Já fui duas vezes ao cinema para assistir às duas horas e meia de Furiosa: Uma Saga Mad Max (Furiosa: A Mad Max Saga, 2024), que estreou no dia 23 de maio e segue em cartaz em 13 salas de Porto Alegre. A primeira foi só para me deixar impactar. A segunda, para tentar o impossível: enxergar como o diretor George Miller e sua equipe produziram, de novo, as mais incríveis cenas de ação dos últimos tempos. Só um making of detalhadíssimo pode explicar a forja da ilusão: o espectador é levado a acreditar que estão realmente acontecendo os duelos corpo a corpo ou motorizados e as perseguições de carro, de moto, de caminhão, a cavalo ou até via aérea no vasto deserto de uma Austrália pós-apocalíptica.
E isso ocorre porque Miller, aos 79 anos, volta a oferecer uma tremenda lição a cineastas mais jovens que apresentam sequências sujas e confusas como sinônimo da urgência e do caos de um combate. Na companhia do diretor de fotografia Simon Duggan, da dupla de editores Margaret Sixel (sua esposa) e Eliot Knapman e do coordenador de dublês Guy Norris (creditado como "action designer"), coloca a ação sempre no centro da cena. Que é limpa, digamos, apesar de não raro respingar sangue de mentirinha na lente da câmera. Nada que prejudique o olhar do público, concentrado no meio da tela, seguindo o deslocamento dos personagens, dos veículos, das lanças, das bombas e de outras peças de um arsenal entre o arcaico e o engenhoso. A monocromia e a amplidão dos cenários são aliados de peso, indicando profundidade e destacando no que devemos prestar atenção.
Furiosa é o quinto filme da bem-sucedida franquia criada há 45 anos. Todos foram dirigidos por Miller, também coautor dos roteiros que, por meio da brutalidade e da punição, evocam o passado da Austrália, colônia penal da Inglaterra entre 1788 e 1868. Cada título pode ser visto de forma autônoma, não existe uma linha cronológica bem definida, embora se perceba uma progressão nos elementos distópicos, uma expansão no chamado worldbuilding, a construção do universo narrativo.
Em Mad Max (1979, disponível no Max), que custou algo entre US$ 350 mil e US$ 400 mil e faturou US$ 100 milhões, a trama está ambientada "daqui a alguns anos". Apesar da escassez de recursos e da violência desenfreada, ainda existem as cidades como as conhecemos e até a polícia. O protagonista, Max Rockatansky (papel que catapultou Mel Gibson ao estrelato), é o craque das perseguições automobilísticas, na verdade, das agressivas interceptações nas estradas australianas. Depois de provocar a morte de um ladrão de carro, ele acaba atraindo a revolta da gangue de motoqueiros comandada pelo cruel Toecutter (Hugh Keays-Byrne).
A abertura de Mad Max 2 (1981, também no menu do Max) contextualiza: a disputa pelo petróleo causou uma guerra de proporções catastróficas entre as potências mundiais. O planeta se tornou uma terra árida e sem lei. A bordo de um Ford Falcon V8 envenenado, o solitário Max segue patrulhando as rodovias enquanto remói as dores do seu passado. Aqui, Miller firma o parentesco de sua saga futurista com os faroestes. A desolada Wasteland do interior australiano remete ao deserto dos clássicos de John Ford, como No Tempo das Diligências (1939) e Rastros de Ódio (1956). O personagem de Gibson é como um caubói, um homem de poucas palavras, em uma história de vingança. Que é filmada à moda antiga, ou seja, com poucos cortes, tendo paciência para observar a paisagem tétrica — e lançando mão de closes à la Sergio Leone nos momentos de tensão. A refinaria de gasolina transformada em comunidade é como se fosse o forte ou o vilarejo a ser ameaçado por um bando de saqueadores, e Max surge como o estranho sem nome vivido por Clint Eastwood no filme homônimo de 1973. Seu carro é seu cavalo.
O extravagante Mad Max 3: Além da Cúpula do Trovão (1985, para aluguel nas plataformas digitais) aproxima a franquia dos épicos ambientados na Roma do Coliseu. Após chegar a uma cidade cheia de arruaceiros e governada pela traiçoeira Tia Entity (a cantora Tina Turner), Max se torna um gladiador.
