Uma cama de casal, um guarda-roupas, dois criados-mudos, uma escrivaninha, um computador, uma plastificadora e, pendurados nas paredes, um quadro branco e inúmeros cartazes com anotações sobre aulas da turma A12, do primeiro ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal de Ensino Fundamental Neusa Gouzart Brizola, em Porto Alegre. O ambiente que mistura escola e vida privada é o quarto onde dormem a professora Adriana Paza, 51 anos, e o marido. Desde fevereiro, a sala de aula mudou-se para a casa da docente.
Foi trazendo parte da escola para dentro do seu espaço mais íntimo, que a professora conseguiu produzir as aulas e atender a distância os 19 alunos, todos com seis anos, entre fevereiro e início de maio deste ano. Professora há mais de duas décadas, Adriana chegou à instituição em 2020 e foi docente volante durante o ano letivo. A A12 é sua primeira turma na escola. E, apesar de não ter conversado pessoalmente com os alunos e seus responsáveis, ela fez questão de ligar duas vezes com videochamada para cada um deles. Dois não foram localizados porque as famílias não têm celular ou internet em casa. O objetivo da conversa online foi testar os conhecimentos de cada criança.
A partir destes primeiros contatos, Adriana criou uma “escada da aprendizagem”, que está colada numa das paredes do quarto, com estudantes pré-silábicos 1 (dita uma palavra e a criança desenha em vez de escrever), pré-silábicos 2 (sabe o que vai ler e coloca alguma letra), silábicos (sabe escrever e identificar sílabas, mesmo errando as letras), silábico alfabético (escreve, mas troca palavras) e alfabetizado (que já está preparado para o segundo ano). Quando ela percebe a evolução de um estudante, o troca de nível na escada.
No meio da sala de casa, Adriana montou um cenário para gravar os primeiros vídeos que enviaria às famílias e aos alunos. Conseguiu um tripé emprestado e, mesmo sem conhecimento, passou a gravar mensagens explicativas para a turma.
— Eu era amadora (com tecnologia). Fazia vídeos de cinco minutos e enviava para o WhatsApp dos responsáveis, mas eles chegavam cortados por conta do tamanho. Só descobri o meu erro quando uma mãe me contatou pedindo o fim da explicação. Acabei me enviando um vídeo e percebi que só ia um minuto e meio. Então, passei a fazer vídeos mais curtos. Tem dado certo — revela, empolgada.
No início, a maior dificuldade enfrentada foi ter retorno das tarefas enviadas às famílias via Facebook. A maioria não tinha condições de imprimir as folhas de exercícios e muitas crianças só têm acesso ao celular no período da noite, quando o responsável está em casa. Adriana criou um grupo no Whats apenas com os responsáveis pelos alunos e foi por meio dele que grande parte passou a enviar as tarefas prontas. Por conta da proximidade com os familiares dos estudantes, Adriana tem consciência de que se tornou professora 24 horas por dia.
— O meu horário de trabalho não é muito respeitado. Nem eu mesma respeito porque eu sei que à noite eu vou ter retorno (online) dos alunos. Costumo enviar as tarefas de manhã, mas só recebo respostas durante a noite, que é quando eles olham porque o celular do responsável está em casa. Tenho família que me dá retorno só aos sábados e domingos. Se eu me nego, não tenho retorno — explica.
Na tentativa de uma maior aproximação com os alunos, Adriana passou a fazer uma aula semanal a distância, via WhatsApp, dividindo a turma em dois horários: 10h e 19h. A experiência animou as crianças e a professora. A aula que duraria 40 minutos se tornou de 1h30min de trocas de experiências. Com o retorno das aulas presenciais, porém, no início deste mês, ela optou por continuar com um encontro semanal apenas no período da noite.
— A gente tem que se reinventar. Isso (a pandemia) não vai terminar agora — afirma, Adriana, que, por escolha própria, está fazendo um curso online sobre como usar a tecnologia a favor da educação.
Escola foi uma das primeiras a criar os próprios protocolos contra a covid-19
Em 2020, as aulas presenciais na EMEF Neusa Goulart Brizola duraram apenas um mês. No dia seguinte ao fechamento, a equipe diretiva reuniu-se para estabelecer uma relação com os alunos e as famílias. Criaram, então, um grupo no Facebook da escola, para facilitar o acesso e não perder o vínculo.
— Fomos tentando entender o que era a pandemia. Achávamos que voltaríamos em 15 dias. Nos três meses seguintes, não tivemos nenhuma orientação da Smed, na época. Mesmo pelo Facebook, o acesso das crianças não era o melhor. Resolvemos, então, alcançar material impresso aos alunos. Organizamos apostilas, entre maio e junho, e as repassamos aos estudantes. Começamos também a nos mobilizar para arrecadarmos alimentos à comunidade. Fizemos campanhas. Quando entregávamos o material impresso, mandávamos um kit pedagógico e uma cesta básica para cada família necessitada — conta a vice-diretora Gislaine Marques Leães.
Em junho do ano passado, a prefeitura lançou uma plataforma digital para conectar a comunidade escolar. Os professores precisaram aprender a usá-la, mas os alunos não acessaram porque não tinham dados disponíveis. Nunca conseguimos atingir 50% de conexão dos alunos, pois eles só receberam um pacote de dados gratuito em setembro.
— Foi um grande retrocesso a plataforma digital porque os nossos impressos eram mais inclusivos. Muitos não têm celular, dados móveis e não souberam entrar na plataforma. Toda hora tinha uma família na escola para tentar entender o acesso. E, simplesmente, os vínculos foram diminuindo entre estudantes e escola — recorda a diretora Soraia Dornelles Marques, na rede municipal há 20 anos.
Em setembro do ano passado, sem receber orientação da Secretaria Municipal da Educação (Smed), a direção da escola Neusa Goulart Brizola decidiu construir um plano de contingência para seguir os protocolos de segurança contra a covid-19. O grupo formado por professores, pais e alunos estudou as indicações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e criou as regras sanitárias que hoje estão sendo usadas no retorno às aulas presenciais. As medidas jamais foram avaliadas pela Smed, de acordo com a direção. Entre as ações, a escola comprou termômetros, usados para medição da temperatura de todos que entram no ambiente de ensino, produziu cartazes com orientações, disponibilizou álcool gel em todos os ambientes, reduziu a circulação de pessoas na área, comprou máscaras PFF2 (depois passaram a receber da Smed) e reforçou a limpeza da escola. Mas nem isso tem sido suficiente para conquistar a confiança das famílias de enviarem os filhos à escola. Apenas 12 dos 400 alunos haviam retornado à escola nas duas primeiras semanas desde o recomeço em sala de aula.