O Ministério Público Federal (MPF) concluiu que os três agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que atenderam a colisão que resultou na morte de Barbara Andrielli Mendes de Moraes, 15 anos, em março de 2019, cometeram prevaricação ao demorar 85 horas para registrar o fato. O causador do acidente foi o médico Leandro Toledo de Oliveira, que estava com a carteira de habilitação suspensa por dirigir embriagado e que, segundo o Ministério Público estadual (MP-RS), voltava bêbado na freeway de uma festa no Litoral Norte – ele também não foi submetido ao teste do bafômetro.
O crime de prevaricação ocorre quando um agente público retarda, deixar de praticar ou pratica indevidamente sua função para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Por ser considerado de baixo potencial ofensivo, o MPF ofereceu uma proposta de transação penal aos três agentes envolvidos. Caso aceitem, em vez de responder ao processo, os policiais Leandro André Nyland, César Ferreira Pias e Silvio Tadeu Ferri deverão pagar multa de R$ 10 mil, R$ 8 mil e R$ 3 mil cada, respectivamente.
A finalização do procedimento investigatório do MPF ocorre um ano, três meses e 29 dias após a colisão. O órgão aguardou a finalização de procedimento administrativo disciplinar da PRF antes de se manifestar. Em junho de 2020, após cinco adiamentos, a corporação impôs suspensão de dois dias para um dos agentes, um dia para outro e advertência para o terceiro.
GaúchaZH obteve acesso ao documento da proposta de transação do MPF na íntegra. No texto, a procuradora da república Jerusa Burmann Viecili, do Núcleo de Combate à Corrupção, detalha a acusação contra os três agentes. No entanto, não identifica o motivo que os levou a retardar o registro da ocorrência contra o médico – que dirigia um carro de luxo, uma BMW X5, e que arrastou a moto onde estava Bárbara por 74 metros.
A procuradora pontua que os agentes agiram para "satisfazer interesse ou sentimento pessoal moral":
"Dessa forma, os nominados, em unidade de desígnios, de forma livre e consciente, retardaram indevidamente ato de ofício, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal moral, consistente em agir com desrespeito para com suas responsabilidades de policiais rodoviários federais, bem como descumprir suas atribuições inerentes ao cargo exercido."
A procuradora também especifica que os agentes deixaram de cumprir os manuais internos da corporação ao retardar o registro.
Em uma nota de rodapé do documento, a procuradora da república ainda comenta sobre a não aplicação do bafômetro ao médico. O fato não entrou nos argumentos principais na proposta de transação penal. Jerusa cita que houve relatos de embriaguez do motorista, "situação que não restou cabalmente comprovada":
"(...) o motorista não foi submetido ao teste de etilômetro, sob a justificativa de que, após a chegada da equipe policial ao local do acidente, queixava-se ele de falta de ar e dores na cervical e, após ter sido conduzido ao nosocômio, permaneceu imobilizado, o que teria impossibilitado a constatação da sua alcoolemia, pois o hospital, segundo consta, não disponibilizava de nenhum outro exame que pudesse apontar o teor alcoólico no seu sangue."
Caso os policiais aceitem a proposta do MPF, não precisarão responder a processo, que seria arquivado. O órgão ainda citou que aceita o parcelamento da multa, caso haja dificuldade financeira comprovada aos policiais.
GaúchaZH tenta contato com a defesa dos agentes. Assim que isso ocorrer, este texto será atualizado com os contrapontos.
Fatos investigados
Em 19 de junho de 2019, a Justiça de Santo Antônio da Patrulha tornou o médico réu por homicídio doloso eventual — quando se assume o risco de matar — duplamente qualificado e outras três tentativas de homicídio. Segundo a denúncia, "bêbado e em alta velocidade", o acusado atingiu duas motocicletas na BR-290, a freeway, no dia 3 de março de 2019, causando a morte de Bárbara Andrielli Mendes de Moraes, 15 anos.
O processo sobre o acidente ainda está em fase inicial e não foi realizada nenhuma audiência. Um outro processo, movido pela família, busca reparação por danos causados pelo acidente.
