Para os professores da turma 302, com a pandemia e o ensino remoto, as obrigações dobraram ou até triplicaram. Ao menos é o que GZH ouviu de quatro deles, além da supervisora e do diretor da escola Borges de Medeiros, em Novo Hamburgo, acompanhados ao longo de duas semanas.
Aquilo que antes era resolvido em sala de aula, agora pode precisar de um tempo maior em razão das atividades a distância. A plataforma digital disponibilizada pelo governo do Estado – Google Classroom – é um problema no momento em que nem todos os alunos têm acesso, e alguns estudantes, apontam os docentes, sequer têm internet ou equipamentos adequados para acompanhar as aulas de forma remota.
Em consequência das limitações da plataforma, o WhatsApp dos professores da turma 302 é ferramenta constante de recebimento de atividades. Os chromebooks prometidos pelo governo chegaram somente no fim do ano passado, início de 2021 para alguns professores.
A promessa da Secretaria Estadual da Educação (Seduc) era entregar 50 mil equipamentos até o fim de 2020. A meta não foi alcançada: segundo números da Seduc, 40 mil máquinas chegaram ao destino até o último dia do ano.
Na turma 302, muitos dizem que tiveram de investir do próprio bolso para poder conseguir ter o mínimo de condições para dar aulas. A maioria deles também não se sente seguro para voltar às aulas presenciais.
O revezamento de material e atenção com os filhos
Caroline Bárbara Fedre, 35 anos, tem um período por semana com os alunos da 302. Professora de língua espanhola, lembra que, no início, o desafio era ainda maior, quando o Google Classroom, por exemplo, não era de fácil acesso para muitos dos alunos e faltavam equipamentos.
— Muitos professores não tinham dinheiro para comprar um aparelho novo. Nosso salário foi reduzido (mudança nas regras de gratificação por difícil acesso, por exemplo). Então, a gente precisou colocar do nosso próprio bolso as condições para poder dar essas aulas — relata Caroline.
Segundo Caroline, seu WhatsApp foi disponibilizado para que os alunos tirem dúvidas. As tarefas, que já são muitas durante as aulas presenciais, aumentam no trabalho remoto.
— O meu horário de trabalho aumentou, a quantidade de trabalho aumentou. O que a gente faz é pelos alunos. A gente faz isso por eles — observa.
Apesar de tantas adversidades que o trabalho remoto impõe, Caroline considera que não é o momento de retorno das aulas presenciais. Cita que a escola tem 930 alunos e apenas três funcionários para fazer a limpeza.
Caroline ainda é mãe de um menino de 12 anos, que estuda numa escola estadual e com quem divide o computador – recebeu o chromebook do governo do Estado apenas neste ano.
— Ele estuda de manhã. Então, quando ele tem aula síncrona, eu faço o atendimento dos meus alunos pelo meu telefone. Meu celular é minha via de trabalho. Atendo muitos alunos pelo WhatsApp. Aí não consigo usar o computador, porque meu filho está usando. Então, como ele pode entregar algumas atividades em outro dia, eu consigo trabalhar no computador à tarde — relata Caroline, ao lembrar que o professor tem mais esse desafio, além de dar aulas, cuidar da casa e dos filhos.
Professora de química da turma 302, Zionara Tittoni, 38 anos, também se divide em atenção e espaço com o filho de seis anos, que está no primeiro ano do Ensino Fundamental. Um canto da sala foi adaptado para as aulas dos dois, contando com investimento próprio:
— Eu tinha um computador muito defasado, que não era compatível com o que eu precisava para trabalhar. Então, eu tive que tirar do meu bolso dinheiro para comprar esse computador mais novo. Eu tive que aumentar a banda larga da minha casa. Tudo custeado com o pouco do salário que eu recebo.
