Uma Porto Alegre degradada, hostil e indiferente é encarada, no filme Tinta Bruta, por um jovem introvertido e socialmente deslocado, que só rompe seu casulo letárgico diante da câmera do computador. É quando Pedro vira GarotoNeon e faz performances eróticas para anônimos que lhe retribuem com uns trocados e a sensação de, ali com o corpo pintado em cores fosforescentes, ser o dono do mundo. Quem literalmente brilha como Pedro é Shico Menegat, 24 anos, em seu primeiro trabalho como ator.
O vigoroso trabalho de Shico é o motor de Tinta Bruta, segundo longa-metragem dos porto-alegrenses Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, que entra em cartaz nesta quinta-feira (6) nos cinemas precedido de significativos triunfos. No começo do ano, os diretores ganharam no Festival de Berlim os prêmios Teddy, como melhor filme queer (com temática LGBTQI+) entre todos os títulos em competição, e Cicae, entregue ao vencedor da mostra paralela Panorama pela associação de exibidores independentes da Europa. No mês passado, Tinta Bruta foi consagrado no Festival do Rio com quatro troféus de peso: melhor filme, roteiro, ator (Shico) e ator coadjuvante (Bruno Fernandes).
O reconhecimento para além do nicho do chamado cinema queer reforça os méritos de Tinta Bruta. As questões de identidade e liberdade sexuais estão presentes, mas correm junto a uma crônica de tom melancólico sobre a solidão, o desajuste e a falta de perspectiva que travam a vida de Pedro fora de seu quarto.
— Lidamos com política diariamente, pensamos nossos filmes como um cinema político, mas sem nunca abrir mão das questões artísticas e estéticas — diz Filipe. — Em Berlim, as justificativas dos prêmios ressaltaram, independentemente da temática queer, as qualidades do filme. Foi o mesmo no Rio, uma avaliação puramente cinematográfica. A gente fica muito feliz, significa que estamos escolhendo um caminho interessante tanto nas questões estéticas e narrativas quanto na visibilidade de figuras que, historicamente, nunca tiveram muita variedade na representação.
Marcio complementa:
— O que nos motiva e inspira é o amor ao cinema, é construir personagens, contar histórias.
Visibilidade assegurou lançamento internacional
A sintonia entre os dois realizadores é plena. Na entrevista, um completa a fala do outro. Filipe, 30 anos, e Marcio, 34, se conheceram no Curso Superior de Produção Audiovisual da PUCRS. Sócios na produtora Avante Filmes, começaram a assinar curtas em conjunto, estrearam no longa com Beira-Mar (2015) e, entre outras produções, apresentaram a série de TV O Ninho (2016). A condução segura que exibem em Tinta Bruta é um passo largo na trajetória dos realizadores, do domínio dos aspectos técnicos e narrativos à direção uniforme do ótimo elenco, que combina os novatos com nomes conhecidos da dramaturgia gaúcha.
— Logo que a gente se conheceu, entre as afinidades pessoais que tínhamos, pareceu muito lógico também trabalhar juntos — conta Filipe. — Nosso processo na vida e no trabalho é muito colaborativo. Como investimos bastante tempo na pré-produção, temos muito claro o que fazer quando chegamos ao set. A chave de tudo, entre a gente e com o elenco e a equipe, é a conversa.
Em Tinta Bruta, Pedro está acuado pelo processo de agressão que responde. Reagiu de forma violenta ao bullying sofrido na faculdade. E fica sozinho no apartamento em que vive, no centro da Capital, quando sua irmã vai trabalhar na Bahia. Por prazer, escape e sobrevivência, encarna o GarotoNeon. Ao descobrir que outro rapaz, o dançarino Leo (Bruno Fernandes), está fazendo performance semelhante, Pedro procura o imitador. Passam a trabalhar juntos e se apaixonam, com a iminência de Leo também partir da cidade.
O desamparo afetivo de Pedro é emoldurado por cenários que destacam o centro de Porto Alegre como um lugar esvaziado de vida e beleza, muito bem registrado pela fotografia de Glauco Firpo. A recorrente presença de silhuetas de pessoas em janelas e sacadas, que a tudo assistem com indiferença, reforça a proposta visual dos autores.
— Desde o início do projeto, a gente falava que o Tinta Bruta seria muito baseado no olhar — diz Filipe. — O Pedro se sente violentado pelo olhares que recebe na rua e o olho da webcam é a sua janela para o mundo. Porto Alegre é uma cidade fantasma em alguns pontos. O Centro é um lugar muito bonito, majestoso em alguns momentos, mas está jogado às traças.
— A gente concebeu essas silhuetas como se fossem avatares de anônimos na internet — emenda Marcio. — O anonimato pode ser uma coisa violenta. Essas silhuetas trazem uma coisa que se percebe nas grande cidades, com pessoas que se sentem sozinhas na multidão.
O tratamento final do roteiro de Tinta Bruta começou a ser feito pelos autores em 2016, em plena crise política que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. O processo todo teve impacto no filme. Filipe explica:
— Aqueles acontecimentos foram nos afetando, causando raiva. A melhor maneira de canalizar isso foi colocar no filme. O Pedro é resultado disso. Era importante criar um personagem que fosse reativo. Falando em narrativas queer, no geral, o olhar mainstream adora que o personagem LGBTQI+ seja submisso, vítima, sem voz e sem reação, um personagem que se consome, que é o coitatinho. A gente queria um personagem que, no momento do confronto, reagisse, e o encontramos na força do Shico.
— A gente percebia esse aumento da onda conservadora, as pequenas violências começavam a mostrar a cara. O que se está vendo hoje não veio do nada, veio crescendo — destaca Marcio.
Os diretores lembram que, em meio à pesquisa para o elenco, encontraram Shico em uma festa. O futuro ator era o DJ.
– Queríamos alguém com aparência frágil, mas que transmitisse grande intensidade interna. Prezamos muito a atuação e dissemos a ele que teríamos bastante tempo até alcançar o resultado que queríamos. Foram sete meses de ensaios. O Shico é o oposto do Pedro. É comunicativo, doce e se jogou de maneira muito aberta no processo. O caminhar do Pedro, como se tivesse as pernas presas no chão, o jeito de falar, tudo foi construído nesse período.
Com presença destacada na trama, a trilha sonora de Tinta Bruta, reúne nomes como Letrux, Noporn, Jaloo, Dingo Bells e Anohni. A garimpagem sonora foi de Filipe:
— A gente escuta muita música e já no processo de escrita do filme algumas canções começaram a se conectar com o clima do filme, tanto na melancolia do personagem quando na vontade de viver que ele manifesta na pista de dança.
A visibilidade internacional de Tinta Bruta, realizado com orçamento de R$ 1 milhão, via edital de baixo orçamento da Ancine/Fundo Setorial, assegurou o lançamento do filme em países como Alemanha, Estados Unidos, Áustria, Suíça, Canadá, Portugal, Polônia, França e Austrália. Após a exibição nos cinemas, vai para as grades dos canais Telecine, Canal Brasil e HBO Europa.
— É sempre mais interessante quando tu vais apresentar um projeto ou participar de um edital ter um currículo dizendo que o filme anterior passou em tais festivais, foi distribuído em tantos países. Mas a gente faz projetos bem arriscados, é sempre uma aposta — garante Filipe.