Para especialistas da área da educação, a pandemia de coronavírus acelerou desigualdades e mostrou fragilidades da educação brasileira. Imposto às pressas pela condição sanitária, o ensino a distância acabou não chegando a todos os lares.
Na turma A12, por exemplo, pelo menos dois dos 19 alunos não mantiveram qualquer contato com a professora até o início de maio deste ano por não terem um celular ou rede de internet disponível. As famílias também não haviam contatado a escola informando se eles retornariam ao presencial. Situação recorrente em outras turmas da EMEF Neusa Goulart Brizola.
Na rede estadual, nos relatos de alunos e professores da turma 302 da Escola Estadual de Ensino Médio Antônio Augusto Borges de Medeiros , a situação não é muito diferente. Entre 18 estudantes que acompanham com regularidade as atividades, seis não conseguiram conexão à plataforma.
Líder de políticas educacionais do Todos Pela Educação, Gabriel Corrêa acredita que os efeitos do fechamento prolongado de escolas nas crianças e nos adolescentes serão severos e duradouros. Já o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos), Rodrigo Manoel Dias da Silva, acredita que os efeitos da dimensão do ano letivo remoto só serão compreendidos daqui a uma década.
— O primeiro dilema que estamos enfrentando diz respeito à aprendizagem parcial. Ninguém conseguiu acessar plenamente a experiência de formação, da Educação Infantil ao doutorado. A experiência foi parcial. E eu não tenho dúvidas de que para uma geração significativa de crianças, das turmas de alfabetização do primeiro ao terceiro ano, foi um ano letivo perdido — sustenta Silva.
Preferindo ampliar a ótica sobre o ensino remoto, a professora da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Bettina Steren Dos Santos, que também coordena do PPG de Educação e o Grupo de Pesquisa Processos Motivacionais em Contextos Educativos na instituição, destaca outras formas de aprendizagem além da escola.
— Saiu uma pesquisa falando que os alunos vão perder quatro anos da vida em termos de conhecimento. Acho um absurdo falar uma coisa dessas. Eles estão perdendo conteúdos escolares da grade curricular, mas estão aprendendo muitas coisas sobre a vida com a família. Infelizmente, sabemos que há famílias sem condições de manter um ambiente escolar em casa. Mas os pais estão se dando conta da importância da educação para os filhos — pondera.
Infraestrutura e condições de aprendizagem
Professora da Escola Politécnica e do PPGEDu da Escola de Humanidades da PUCRS, Lucia Giraffa acredita que a pandemia descortinou as brechas ou abismos entre a qualidade de infraestrutura e condições de aprendizagem entre os alunos das diferentes regiões do país.
— Diferenças estas alicerçadas pela maneira como a oferta pública de ensino se organizou. Diferenças regionais e locais onde a escola se situa (ligada muito ao extrato econômico-social), a questão da formação docente em dessintonia com o mundo digital, onde se estabeleceu uma cultura digital que nos impele a desenvolver habilidades e competências para poder lidar com este cenário, que já não é novo. Não é à toa que os docentes clamam por formação e, neste contexto pandêmico, perceberam e sentiram no seu dia a dia a falta que esta formação faz para seu fazer docente — justifica.
Para o pedagogo e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) Gregório Grisa, essa formação é essencial para o acompanhamento de turmas grandes como as de Ensino Médio, caso da 302.
— Essa relação professor/aluno no ambiente virtual requer uma familiaridade por parte dos professores com as ferramentas, com a tecnologia. Promover interação entre os alunos, por exemplo, é algo muito desafiador para um professor que teve, num curto período de tempo, que se adaptar a essas tecnologias.
Internet e conectividade
Com relação ao uso da tecnologia em sala de aula, os especialistas são unânimes: é preciso investimento na conectividade na comunidade, seja na escola ou nas casas dos estudantes.
