O olhar adulto muitas vezes vislumbra a adolescência e o amadurecimento como uma fase de felizes descobertas - vários filmes sobre o período, inclusive brasileiros, estão aí para ilustrar esta premissa. Em sua estreia no longa-metragem, os diretores Filipe Matzembacher e Marcio Reolon fizeram diferente: escolheram o litoral como pano de fundo para as transformações vividas por dois garotos de não mais do que 20 anos, Martin (Mateus Alamada) e Tomaz (Maurício José Barcellos), mas tiraram-lhes o sol. É no inverno de uma Capão da Canoa cinzenta que se passa a trama de Beira-Mar, longa gaúcho que terá sessão de pré-estreia nesta quarta-feira, na programação do Cine Esquema Novo Expandido, em Porto Alegre, e que entra em cartaz no circuito de cinemas nesta quinta-feira.
Beira-Mar percorreu caminho semelhante ao do marco do novíssimo cinema gaúcho Castanha (2014), com première na seção Fórum do Festival de Berlim, exibições em eventos prestigiosos e, agora, a estreia chancelada por uma distribuidora nacional - a Vitrine Filmes. Mesma geração, mesma praia: a boa formação cinéfila dos realizadores está a serviço da construção de uma estética e de uma narrativa sintonizadas com tendências do melhor cinema contemporâneo, e a estrutura de produção enxuta demonstra adequação à realidade do mercado e à própria natureza do projeto, algo estranhamente raro até pouco tempo atrás na produção local.
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Tudo acontece em um fim de semana na casa de verão da família de Martin. O roteiro de Matzembacher e Reolon demora um tantinho a dizer a que veio, mas a fotografia fria de João Gabriel de Queiroz escancara as sensações de solidão e alguma confusão comum aos dois protagonistas. Sequências mais leves, como a do jogo de videogame - associado à masturbação - demonstram que essa confusão tem nada de extraordinária. Há, isso sim, uma moral religiosa a atravancar suas descobertas. O espectador se dá conta disso a partir dos silêncios reiterativos e da pressão social que se revela quando formam-se os casais na festinha que eles organizam com amigos.
Atenção, nessa festa, à dança ao som de Noporn, duo paulistano de electro famoso pelo hit Baile de Peruas. "Eu sei quem eu sou/ Eu sou o sol", diz a música (chamada Xingu), enquanto vemos Martin e Tomaz no que pode ser um momento de virada - não no tempo de nuvens carregadas lá fora, mas na própria atitude dos dois. Se você já ouviu falar de Beira-Mar, sabe que o longa tem sido exibido em eventos de temática LGBT, o que indica que a homossexualidade é algo presente em suas descobertas. O que o torna um filme especial é a maneira natural com que as travas morais são superadas e essa opção surge para eles.
Sobretudo em seus primeiros atos, Beira-Mar tem muitos planos fechados que, parece, tentam conduzir o público para dentro da intimidade da dupla. Essa busca por uma geografia dos corpos, referenciada, entre outros, em Karim Aïnouz (Madame Satã, O Céu de Suely), é bloqueada não apenas pelo excesso de roupas - contingência do frio -, mas também pelo uso de imagens fora de foco e movimentos de câmera fugidios, que exploram com maturidade o chamado extracampo (fora de quadro). É só no último ato que as amarras se soltam, e Matzembacher e Reolon se revelam.
Seu cinema, vê-se ao fim, é porta-voz de uma geração bem resolvida, que passa longe da inadequação social mesmo ao rejeitar a normatividade. Algo visto, também, em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), de Daniel Ribeiro.
Mais intimista e minimalista em sua dramaturgia, Beira-Mar exige bastante do espectador. Mas é um filme que vale a pena.
Beira-Mar
De Filipe Matzembacher e Márcio Reolon
Drama, Brasil, 2015, 83min.
Pré-estreia quarta-feira, às 20h, na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro, na programação do Cine Esquema Novo Expandido.
Estreia quinta-feira no circuito de cinemas.
Cotação: muito bom.
Carreira ascendente
Sócios da Avante Filmes, que realiza, com a ONG Somos, o Close - Festival Nacional de Cinema da Diversidade Sexual, os diretores Filipe Matzembacher e Márcio Reolon assinaram juntos curtas-metragens como Um Diálogo de Ballet (2012), exibido em diversos festivais internacionais.
Beira-Mar é o primeiro longa-metragem da dupla (Matzembacher também assina um dos episódios de Cinco Maneiras de Fechar os Olhos, de 2013). O filme teve sessões na mostra Fórum do Festival de Berlim, entre outros eventos internacionais, e saiu premiado de Guadalajara (menção especial) e do Festival do Rio (melhor longa da seção Novos Rumos).
Um dos próximos projetos dos dois diretores é a série O Ninho, sobre um garoto que viaja a Porto Alegre para reencontrar seu irmão, a ser exibida na programação da TVE.