e cada ponto de bloqueio ou trecho danificado em rodovia aumenta o tempo e o custo logístico, impactando a competitividade das empresas. O aeroporto, além de sua importância para exportação, também é um ponto vital para a atração de turistas, para a Serra, por exemplo, e mesmo para a chegada do público de eventos e feiras corporativas — reforça o professor Gustavo Frio.
Sistemas de proteção contra cheias
Principais estruturas responsáveis pela proteção direta das cidades contra inundações, os sistemas de proteção contra cheias de Porto Alegre e outros municípios gaúchos também serão reforçados após a catástrofe climática de maio. O Planalto realizará um aporte de R$ 6,5 bilhões em um fundo, a ser criado e totalmente preenchido até dezembro, para viabilizar investimentos nessas estruturas. O fundo e a execução das obras serão administradas de forma integrada entre os governos federal e estadual.
Estão previstos para execução com esta verba, em diferentes etapas, projetos de proteção contra cheias em quatro locais principais: na bacia hidrográfica do Rio Gravataí, no Arroio Feijó, na bacia do Rio dos Sinos e no delta do Rio Jacuí, no município de Eldorado do Sul. Destes, segundo o secretário Capeluppi, Arroio Feijó e Delta do Jacuí estão mais adiantados, e podem ter o edital de contratação das empresas que farão os trabalhos lançados ainda neste ano, ou, no mais tardar, no primeiro trimestre de 2025. Para conclusão de todas as obras previstas, as autoridades projetam prazo de até cinco anos.
O Novo PAC Seleções também prevê outros recursos para reforçar os sistemas de proteção contra cheias em municípios gaúchos. Em Porto Alegre, por exemplo, projeta cerca de R$ 770 milhões para cinco projetos de macrodrenagem urbana.
— Essas grandes obras nos sistemas de proteção têm uma certa complexidade, algumas etapas são menos complexas que outras, mas a projeção geral de até cinco anos para conclusão parece adequada. O que devemos fazer também, nesse período, é investir em planos de contingência e protocolos de ação para agirmos com mais eficiência caso eventos similares ocorram — destaca Fernando Fan, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS.