Passados 123 anos de sua primeira sessão, o cinema segue firme e forte deixando pelo caminho, em diferentes épocas, sombrios vaticínios quanto a seu futuro. Em 2018, plataformas de streaming se materializaram como a ameaça da vez na briga para tirar da sala escura a primazia do lançamento de bons filmes. Três dos títulos mais badalados da temporada, por exemplo, são exclusivos da Netflix. Mas o bom cinema pulsa com enorme vitalidade fora das ondas do streaming, oferecendo aos espectadores a imorredoura sensação da imersão coletiva que não se repete em nenhuma outra plataforma – como bem sabe quem assistiu a Bohemian Rhapsody e aplaudiu e chorou como se estivesse dentro de um show da banda Queen. Exemplos como esse estarão sempre em cartaz, em filmes que levam o espectador a conhecer mais sobre sua realidade e a de seu país ou a percorrer um reino fictício com o super-herói da hora.
Depois de consolidar sua força na produção de seriados, a plataforma de streaming Netflix voltou seus olhos para o cinema. Começou bem, em 2015, com o drama Beasts of No Nation e emplacou na disputa da Palma de Ouro do Festival de Cannes filmes de renomados diretores, como Okja, de Bong Joon Ho, e The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach. Em 2018, a Netflix tirou valiosas cartas da manga. Barrada em Cannes, em razão da exigência de que seus filmes fossem lançados nos cinemas, apresentou no Festival de Veneza três joias assinadas por grandes cineastas, todas disponíveis no seu catálogo mundial. Ganhou o Leão de Ouro e a aclamação da crítica com Roma, drama memorialístico em que Alfonso Cuarón volta a sua infância no México de 1970 – para se habilitar à disputa do Oscar, Roma estreou simultaneamente em cinemas de mais de 40 países.
Também selecionado para a competição principal no certame italiano, The Ballad of Buster Scruggs é uma antologia com seis histórias em que os irmãos Ethan e Joel Coen visitam o Velho Oeste, com registros que vão da comédia ao drama. Ambas as produções figuram nas listas mais prestigiadas de melhores filme de 2018.
Já O Outro Lado do Vento, o mítico filme perdido do gigante americano Orson Welles (1915 – 1985) ressurgiu depois de 40 anos graças ao investimento da Netflix para sua finalização. Ilustrativa do genialidade visionária do excêntrico Welles, a trama sobre a saga de um veterano cineasta para dar a volta por cima em Hollywood chegou à plataforma acompanhada do fundamental documentário Serei Amado Quando Morrer, com os bastidores de sua caótica realização.
Para ver e ouvir
Dois grandes ídolos da música pop brilharam nos cinemas em 2018: o saudoso Freddie Mercury (1946 – 1991), reencarnado no ator Rami Malek, em Bohemian Rhapsody, e a bem viva e talentosa Lady Gaga, que se saiu muito bem como protagonista de Nasce uma Estrela. Malek e Lady Gaga foram indicados a melhor ator e atriz no Globo de Ouro. Ambos os filmes têm como ponto forte suas trilhas sonoras. Bohemian Rhapsody, de Bryan Singer, passa em revista clássicos do Queen. Nasce uma Estrela, assinado e protagonizado por Bradley Cooper, segue na toada country-rock e valeu à cantora e agora atriz uma indicação ao Globo de Ouro de canção original, com Shallow.
Templos de resistência
Cinéfilos de outras paragens se impressionam com a oferta de espaços alternativos para exibição de filmes em Porto Alegre. Dois deles, reconhecidos nacionalmente pela excelência de suas programações, comemoraram datas redondas. A Cinemateca Capitólio celebrou os 90 anos do majestoso prédio que a abriga, na esquina da Demétrio Ribeiro com a Borges de Medeiros. Fechou o ano de lançamentos e ciclos temáticos com uma concorrida mostra de filmes africanos. E o CineBancários, na ladeira da General Câmara, completou 10 anos de dedicação ao cinema brasileiro e latino-americano.
Apagar das luzes
Foi o ano da despedida de grandes mestres do cinema, como o italiano Bernardo Bertolucci, aos 77 anos, diretor de filmes referenciais como o polêmico Último Tango em Paris e o oscarizado O Último Imperador. Entre outros, partiram também o tcheco Milos Forman, 86, autor de obras como Um Estranho no Ninho, Hair e Amadeus; o italiano Vittorio Taviani, 88, que junto com seu irmão Paolo assinou dramas humanistas como Pai Patrão; o brasileiro Roberto Farias (O Assalto ao Trem Pagador e Pra Frente, Brasil), 86, e o inglês Nicolas Roeg (Inverno de Sangue em Veneza e O Homem Que Caiu na Terra), aos 90 anos.