A dificuldade para dar aulas em 2020 se repete em 2021. Segundo Zionara, é impossível dar aulas apenas com a plataforma virtual do governo: nem todos os alunos ingressaram nela. Para que não sejam prejudicados por isso, ela é mais uma que trabalha por meio do WhatsApp. No que depender da professora, a pandemia não vai prejudicar o aprendizado dos seus alunos.
—Na minha disciplina, eu fui uma professora que sempre, em qualquer horário que o aluno me procurou, eu tentei sanar todas as dúvidas que ele tinha. Procurei enviar o máximo de atividades que eles poderiam fazer — sustenta.
Além da preparação do conteúdo de aula, o material precisa ser digitalizado. Vídeos explicando a matéria a ser ensinada também são produzidos.
— O meu horário para escola, horário para o meu filho, horário para a minha casa é tudo misturado – relata a professora, mais uma que diz que trabalha o triplo do que trabalharia em uma sala de aula.
A adaptação ao sistema e o temor do retorno presencial
A busca por trabalho para ajudar na renda do lar – muitas famílias foram prejudicadas pela pandemia – impossibilitou alguns alunos de assistir às aulas em tempo real, explica Marisa Angélica Pires Ferreira, 42 anos. Cerca de 25% dos alunos não estão fazendo atividades, diz a professora de matemática da turma 302. Dos que participam das aulas síncronas, poucos ligam a câmera.
— Mas eu gravo e depois eles assistem — relata Marisa.
Isso não tira da docente a convicção da importância do ensino presencial.
— Na sala de aula, a gente consegue perceber o aluno que não está fazendo atividade. Aí a gente vai lá e ajuda. No online, o aluno muitas vezes fecha a câmera, não acessa. Fica mais difícil de ter esse controle — exemplifica ela.
As provas de matemática são por meio de atividades postadas na plataforma. Marisa conta que um dos desafios é fazer o aluno tentar executar os exercícios e não apenas buscar as respostas prontas.
— Eu sei direitinho aquele aluno que está estudando e aquele que está copiando do Google, por exemplo — revela.
Marisa é casada e tem dois filhos, um no primeiro ano do Ensino Fundamental e outro no terceiro ano do Ensino Médio, todos em atividades remotas. Segundo ela, cada um fica numa parte da casa executando suas atividades. Ela, no quarto do casal, o marido, na sala, e os filhos, cada um no seu quarto. A professora recebeu, no fim do ano passado, um chromebook do Estado para trabalhar, mas ela chegou a comprar um computador com recursos próprios, em razão da demora do governo. O equipamento agora está sendo usado pelo filho menor.
Já para Ana Maria Oliveira Decarli, 61 anos, o principal temor ainda é a infecção pelo coronavírus. Professora de artes da turma 302, ela já recebeu a primeira dose da vacina Oxford/AstraZeneca. A segunda está marcada para fim de julho.
— Nossos alunos são de escolas públicas, que têm cadeiras, mesas raspadas, rasgadas. A desinfecção desse material também é complicada. Além do que, os nossos banheiros não têm torneira de passar a mão embaixo para sair água — pondera a professora, argumentando que o aluno de escola pública tem mais dificuldade que o de escola privada.
— Eu penso que o aluno que é mais jovem e vai ter que pegar o ônibus para se deslocar para a escola vai estar bem mais prejudicado do que o aluno que embarca no carro do pai e desce numa escola que tem tapete de higienização, por exemplo. A desigualdade se aprofunda mais — lamenta.
A retomada presencial é vista com preocupação pela docente. Um dos motivos é o fato de precisar preparar dois tipos de aula.
— A gente preparando uma aula online é uma coisa. Para preparar uma aula presencial, tu vai ter que preparar um material até mesmo para alcançar para o aluno dentro da sala de aula — argumenta.
Diz que também foi difícil se adaptar ao sistema de trabalho remoto no início. Durante um bom tempo, as atividades feitas pelos alunos eram entregues fora da plataforma do governo do Estado. O WhatsApp era um dos meios bastante utilizados.
