Barrada em maio no Festival de Cannes, a Netflix apresentou em setembro no Festival de Veneza três joias que mostram não ser nada modesto o projeto da gigante do streaming para tornar o cinema tal qual conhecemos não mais atração exclusiva da tela grande e da sala escura – embora seja esse o melhor espaço para contemplar as obras assinadas por Orson Welles, Alfonso Cuarón e os irmãos Ethan e Joel Coen.
O Outro Lado do Vento, o filme perdido de Welles (1915 – 1985), ressurgiu depois de 40 anos graças ao investimento da Netflix para sua finalização. Entrou primeiro no cardápio da plataforma, acompanhado pelo documentário Serei Amado Quando Morrer, que detalha o périplo do diretor na conturbada empreitada – ambos justificam a fama de Welles como gênio visionário e excêntrico.
Roma, o longa memorialista de Cuarón, estreia na Netflix em 14 de dezembro. Venceu o prêmio maior de Veneza, o Leão de Ouro, vem sendo aclamado como um dos melhores filmes de 2018 e representa o México na disputa pela indicação ao Oscar de produção estrangeira – com chances de avançar em melhor filme e direção. Muito se falará dele ainda.
The Ballad of Buster Scruggs, dos Coen, entrou há pouco na programação da plataforma, também passando reto pelo circuito de exibição convencional. É uma antologia com seis histórias em que os diretores revisitam o faroeste – como no remake de Bravura Indômita (2010) –, destacando cânones imagéticos e narrativos consagrados por mestres do gênero, em especial John Ford e Sergio Leone: tem o cantor pistoleiro mais rápido do Oeste (Tim Blake Nelson), o bandoleiro condenado à forca (James Franco), a melancólica dupla de saltimbancos (Harry Melling e Liam Neeson) que narra passagens de Shakespeare e Percy Shelley em poeirentos grotões, o garimpeiro solitário (Tom Waits), caravanas de pioneiros cruzando território hostil e viajantes a bordo de uma fantasmagórica diligência.
Os Coen desenvolveram The Ballad of Buster Scruggs ao longo de 25 anos, pensando nele como um longa-metragem. Se o formato de antologia não tem hoje o apelo comercial de outrora, a Netflix entrou em campo para viabilizar a produção em seu formato original. Os Coen, enfim, tiram o projeto da gaveta e o realizaram com energia e inspiração.
O resultado é, conforme o gosto, divertido, dramaturgicamente intenso e visualmente exuberante. A fotografia é assinada pelo francês Bruno Delbonnel, profissional versátil que traz no currículo trabalhos que vão de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) a títulos de Aleksandr Sokurov e Tim Burton — ele trabalhou com os Coen no curta que integrou o projeto coletivo Paris, Te Amo (2006) e no longa Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum (2014).
Os seis episódios são independentes – a presença da morte é uma constante, pois, como avisa o cartaz do longa-metragem, “histórias vivem para sempre, pessoas não” – e avançam em diferentes registros, da comédia musical ao conto moral sombrio, da paródia à fábula gótica, dos majestosos planos abertos que apequenam os caubóis nas vastas pradarias ao confinamento dos personagens numa cabine puxada por cavalos.
A violência gráfica e o humor sarcástico, tão característicos dos Coen, encontram nesses contos em torno de marcos fundadores de uma nação (coragem, ambição, ganância, amizade, perseverança) alguns interessantes paralelos com os tempos atuais. O denso e amoral capítulo estrelado por Liam Neeson, por exemplo, espelha a dura batalha travada pelo artista, digamos, mais empenhado em um mundo onde o entretenimento banal mostra mais apelo junto ao público.