Um grupo de mulheres se reúne para concretizar um assalto milionário tendo como modelo os planos de um golpe anterior idealizado por um grupo de homens. Embora essa sinopse pudesse muito bem estar em um texto sobre o recente e decepcionante Oito Mulheres e um Segredo, ela é, na verdade, a premissa de um filme muito mais rico e bem realizado: As Viúvas, um vigoroso neo-noir dirigido pelo diretor Steve McQueen.
A princípio a ideia de um diretor como McQueen, famoso pelo senso estético sofisticado e pela ambição dramática sólida de filmes como Hunger, Shame e o oscarizado 12 Anos de Escravidão, assumir a condução de um thriller de assalto parece inusitada. Mas foi o próprio realizador inglês quem perseguiu o projeto, dizendo-se fã da primeira versão da história, escrita por Lynda La Plante primeiramente como uma série de sucesso para a TV britânica nos anos 1980 e mais tarde transformada pela própria autora em um romance de suspense. Para ajudá-lo a dar forma ao roteiro adaptado, McQueen chamou Gillian Flynn, escritora best-seller autora de Garota Exemplar, tanto o livro como o roteiro para a adaptação de David Fincher.
Na trama desta nova adaptação, em cartaz na Capital, Viola Davis vive Verônica Rawlings, mulher de Harry (Liam Neeson), que conseguiu um padrão de vida bastante confortável planejando ao longo de 30 anos alguns dos mais bem-executados roubos de valores em Chicago. Logo no começo, Harry e seus parceiros de crime, Florek (Jon Bernthal, de Justiceiro), Carlos (Manuel Rufo-Garcia) e Jimmy (Coburn Goss), realizam um grande trabalho mas são emboscados pela polícia. Na tentativa de fuga, o furgão com os quatro homens explode.
Veronica recebe, no funeral do marido, um envelope com a chave de um cofre de penhor, entregue a ela de acordo com planos feitos por Harry para o caso de morrer em um serviço. No cofre, está um caderno com anotações e planos para várias das operações de Harry, com nomes, possíveis alvos, colaboradores. Há também uma chave de um depósito e os planos detalhados de um último roubo não realizado. Ela procura então as viúvas dos ex-parceiros de seu marido para convencê-las de que elas próprias devem fazer o assalto não realizado. Duas delas aceitam de cara: Linda (Michelle Rodriguez, de Lost) e Alice (Elizabeth Debicki, da série inglesa O Gerente da Noite). A elas se juntará mais tarde Belle (Cynthia Erivo), uma conhecida de Linda.
Ao redor do quarteto, gravitam personagens que ajudam a montar um panorama social rico: os irmãos criminosos Jamal e Jatemme Manning (respectivamente Brian Terry Henry, de Atlanta, e Daniel Kaluuya, de Corra!), donos originais do dinheiro roubado por Harry e perdido no incêndio da van; e o político Jack Mulligan (Collin Farrell), concorrendo contra Jamal à vaga de vereador que seu pai, Tom (Robert Duvall), ocupou por décadas.
As Viúvas, o livro de Lynda La Plante, é um thriller genérico escrito com uma prosa pouco inspirada e que ultrapassa o limite do terrível, às vezes, mas tem em seus méritos a atenção aos detalhes nas cenas de planejamento do roubo, alguns bons e cortantes diálogos (traindo sua origem primeira, como roteiro para uma minissérie) e as boas interações entre as quatro mulheres. O roteiro de McQueen e Flynn consegue elevar esse material original, torná-lo mais ágil e dotá-lo de um ar ao mesmo tempo clássico e contemporâneo.
A transposição da história da Londres dos anos 1980 para a Chicago contemporânea permite que McQueen agregue ao filme algumas obsessões temáticas do noir tradicional: violência brutal mesmo quando não é explícita; a preparação e os percalços de um plano de assalto; a violência das gangues criminosas, usem elas chapéus e ternos italianos ou casacos de marca streetwear como o sombrio Jateme vivido por um ótimo Kaluuya; e, por fim, a espraiada corrupção política que parece tornar-se inevitável à medida que ocorre a expansão urbana de uma grande metrópole.
A mudança de cenário leva a alterações nos eventos básicos da trama e a sutis transformações na própria identidade das protagonistas. Linda, uma estereotipada latina sangue-quente no livro, se torna uma mãe acossada por dívidas e tentando criar os dois filhos. Alice, bem mais cabeça de vento padrão na obra original, se revela mais cheia de nuances e tem um arco mais bem realizado no filme. As mudanças permitem também a McQueen fazer algo fundamental em qualquer narrativa ambiciosa: costurar histórias individuais em um pano de fundo social e político contundente.
No livro e na série original, a líder do grupo se chama Dolly e é uma mulher branca. A escolha de Viola Davis para o papel não apenas põe uma atriz extraordinária à frente do elenco afinado (com a exceção de Collin Farrel, arranhando um dos sotaques mais estranhos vistos num filme neste ano) também cria a circunstância de um casal principal interracial, com desdobramentos que abordam a crescente atmosfera de tensão étnica dos Estados Unidos contemporâneo. É também flagrante o paralelo entre a família criminosa ávida e recém-chegada representada pelos Manning e os brancos corruptos enraizados na política oficial, como os Mulligan.
As Viúvas é, assim, um filme que, como o grupo formado por Viola, reúne elementos inusitados e consegue, no fim, tirar deles seu melhor até formar um grupo coeso maior do que a soma de suas partes.