Centenário de Bergman
Em 14 de julho celebraram-se os cem anos do nascimento de Ingmar Bergman, diretor sueco que ajudou a elevar o cinema ao patamar de grande arte, com filmes que iluminam as mais densas inquietações existenciais — em suma, as mesmas encaradas pelo realizador ao longo da vida. Descompassos amorosos da juventude, conflitos da alma pautados pela religiosidade, fissuras das relações afetivas, reflexões acerca de tempo e memória. São temas presentes em dezenas de obras-primas, como O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, Persona, Gritos e Sussurros e Fanny & Alexander – sua vasta filmografia, com mais de 50 títulos, foi relançada em DVD no Brasil.
Cinéfilos de Porto Alegre puderam assistir ao longo do ano diferentes retrospectivas de filmes marcantes do diretor, em espaços como a Sala Redenção e a Cinemateca Capitólio — nesta, foi realizada uma sessão de Persona com presença de Helen Beltrame-Linné, brasileira que, entre 2014 e 2017, dirigiu a Fundação Bergmancenter, na ilha de Faro, na Suécia, refúgio onde o mestre viveu, trabalhou e morreu, em 2007, aos 89 anos.
Ano bom para o cinema gaúcho
Como tem sido regra, a produção de cinema do Rio Grande Sul deu em 2018 nova amostra de sua pujança e diversidade, apesar da ausência de políticas locais mais atuantes para o setor audiovisual no Estado. Foram mais de 13 longas lançados no circuito comercial, entre eles os dois que estrearam juntos em dezembro, assinados por diretores de diferentes gerações: Tinta Bruta, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, premiado no Festival de Berlim e grande vencedor do Festival do Rio, e Rasga Coração, de Jorge Furtado. Entre outros destaques, estão os documentários O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes (primeiro longa comercial dirigido por uma mulher negra no Brasil em 34 anos), e A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro, de Leo Garcia e Zeca Brito, o drama juvenil Yoñlu, de Hique Montanari, e o épico histórico A Cabeça de Gumercindo Saraiva, de Tabajara Ruas. A expectativa para 2019 é promissora. Pelo menos 10 longas aguardam lançamento circulando por festivais, e outros tantos estão em finalização.
Pelas beiradas do circuito
Mais um ano de produção brasileira intensa e diversa e o drama se repete: um circuito comercial hostil ao produto nacional torna quase invisíveis filmes de grande qualidade. A variedade de títulos em 2018 passa por robustos dramas familiares (Benzinho e Ferrugem), ótimas cinebiografias (de Chacrinha em O Velho Guerreiro e de Éder Jofre em 10 Segundos para Vencer), eficientes filmes de gênero (As Boas Maneiras e O Animal Cordial), painéis sociais potentes (Baronesa e Arábia) e documentários que escancaram o preconceito racial no país (Auto de Resistência) e a cisão ideológica cada vez mais profunda (O Processo).
Melhores da temporada
As mais prestigiadas publicações especializadas em cinema do mundo divulgaram suas listas de melhores do ano. Entre outros filmes das seleções lançados no Brasil, estão Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson, e Em Chamas, de Chang-Dong Lee, ainda em cartaz na Cinemateca Capitólio. Passaram por aqui também filmes como Os Garotos Selvagens, de Bertrand Mandico (dentro da programação do Fantaspoa), Verão, de Kirill Serebrennikov. Zama, de Lucrecia Martel, Na Praia à Noite Sozinha, de Hong Sang-Soo, A Casa que Jack Construiu, de Lars von Trier, e Você Nunca Esteve Realmente Aqui, de Lynne Ramsay.
Blockbuster com estofo
Grande aposta da Marvel para o começo da temporada cinematográfica de seus super-heróis, Pantera Negra foi bem além do polpudo faturamento recorrente no gênero (arrecadou US$ 1,3 bilhão apenas em ingressos, fora outras plataformas e produtos relacionados ao personagem). É o que se chama de blockbuster “com penso”, sucesso comercial respaldado pela boa avaliação dos críticos e que também iluminou um tema muito questionado em Hollywood nos últimos anos, o da representatividade racial. O diretor Ryan Coogler é negro, como são negros os talentosos atores protagonistas, entre eles Chadwick Boseman, no papel do super-herói africano e, Michael B. Jordan, seu carismático antagonista. A Marvel não tem do que se queixar de 2018. Forrou o caixa, entre outros títulos, também com mais uma aventura da sua seleção de craques, em Vingadores – Guerra Infinita (US$ 2 bilhões). Enquanto isso, a rival DC, pelo menos não decepcionou (mais uma vez) seus fãs com Aquaman, que passou com dignidade a régua dos super-heróis nos cinemas em 2018.
Um grande personagem
Esta retrospectiva começa destacando o papel da Netflix no cinema em 2018 e volta à plataforma para indicar que um dos melhores filmes do ano chegou ao Brasil direto na plataforma. Prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, Lazzaro Felice, da italiana Alice Rohrwacher, apresenta um personagem fascinante, vivido por Adriano Tardiolo. A diretora faz a releitura do mito bíblico de Lázaro na fantástica jornada de um ingênuo e bondoso rapaz por diferentes tempos. O tom de fábula é costurado por uma aguda crítica social, que ilumina as relações de poder e submissão em um pobre vilarejo.