— Já passamos mais de um ano do fechamento de escolas e muitas prefeituras, muitos governos estaduais ainda não fizeram o básico para garantir uma qualidade mínima do ensino remoto. Significa oferecer conectividade aos estudantes, fornecer para aqueles estudantes que não possuem os aparelhos, como celulares, tablets e computador, e fornecer este tipo de aparelho e apoiar os professores nestas iniciativas porque os professores não estavam preparados para lidar com o ensino remoto na Educação Básica, do jeito que a pandemia forçou a todos nós fazermos — pontua Corrêa.
Para Lucia Giraffa, no cenário escolar, a discussão sobre o uso da tecnologia em sala de aula levou tempo para ser encarada como uma necessidade e não um modismo. A pandemia mostrou à comunidade escolar o quanto é importante. Segundo a professora, emergencialmente se fez formações rápidas e intensivas que conseguiram remediar situações. Mas foi um contorno emergencial, sem políticas públicas voltadas para o tema:
— Estamos no terceiro semestre consecutivo (de aulas remotas) e aprendemos muito, mas pouco efetivamente foi feito em termos de ações públicas que garantam acesso à conectividade, que é um novo direito universal. Para acessar a rede temos de ter artefatos (computadores) e temos de ter luz em casa! Do muito que observamos foi um ato corajoso e empreendedor de vários professores usando sistema de mensagens para estar perto dos alunos, sacolas penduradas nas cercas das escola com as atividades impressas, rádios comunitárias enviando atividades e professores esclarecendo dúvidas. Mas tudo foi contorno.
A falta do acesso universal à internet para alunos e professores, diz a doutora em Educação e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) Ana Paula Corti, caracteriza negligência por parte da figura do Estado.
— O quanto do ponto de vista de educação poderia ter sido beneficiado, inclusive com acesso a informações fidedignas. Muitos dos estudantes de escolas públicas acabam tendo somente conexão com aplicativos como WhatsApp, por exemplo — argumenta.
Para Ana Paula, esse formato adotado pelo governo do Estado de liberar internet gratuita apenas para uso da plataforma de estudos é inadequado.
— Educação não se faz dessa forma. A gente não faz educação editando uma cartilha única em que o estudante só consiga ler aquilo na vida. É essencial o acesso ao maior número de informações qualificadas e variadas — defende.
A professora diz que faltaram, pelos governos, adoção de condições mínimas de estudo. Admite que as medidas ideais num momento como esse realmente são difíceis, mas que a organização poderia e deveria ter sido melhor:
— Já se passou um ano de pandemia. Ninguém mais está pego de surpresa. A gente poderia ter começado o ano letivo de 2021 com uma preparação muito superior àquela que a gente tinha antes.
A pandemia também atingiu fortemente as famílias mais pobres com vidas perdidas e, por consequência, com redução na renda familiar, o que acaba refletindo na educação, acredita a doutora em Educação e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) Ana Paula Corti:
— O impacto da pandemia na educação vem também pela questão econômica, vem pela questão ocupacional até chegar no desempenho acadêmico escolar — destaca a professora, ao reforçar a importância do auxílio emergencial na pandemia para evitar, por exemplo, que alunos tenham que abandonar os estudos para ir para o mercado de trabalho.
O doutor em Educação Mateus Saraiva também destaca que "o professorado nunca trabalhou tanto" como na pandemia. Lembra que a maioria do corpo docente estadual é formado por mulheres que, muitas vezes, fazem dupla jornada. E que muitos possuem dificuldades semelhantes às dos alunos.
— Vinte e cinco por cento dos alunos do terceiro ano não têm computador em casa. Mas dos que têm, 50% só têm um. Então, provavelmente o computador que tem em casa vai ser usado por mais pessoas. Que é um pouco das dificuldades que o professorado também tem. Com a questão do salário que não é tão alto em nenhuma rede, mas em especial na estadual, que é a maior delas, acaba não tendo condições para garantir a estrutura adequada em casa — observa.
