No princípio, é o verbo. Recitando um trecho do Gênesis com a criação da Torre de Babel, possível alegoria à polifonia de tipos e vozes inerentes ao ofício do ator, Paulo José surge apenas com seu inconfundível vozeirão sobre a tela preta. Em seguida, o vemos sempre de costas, a figura real, em registros de 2017, e os grandes personagens que viveu em mais de 50 anos de carreira.
Com esse inventivo recurso de montagem, os diretores Gustavo Ribeiro e Rodrigo de Oliveira apresentam o vigoroso tributo na forma de documentário Todos os Paulos do Mundo, em cartaz a partir desta quinta-feira (10) em Porto Alegre.
O filme constrói-se como um amplo mosaico da trajetória do ator gaúcho, nome fundamental da dramaturgia brasileira no cinema, no teatro e na televisão. Sobre as imagens de 30 dos mais de 50 filmes em que atuou, segmentos de novelas, séries e especiais de TV e lembranças do começo de tudo sobre o palco, quem conta a história é o próprio Paulo José.
Os diretores tiveram dois encontros com o ator. No dia 20 março de 2017, quando comemorou seus 80 anos, e quatro meses depois. Optaram por não gravar entrevistas, apenas sua potente expressão diante da câmera e cenas domésticas. Paulo convive com a doença de Parkinson há 30 anos. O que se ouve no filme são depoimentos que registrou ao longo dos anos e textos que escreveu, lidos por parceiros que ilustram sua longevidade artística, de Fernanda Montenegro a Selton Mello.
– Ele está muito bem de saúde, mas o Parkinson deixou sua voz tímida. Às vezes, precisa de um esforço muito grande para falar – explica Ribeiro. –Tínhamos vasto material de arquivo, e nossa proposta nunca foi sustentar o filme com entrevistas, nem apresentar o Paulo de forma autorreferencial, mas fazer com ele um recorte importante do cinema brasileiro.
Ribeiro e Oliveira promovem um desfile dos trabalhos mais simbólicos do ator, costurados por uma narração biográfica que dialoga com as imagens de grandes filmes. Em uma cena que divide com sua ex-mulher Dina Sfat (1938-1989), por exemplo, seu personagem lê uma carta, mas o que se ouve é Paulo José falando de seu nascimento em Lavras do Sul, em 1937, da paixão pelo cinema despertada no cine Avenida de Bagé, cidade onde foi estudar, aos 10 anos, no colégio do padres salesianos – ambiente no qual foi picado pelo desejo de ser outro sobre o palco
No correr do documentário, Paulo José e seus amigos-narradores lembram do seu gosto pela lida no campo e do curso na faculdade de Arquitetura da UFRGS, abandonado quando a dedicação ao Teatro de Equipe, grupo que fez história na Capital, confirmou o caminho a ser seguido, abrindo-lhe as portas para a prestigiada companhia Teatro de Arena, em São Paulo.
A história pessoal segue em paralelo com trechos de clássicos do cinema nacional, assinados por nomes como Joaquim Pedro de Andrade, com quem fez seu primeiro filme, O Padre e a Moça (1966), e também Macunaíma (1969) e o amigo da vida toda Domingos Oliveira, citado com, entre outros, Todas as Mulheres do Mundo (1966) e Juventude (2008). Aparecem ainda cenas de trabalhos com Hector Babenco, Luís Sérgio Person, Walter Hugo Khouri e os também gaúchos Sérgio Silva e Jorge Furtado. Embora o foco no cinema seja mais evidente, são lembrados momentos marcantes do ator na TV Globo: a série Shazan, Xerife e Cia. (1972), a minissérie O Tempo e o Vento (1985), da qual foi também diretor, e as novelas Roda de Fogo (1986) e Por Amor (1997).
– No teatro, os registros são mais raros e nos concentramos no começo de tudo, com o Teatro de Arena – destaca Ribeiro – Encontramos um filme Super-8 dele dirigindo a Fernanda Montenegro (em É..., de Millôr Fernandes).
Ribeiro conta que o homenageado teve participação ativa no filme:
– Ele deu contribuições importantes, com apontamentos muito pertinentes e de modo algum relacionados a vaidade, e sim questões técnicas e narrativas propostas por quem entende muito de cinema e do processo de montagem.
A horas tantas, Paulo José parafraseia um poema de Mario Quintana ao fazer um emotivo balanço de vida: “Os amigos são poucos, os livros convidativos, eu mesmo preparo o chimarrão para meus fantasmas”. Faz uma pausa, e mostrando o grande ator que sempre será, continua, agora em tom de exaltação: “Mentira, não sou tão solitário assim, nem tão dramático”.
Todos os Paulos do Mundo
De Gustavo Ribeiro e Rodrigo de Oliveira
Documentário, Brasil, 2017, 88min.
Estreia nesta quinta (10) no CineBancários, às 17h, e na Sala Norberto Lubisco (Casa de Cultura Mario Quintana), às 19h15min.