Ao fechar a trilogia, Miller resolveu se dedicar a outros gêneros. Fez comédias (As Bruxas de Eastwick, 1987), dramas (O Óleo de Lorenzo, 1992), infantis (coescreveu Babe: O Porquinho Atrapalhado, de 1998, e dirigiu sua continuação, em 1998), animações (Happy Feet: O Pinguim, 2006, que lhe valeu o Oscar da categoria, e Happy Feet 2, 2011). Mas nunca abandonou a ideia de voltar a Mad Max. Só que enfrentou toda sorte de obstáculos: dificuldades financeiras, o 11 de Setembro, a recusa de Mel Gibson em retomar o personagem... Até que nasceu o grande sucesso da série, Mad Max: Estrada da Fúria (2015, presente no catálogo do Max), que arrecadou US$ 380 milhões, conquistou seis prêmios no Oscar — edição, design de produção, figurino, maquiagem, edição de som e mixagem de som — e concorreu a outros quatro, incluindo os de melhor filme e direção.
Estrada da Fúria abriu um novo caminho. Agora encarnado por Tom Hardy, Max Rockatansky faz uma narração em off durante os créditos iniciais do filme e é a primeira pessoa que vemos em cena, de costas para nós, urinando à beira de um penhasco em um deserto de cores intensas e mastigando um lagarto, pouco antes de ser capturado pelos soldados de corpo embranquecido do tirano Immortan Joe. Mas a principal personagem é a Imperatriz Furiosa interpretada por Charlize Theron, que se rebela contra o cruel governante da Cidadela: resolve resgatar as Cinco Noivas, as mulheres que o vilão mantinha aprisionadas para lhe trazer filhos "perfeitos". É o ponto de partida para uma caçada incessante e eletrizante.
Furiosa é o que Hollywood classifica como prequel, um filme que narra eventos anteriores ao da história original. No caso, o público é convidado a visitar a infância e a juventude de Furiosa, interpretada primeiro pela promissora Alyla Browne (da minissérie As Flores Perdidas de Alice Heart) e depois por Anya Taylor-Joy, hoje um dos nomes mais quentes na indústria cinematográfica. Merecidamente: mesmo com pouquíssimas falas, ou talvez por isso mesmo, a atriz se impõe.
Na cena de abertura, em um oásis verde, a menina Furiosa está colhendo uma fruta. Como se tivesse cometido o pecado de Eva, vai acabar sendo sequestrada por motoqueiros liderados por Dementus, personagem que permite a Chris Hemsworth mesclar seus conhecidos dotes cômicos com um insuspeitado talento para a vilania.
O roteiro escrito por George Miller e Nico Lathouris vai revelar, por exemplo, como Furiosa perdeu seu braço esquerdo e como montou seu veículo de guerra. Segue uma cartilha básica das tramas de vingança — ainda que entabule reflexões pertinentes sobre seu poder corrosivo — e até pede que o espectador não dê bola para perguntas que ficam sem resposta (como quanto à falta de reação diante de um certo desaparecimento na Citadela). Mas Furiosa tem uma série de trunfos que o alçam ao pódio das superproduções hollywoodianas.
Tudo contribui para fazer do filme um espetáculo imperdível, e nada fica em segundo plano. Furiosa não seria o que é sem os figurinos concebidos por Jenny Beavan (vencedora do Oscar por Estrada da Fúria e também por Uma Janela para o Amor e Cruella) e o trabalho primoroso do time de maquiagem, por exemplo. Ou sem o enorme elenco de coadjuvantes, que inclui Charlee Fraser, da comédia romântica Todos Menos Você (2023), como a destemida mãe da protagonista, Lachy Hulme assumindo o lugar do finado Hugh Keays-Byrne atrás da máscara de Immortan Joe e George Shevtsov na pele enrugada e tatuada do Historiador, o ancião aprisionado por Dementus que comenta o pendor belicista da humanidade.
Aliás, em um mundo assustado por guerras (como entre a Rússia e a Ucrânia e entre Israel e o Hamas), pelas mudanças climáticas e pela ascensão de líderes messiânicos e populistas, Furiosa sequer pode ser visto como diversão escapista. Trata-se, como bem resumiu no Letterboxd o cineasta Kleber Mendonça Filho — que referenciou Mad Max 2 em Bacurau (2019, codirigido por Juliano Dornelles) —, da "versão pesadelo daquele sucesso (Estrada para Fúria), uma obra conceitual mais selvagem, mais violenta, mais sombria e sinistra, excessiva e obcecada ao ponto de dar angústia". Por mais que as cenas de ação sejam deslumbrantes, por mais que sequências como a do ataque ao comboio do Pretorian Jack (Tom Burke, o Orson Welles de Mank) maravilhem o olhar, há sempre um travo amargo — sublinhado pela aterrorizante trilha sonora composta pelo holandês Tom Holkenborg, uma espécie de marcha fúnebre em tom acelerado e com roncos de motor, como condiz a personagens que estão constantemente na estrada, o tempo todo correndo para matar ou morrer.