Acesso à universidade
As dificuldades enfrentadas por alunos de Ensino Médio no acesso à universidade é uma questão já posta que deve ser agravada pela pandemia, reflete a professora da Faculdade de Educação da UFRGS Roselane Zordan Costella. Diz que a pandemia agravou ainda mais esse cenário. Lembra que a presença do professor não só para correção de atividades é fundamental também para um olhar mais profundo sobre o que exatamente esse aluno está aprendendo. Cita ainda a importância da presença dos colegas para troca de experiências.
— Estar fora da escola já é um grande problema. Além disso, porque a escola é um momento de reflexão, é quando ele (o aluno) para, ouve, se inteira, ele se interrelaciona. Muitas vezes ele está cansado e, com o entusiasmo do professor, retoma suas atividades — sustenta Roselane.
Para a docente, se o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tiver o mesmo nível de exigência dos anos anteriores, os alunos do Ensino Médio de escolas públicas vão enfrentar muita dificuldade:
— A criança e o adolescente não absorvem conhecimento, eles constroem. E o processo de construção é muito significativo com a interação do professor. E esses adolescentes não vão ter essa interação.
Especialistas falam sobre o futuro próximo da educação
* No futuro próximo, o curto prazo da educação brasileira vai precisar ter muita atenção a elementos fundamentais: o primeiro deles é fazer, no retorno às atividades presenciais, um acolhimento emocional muito forte com os alunos, com os professores. Trazer elementos de empatia, de afeto, muito diálogo, para a gente reintroduzir e melhorar o clima escolar. Os alunos, depois de tanto tempo afastados das escolas não querem voltar, têm dúvidas para que servem aquelas escolas, se vai querer voltar a frequentar todos os dias. Então, este acolhimento emocional vai ser muito importante. Também será importante identificar em cada aluno quais os problemas de aprendizagem que ele teve durante a pandemia e fazer a recuperação. De forma alguma, este aluno não pode prosseguir na sua vida sem aprender os conceitos. Além disso, é preciso sair de um modelo engessado e trazer um que engaje os alunos. A base nacional comum curricular traz isso muito forte, mas é preciso ensinar de forma mais interdisciplinar. Onde os jovens tenham matérias ou disciplinas eletivas, fortalecendo o protagonismo juvenil. Precisamos fazer as escolas brasileiras muito mais interessantes do que a escola que vemos hoje.
Gabriel Corrêa, líder de políticas educacionais do Todos Pela Educação
* Todos juntos temos que trabalhar para termos uma sociedade melhor. Nós, que estamos nas universidades, podemos ajudar as escolas a saírem desta situação. O governo precisa desenvolver políticas públicas voltadas à educação. A pandemia incentivou ainda mais a falar sobre a educação no Brasil. Uma coisa que é fundamental: tem que ouvir os professores, os gestores, as famílias e as crianças. Os professores precisam de apoio para trabalhar, muitos fazem tudo com o próprio dinheiro. A grande questão que estamos vivendo neste momento é a vacina. Como estão mandando os professores para dentro da sala de aula se eles não foram vacinados? Isso é uma política pública que não está dando conta do recado. Também seria interessante que a experiência com tecnologia implicasse no sistema educacional. Que as políticas e a gestão apoiassem.
Bettina Steren Dos Santos, professora da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), coordenadora do PPG Educação e do Grupo de Pesquisa Processos Motivacionais em Contextos Educativos na instituição
* A escola precisará neste retorno se preparar para enfrentar as questões psicossociais. O primeiro levantamento a ser feito no retorno dos estudantes seria verificar as condições emocionais que eles retornaram à escola. O que eles viveram neste período vai condicionar, consideravelmente, o planejamento da escola, das atividades oferecidas, do modo como a instituição se posiciona na relação entre família e escola para considerar inclusive novos projetos, novas formas de intervenção. Inclusive, para encaminhar ao poder público municipal e estadual para que possa demandar políticas públicas baseadas nestas evidências.
Rodrigo Manoel Dias da Silva, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos).