O Leão de Ouro entregue a Roma, filme de Alfonso Cuarón produzido pela Netflix, colocou mais lenha na discussão sobre a forma como os grandes festivais do circuito cinematográfico devem acolher as produções originais das plataformas de streaming. Na contramão do Festival de Veneza, que consagrou um longa que não será exibido nos cinemas, o Festival de Cannes exigiu, em maio, que os filmes da competição tivessem estreia local convencional. Em represália, a Netflix tirou todos os seus títulos do evento.
De acordo com um comunicado assinado por três associações europeias, o prêmio entregue ao filme de Cuarón não só transforma a tradicional premiação italiana em "veículo de marketing para a plataforma de streaming norte-americana", como dificulta a vida dos realizadores europeus. Assinada em conjunto pela Associação Nacional de Autores de Filme da Itália, pela Federação Italiana de Cinema de Ensaio (FICE) e pela Associação Católica de Exibidores (FICE), diz a carta: "O Leão de Ouro, um símbolo do Festival de Veneza, que sempre foi financiado com recursos públicos, é um patrimônio dos espectadores italianos; o filme que merece esse título deve estar ao alcance de todos, nos cinemas, e não exclusivamente para assinantes da plataforma norte-americana".
Antes mesmo de ganhar a estatueta, Cuarón havia se pronunciado sobre a polêmica. O diretor mexicano, que já ganhou o prêmio principal do Oscar com o filme Gravidade (2013), lembrou a dificuldade de divulgar e exibir filmes que fujam da lógica comercial.
– Sabemos da complexidade da distribuição de filmes. Sabemos muito bem que um drama de língua espanhola, indígena, preto e branco e não um filme de gênero teria muita dificuldade em encontrar espaço para ser exibido nos cinemas. Nem falo em ter sucesso, mas espaço. É por isso que é importante ter a Netflix. Vamos conviver com esse formato. É importante que as duas coisas não entrem em conflito. É só uma questão de encontrar algo que funcione – disse o diretor em entrevista ao site Deadline.
Alberto Barbera, diretor do Festival de Veneza, reafirmou a decisão do festival italiano:
– Não vejo razão para excluir da competição um filme de Cuarón ou dos Irmãos Coen só porque foi produzido pela Netflix. Na França, as leis são diferentes, mas felizmente não temos esses problemas por aqui.
Sheron Neves, mestre em Estudos Televisivos, professora de Transmídia da ESPM e doutoranda em Comunicação, afirma que tentar frear o reconhecimento a conteúdos de plataformas de streaming seria como tentar barrar aplicativos de transporte ou de compartilhamento de quartos – novidades que fazem sucesso entre o público e causam mal-estar em quem aposta em formatos já consolidados.
– Independentemente da maneira como o filme foi produzido, ele segue sendo um filme. Estamos em uma era em que a economia é mais ágil, e antigas indústrias estão passando por processos disruptivos, mas os critérios de julgamento seguem os mesmos. Roma foi escolhido pelo júri porque tinha qualidade, não por ter sido exibido ou não em salas físicas de cinema – argumenta.
Entenda a polêmica:
- 2015 - A Netflix lança seu primeiro longa de ficção, Beasts of no Nation.
- 2016 - Plataforma produz a sequência de O Tigre e o Dragão (2000), de Ang Lee. O Tigre e o Dragão: A Espada do Destino, dirigido por Woo-Ping Yuen, foi considerada uma continuação desnecessária pela crítica.
- 2017 – The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach, e Okja, de Bong Joon Ho, disputam a Palma de Ouro em Cannes, quando o festival ainda não havia rompido com a plataforma.
- 2018 – O documentário Ícaro ganha o Oscar na categoria. Em maio, Cannes exige que longas sejam exibidos no circuito comercial, e a Netflix retira seus filmes da competição. Toronto exibe Legítimo Rei, produzido pela Netflix, na sessão de abertura. Em Veneza, Roma conquista o Leão de Ouro.