Força da natureza. Divisor de águas. Gênio. Visionário. Superlativos transbordam no documentário A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro para dimensionar a importância do jornalista gaúcho que saiu de Passo Fundo e consagrou-se no Rio de Janeiro jogando gasolina na fogueira das vaidades que iluminava a imprensa e a vida cultural do Brasil sob a ditadura militar. Usualmente fartos em tributos laudatórios, elogios de tal monta vestem muito bem no biografado pelos diretores Leo Garcia e Zeca Brito. E são contrabalançados por aqueles (poucos, diga-se) que lembram de um Tarso sem caráter, irresponsável, mulherengo, alcoolista e perdulário, entre outras impressões que embaralham o homem e o mito que deixou marcas em amigos, inimigos, afetos e amores.
Tarso de Castro morreu em 1991, aos 49 anos, vitimado pela cirrose hepática. Das suas três grandes paixões destacadas no filme, a bebida foi a fatal. Com as outras duas, o jornalismo e as mulheres, viveu fortes emoções. À frente do semanário carioca O Pasquim, que fundou em 1969, Tarso cravou um marco no jornalismo independente reunindo a nata da escrita e do traço nacionais – entre outros, Paulo Francis (1930–1997), Sérgio Cabral, Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar e o também gaúcho Luiz Carlos Maciel (1938–2017). A chamada patota do Pasquim desafiou, com humor, entrevistas antológicas, provocação e jornalismo puro sangue o período mais pesado da censura. Sobre as mulheres, Tarso enroscou-se com muitas beldades: da gaúcha Barbara Oppenheimer, com quem foi casado por quatro anos, à estrela americana Candice Bergen, passando pela diva tropical Leila Diniz.
Garcia e Brito criaram um dispositivo irreverente para retratar esse tipo nada convencional. Colocaram mais de 30 entrevistados, entre eles ex-parceiros de Pasquim e outras publicações lançadas por Tarso, amigos como Caetano Veloso, familiares e namoradas, a conversar entre si, por telefone e em mesa de bar. Brotam histórias saborosas sobre o “homem que não podia ficar velho”, que viveu e trabalhou com o pé no acelerador, despejando sobre a máquina de escrever, como dizia, 75 quilos de músculos e fúria – mas que na melancólica reta final amargou a consciência de separar-se cedo demais do filho pequeno (o hoje apresentador João Vicente de Castro).
Ziraldo, desafeto de Tarso, não quis participar do filme. Millôr Fernandes, inimigo feroz do gaúcho, é citado como um dos articuladores do golpe que apeou Tarso d’O Pasquim – ele viveria outro grande momento na Folha de S. Paulo, nos anos 1970, quando criou o suplemento Folhetim e chegou a ser o colunista mais lido e influente do Brasil. Os diretores fazem bom uso de material de arquivo, como a pouca conhecida atuação de Tarso na TV, como nos impagáveis papos etílicos com Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque e Caetano – o documentário recupera ainda o piloto nunca exibido de um anárquico programa de entrevistas em que Tarso recebe Vinicius de Moraes para entornar uma garrafa de uísque.
Outra boa sacada é espelhar a atmosfera da época e a personalidade vulcânica de Tarso em filmes como Todas as Mulheres do Mundo (1966), de Domingos Oliveira, e A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha. O tributo dos jovens diretores é criativo e generoso. A eles, Tarso ergueria um brinde.
A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro
De Leo Garcia e Zeca Brito.
Documentário, Brasil, 2017, 90min, 14 anos.
Estreia hoje no Espaço Itaú 3 (13h30) e na Sala Eduardo Hirtz (19h).