— A questão do retorno dos trabalhos que seriam desenhos, gravações que eles fizeram, edição de poesias, ficaram bem difíceis de enviar pela plataforma — relata a professora.
Choque de realidade
É em meio a ajuda às filhas de forma remota que Vanessa Mariane da Silva Luzia, de 37 anos, exerce a função de supervisora da Escola Borges de Medeiros. Quando GZH esteve na residência da família, as meninas – uma de seis anos no primeiro ano do Ensino Fundamental e outra de nove anos que está no quarto ano, ambas em escolas privada – estavam ainda em atividades remotas. Ficava cada uma num cômodo da casa para as aulas.
— Quando eu tenho reunião, eu fico no quarto. Uma fica na cozinha que é mais próxima de mim, que está se alfabetizando. E a outra fica na sala. É bem complicado — conta Vanessa.
Sobre o retorno presencial, Vanessa vê como um grande desafio manter dois formatos de ensino ao mesmo tempo no sistema público. Compara que, no ensino privado, por exemplo, as aulas ocorrem em tempo real também para os que decidirem permanecer em casa por meio de transmissão em vídeo. No caso da Escola Borges de Medeiros, isso não será possível.
— Para nós, no público (rede pública), nós vamos ter que nos adaptar com a nossa realidade. Nós não temos câmeras nas salas, não temos internet boa para aulas desse tipo. Então, a gente vai ter que se virar — exclama a professora.
Os equipamentos usados por Vanessa durante suas atividades são todos próprios. O trabalho é no celular. O notebook da casa fica com a filha mais velha. A menor faz aulas por meio de um outro celular.
O desafio do retorno presencial
As demandas de Paulo César Schleich, 53 anos, são muitas e vêm de todos os lados: como diretor da Escola Borges de Medeiros, é responsável por receber e encaminhar demandas de todos os lados, seja de professores, alunos ou familiares. Mas próximo do retorno presencial, o foco de sua atividade estava em saber quais os estudantes e professores voltariam e quais os que ficariam em atividades remotas. As condições possíveis sanitárias também foram sendo ajustadas.
Nas conversas com o grupo escolar, percebeu que a falta de condições financeiras de suportar o básico para as aulas remotas foi bem presente em algumas famílias.
— Entre ter que colocar comida na mesa e pagar planos de internet, mesmo o Estado conseguindo o uso gratuito do aplicativo, ficam com a comida na mesa — exemplifica.
Em relação aos professores, segundo o diretor, citando a si mesmo também, houve um período de adaptação aos sistemas existentes para preparação e execução das aulas.
— A gente teve que dar um apoio muito grande para alguns professores para eles conseguirem dar conta e usar os equipamentos e fazer a aula funcionar — relata o diretor, ao lembrar que a volta com o sistema híbrido também precisará de um período de adaptação.
A esposa de Schleich é diretora de uma escola municipal. O trabalho de ambos foi durante a pandemia num pequeno escritório montado para as tarefas diárias. Os horários de atividades ficam em aberto ao longo do dia.
— Turno da noite, por exemplo, além de sábado e domingo. Invade o cotidiano, coisa que em outros tempos a gente conseguia separar muito bem — ressalta.
Em relação aos terceiros anos do Ensino Médio, classifica-os como “uma surpresa agradável” nesse pouco mais de um ano de atividades domiciliares. No ano passado, a adesão era de 70% às aulas remotas. Neste ano, deve ficar em torno de 80%.
— O terceiro ano teve bastante resposta dos alunos. A gente sabe que a preocupação deles é focar na conclusão do Ensino Médio, fazer o Enem, faculdade. Eles demonstraram bastante interesse. E apresentaram um desempenho parecido com o que seria no presencial — conta Schleich.
O diretor admite, no entanto, que o que ficou para trás, de certa forma perdido em termos de conteúdo não absorvido, os alunos terão de preencher ao longo das suas formações.