Tem gente que nem quis ver, tem gente que saiu no meio da sessão. Que pecado: A Primeira Profecia (First Omen, 2024), ainda em cartaz nos cinemas de Porto Alegre, não é só o grande terror da temporada até agora, mas também um dos melhores filmes do ano.
Eu confesso que quase deixei passar. Só na terceira semana de exibição fui assistir ao primeiro longa-metragem da diretora estadunidense Arkasha Stevenson. Trata-se de um prelúdio de A Profecia (1976), clássico de Richard Donner baseado no livro de David Seltzer sobre Damien, o filho de Satã, nascido na sexta hora do sexto dia do sexto mês, destinado a ser o Anticristo. Na trama, o menino é trocado de lugar com o bebê natimorto de Robert Thorn (Gregory Peck), então embaixador dos EUA na Itália, e sua esposa (Lee Remick). Composta por Jerry Goldsmith, a apavorante trilha sonora ganhou o Oscar.
Entendo quem esteja ressabiado em relação a A Primeira Profecia ou até enfastiado, afinal, é mais uma aposta de Hollywood na nostalgia — entre os lançamentos de 2024, contei pelo menos 30 continuações, preâmbulos e novos títulos de franquias cinematográficas. No gênero do terror, onde nada nunca morre mesmo, algumas ressurreições recentes "assustaram" fãs, vide a trilogia Halloween (2018-2022) e o famigerado O Exorcista: O Devoto (2023) — os quatro, vale frisar, assinados pelo mesmo diretor, David Gordon Green —, além de Chamas da Vingança (2022), O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface (2022), Olhos Famintos: Renascimento (2022) e Cemitério Maldito: A Origem (2023). E há de se levar em conta o excesso de títulos protagonizados por noviças (ou padres): estão nessa lista A Freira (2018), A Maldição da Freira (2018), Exorcismo Sagrado (2021), A Luz do Demônio (2022), A Freira 2 (2023), O Exorcista do Papa (2023), Irmã Morte (2023), o já citado O Exorcista: O Devoto e o ainda inédito no Brasil Imaculada (2024).
Mas tenha fé: A Primeira Profecia chega a ser diabolicamente divino.
Tudo começa com uma ótima ideia: contar a história da mãe de Damien, mulher que não havia recebido atenção nos cinco filmes anteriores (A Profecia ganhou duas continuações, em 1978 e 1981, um telefilme, em 1991, e uma refilmagem, em 2006), todos realizados em tempos nos quais a perspectiva feminina no terror não era tão valorizada quanto hoje em dia, e no seriado Damien (2016).
Portanto, A Primeira Profecia se passa na Roma de 1971, a cidade e o ano da concepção do Anticristo. É lá que desembarca Margaret Daino, moça estadunidense que está prestes a começar uma vida de serviço à Igreja. Eis outro grande trunfo do filme: a interpretação de Nell Tiger Free, atriz inglesa que despontou como a Myrcella Baratheon da série Game of Thrones, em seis episódios lançados entre 2015 e 2016, e depois encarnou a babá Leanne nas quatro temporadas de Servant (2019-2023). Ela cativa o público, estabelece um vínculo conosco ao equilibrar sentimentos e características conflitantes — o amor a Deus e os impulsos carnais da juventude, a ingenuidade e a obstinação — na pele da noviça que depara com mistérios e eventos sinistros no orfanato comandado pela rígida Irmã Silva (papel de Sônia Braga, em atuação firme), onde pode estar a futura progenitora de Damien.
Dada a ambientação e a época, Arkasha Stevenson se permite referenciar, tanto no roteiro que escreveu com Tim Smith e Keith Thomas a partir de uma história de Ben Jacoby, quanto no visual orquestrado pelo diretor de fotografia Aaron Morton, títulos contemporâneos do gênero, como Repulsa ao Sexo (1965) e O Bebê de Rosemary (1968), ambos de Roman Polanski, O Exorcista (1973), de William Friedkin, e Suspiria (1977), de Dario Argento. Por estar na capital italiana, a cineasta estreante bebe bastante do giallo, o subgênero que teve Argento como um dos expoentes e que tinha como algumas marcas o protagonista traumatizado, o erotismo perturbado, a presença perigosa de objetos cortantes, a farta exposição de sangue, os cenários com espelhos, a fantasia que altera a percepção da realidade e as cenas de alucinação (essa aproximação com o giallo contribui para a classificação indicativa de 18 anos: "Contém drogas ilícitas, nudez, violência extrema"). Outra produção europeia citada é Possessão (1981), dirigida pelo polonês Andrzej Zulawski e estrelada pela francesa Isabelle Adjani.
Mas Stevenson também é fã dos thrillers estadunidenses de paranoia, conspiração e investigação realizados por Alan J. Pakula — Klute: O Passado Condena (1971), A Trama (1974) e Todos os Homens do Presidente (1976). Ilustrado em A Primeira Profecia, o convulsionado contexto social colabora para o clima de desconfiança e ameaça à espreita: a Itália vivia os Anos de Chumbo, período marcado por protestos violentos e ataques terroristas, tanto pela extrema-direita quanto pela extrema-esquerda. Nesse olhar para o passado, o filme reflete sobre dois temas bem atuais. Um é a política do medo adotada por candidatos populistas e governos totalitários. O outro é o controle religioso sobre o corpo feminino — como apontou o crítico Bilge Ebiri no Vulture, o prelúdio de A Profecia veio à luz após a Suprema Corte dos EUA revogar a decisão conhecida como Roe vs. Wade, de 1973, que garantia nacionalmente o direito ao aborto, desencadeando uma onda de leis estaduais proibitivas. Para Ebiri, não é surpresa o surgimento de filmes de terror sobre mulheres "forçadas a nascimentos monstruosos por instituições religiosas preocupadas com a sua crescente irrelevância".
Antes de pousar em Roma, contudo, A Primeira Profecia tem um prólogo em Londres que conecta o novo filme ao clássico, através do personagem do padre Brennan, vivido em 1976 por Patrick Troughton e em 2024 por Ralph Ineson. Já nessa cena de abertura, que homenageia uma das mais famosas do original, aparece uma das virtudes da direção de Arkasha Stevenson, mas que pode ser encarada como defeito por espectadores mais epidérmicos, aqueles que procuram o terror pelo choque e pelo susto. Stevenson não faz concessão ao chamado jump scare, tão comum em títulos similares (aliás, tampouco faz concessão ao alívio do humor, também recorrente) — deve ter sido esse o motivo que levou algumas pessoas a abandonarem a sessão que eu vi: talvez esperassem algo à la A Freira. Na companhia dos editores Bob Murawski, premiado com o Oscar por Guerra ao Terror (2008), e Amy E. Duddleston, a diretora prefere trabalhar com expectativas e vislumbres, o que torna a atmosfera ainda mais tensa e inquietante. Tudo é sublinhado, e não hipertrofiado, pela sinistra música composta por Mark Korven (um craque do gênero: são dele A Bruxa, O Farol e O Telefone Preto), que evoca a trilha de Jerry Goldsmith, incluindo a canção em latim Ave Satani.
Mas se A Primeira Profecia abraça os fãs da franquia, não se mostra fechado para os neófitos. Afinal, a trama lida com um mito poderoso que não é exclusivo de A Profecia, o do Anticristo, a figura que simboliza o triunfo do mal e o fim dos tempos. Funciona como um filme autônomo, com um epílogo que tanto dialoga com o passado quanto abre uma porta para o futuro.