A batida do carro do médico com as duas motos também feriu o pai, a mãe e um amigo da família da adolescente, que viajavam juntos e foram arremessados com a força da colisão. A mãe da vítima quebrou os ossos de uma das pernas e até hoje não conseguiu voltar ao trabalho.
O médico responde em liberdade. GaúchaZH procurou nesta segunda-feira (06) a advogada dele, Karina Mombelli Sant'Anna. Ela voltou a dizer que não há "nenhum elemento probatório capaz de comprovar o estado etílico do réu no momento do acidente, sendo infundada a afirmação de que ele estava embriagado na ocasião do sinistro". Ela também considera que "a inexistência de responsabilidade civil e criminal sobre os fatos será comprovada ao final dos respectivos processos".
Os pais de Bárbara têm sequelas da colisão até hoje. A mãe não consegue mais trabalhar. O pai, Douglas Samuel Ozório de Moraes, é motoboy e segue trabalhando apesar das dores no corpo.
Linha do tempo
3/3/2019 – Batida na freeway mata Bárbara e fere seu pai, mãe e amigo. Testemunhas dizem que o motorista apresentava sinais de embriaguez. Médico, com CNH suspensa, declara ter crise de asma, é levado para hospital e liberado sem sequer comparecer em uma delegacia ou passar por bafômetro
6/3/2019 – Enquanto GaúchaZH procurava informações sobre o acidente com autoridades, o caso é registrado pela PRF na Polícia Civil, 85 horas depois. Nem sequer a assessoria de comunicação da corporação no Rio Grande do Sul sabia do ocorrido. A reportagem tem acesso ao documento e percebe que o médico não foi submetido ao teste do bafômetro. A PRF diz que vai abrir sindicância para apurar os fatos
7/3/2019 – Procurado pela reportagem, o delegado responsável pela investigação, Valdernei Tonete, afirma que o caso não será prioridade e será apurado "na medida do possível"
8/3/2019 – Após a entrevista, a chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Nadine Anflor, determina que a delegacia priorize a investigação, diz que o delegado se enganou e oferece agentes para reforçar a equipe
14/3/2019 – Os três policiais rodoviários que atenderam o acidente prestam depoimento em sindicância interna para esclarecer o motivo na demora para registrar a ocorrência e de não submeter o motorista ao bafômetro
20/3/2019 – Defesa diz que médico envolvido em acidente com morte na freeway não sabia que estava com CNH suspensa e que ele não havia bebido
22/3/2019 – Mãe de adolescente recebe alta do hospital. Em junho, ela ainda apresenta dificuldades de locomoção
9/4/2019 – Médico é indiciado pela Polícia Civil, um mês e seis dias depois do acidente. Apesar de constatar embriaguez, polícia entende que o caso é um homicídio culposo – sem intenção de matar. Policial rodoviário é indiciado por prevaricação
12/4/2019 – Quatro dias após indiciamento, reportagem de GaúchaZH tem acesso ao inquérito. Até então, delegado não havia detalhado a investigação para a imprensa. Documento aponta que médico voltava de festa, supostamente embriagado e em alta velocidade
8/5/2019 – PRF entende que houve "possível erro de conduta" de agentes e abre processo que pode resultar em demissão de policiais. O prazo da apuração termina em julho
11/6/2019 – Ministério Público diverge da polícia e diz que médico cometeu homicídio com dolo eventual – assumindo o risco dos seus atos
19/6/2019 – Justiça torna réu motorista por homicídio qualificado com dolo eventual e três tentativas de homicídio
8/7/2019 - PRF pede 60 dias para finalizar processo contra policiais
10/9/2019 - Após seis meses, PRF pede mais 60 dias para terminar a investigação interna
6/11/2019 - Investigação contra policiais por demora de 85 horas para registro de acidente com morte é novamente adiada
20/1/2020 - Após 10 meses, PRF colhe depoimentos de agentes que demoraram 85 horas para registrar acidente com morte
3/3/2020 - Após um ano da morte, família da menina ainda aguarda término da investigação contra policiais e longo processo na Justiça
21/05/2020 - Após mais de um ano, PRF finaliza apuração contra agentes que demoraram 85 horas para registrar acidente com morte. Punição ainda não havia sido aplicada.
19/06/2020 - PRF determina suspensão a policiais.