Pouco acessíveis ao público em razão da baixa circulação em salas de cinema comercial, filmes realizados no continente africano costumam encontrar espaços em festivais, que funcionam como instâncias de legitimação e reconhecimento. Cineastas africanos, à semelhança de outros do sul global, devem sua visibilidade em boa medida a ambientes como Cannes, Berlim e Veneza.
Abordar filmes africanos a partir de uma perspectiva específica (histórica, política, nacionalista, culturalista etc.) vem sendo uma prática da crítica advinda de festivais e tem implicações diretas sobre a circulação das obras em outros festivais e mostras, e sobre a própria lógica de produção — uma vez que uma recepção favorável por essas instituições pode, por exemplo, resultar na obtenção de premiações, incentivos financeiros, possibilidade de distribuição internacional.
Falar de “cinema africano” ainda hoje convoca questões que vão além da proveniência geográfica, de uma forma de mostrar a autonomia da região em produzir imagens de si. Trata-se também de uma compreensão desse cinema em termos de origem dos seus cineastas, locação dos filmes e a expectativa por narrativas relacionadas àquilo que se apresenta (ou é convencionado) como “cultura africana”. Com uma cinematografia muito jovem, atribui-se aos anos de 1960 o início da produção cinematográfica africana pós-colonial — e desde então os realizadores têm de lidar com as expectativas dos festivais e dos pesquisadores e críticos ocidentais.
Assim, se por um lado os cineastas africanos apropriaram-se das narrativas de si, contribuindo para a política de libertação de seus países, por outro lado foram confrontados por novas fronteiras institucionais. Uma consequência disso é a ausência em circuitos comerciais, como se seus filmes pertencessem a um nicho exclusivo de gostos europeus. No Brasil, existe uma quantidade relevante de mostras e festivais de cinema negro, mas quase nada se vê aqui da produção africana contemporânea.
Muitos dos filmes atuais se destacam pela singularidade de suas tramas, seus formatos, o alcance de suas mensagens e a fluidez entre os gêneros narrativos. Em títulos como Supa Modo, Rafiki, M de Menino, Vaya e No Ritmo do Antonov, todos lançados entre 2013 e 2018 e que compõem a programação da Mostra de Cinemas Africanos em Porto Alegre, temos acesso a paisagens, afetos e relações que remetem não mais à ancestralidade, às tradições religiosas ou à vida tribal — questões caras aos primeiros filmes africanos —, mas a narrativas urbanas que nos levam às periferias de Nairóbi, Joanesburgo e Lagos, ou às paisagens da região do Nilo Azul e dos Montes Nuba no Sudão. Por isso “cinemas africanos”, África plural.
Os enredos, comumente baseados em histórias íntimas com grande alcance social, têm protagonistas majoritariamente mulheres que se revoltam contra a discriminação motivada por razões culturais ou religiosas; que sobrevivem e encontram o amor em complicados contextos de conflitos étnicos e de sexualidade; e se lançam na mais feroz tentativa de sobrevivência no caos das metrópoles africanas.
O conceito curatorial da mostra destaca, portanto, uma mudança geracional que ocorre no início do século 21 e que afeta enredos, estéticas e os próprios mercados cinematográficos africanos. Partindo da riqueza de gêneros como o melodrama, o thriller, o romance ou a comédia, os realizadores revelam domínio da linguagem cinematográfica com propostas inovadoras. Por meio desses filmes, é possível tomar contato com as realidades cotidianas, os anseios e as aspirações de uma África contemporânea, múltipla e diversa.
Três destaques
A Mostra de Cinemas Africanos será de 7 a 12 de dezembro na Cinemateca Capitólio Petrobras, na Capital. Ingressos a R$ 10.
Supa Modo (Quênia, 2018), de Likarion Wainaina
Inédito no Brasil, conta a história de Jo, uma garota de nove anos que tem uma doença terminal e é levada de volta à sua vila rural de origem para viver seus últimos dias. Fugindo dos clichês, o longa investe em doçura, humor e simplicidade. Estreou no Festival de Berlim 2018 e foi escolhido para representar o Quênia na disputa pela indicação de melhor filme estrangeiro nos Oscar 2019.
Sessões dias 7/12, às 20h, e 12/12, às 18h30min
Rafiki (Quênia, 2018), de Wanuri Kahiu
Primeiro longa-metragem queniano a ser exibido no Festival de Cannes, Rafiki tornou-se um dos filmes mais importantes no circuito internacional de festivais. Por mostrar um relacionamento lésbico entre duas adolescentes, acabou banido no Quênia, país onde a homossexualidade é considerada crime. Rafiki integra o contexto de produção dos cinemas africanos no século 21: filmes urbanos, com temáticas atuais e dirigidos por mulheres.
Sessões dias 8/12, às 20h, e 13/12, às 18h30min
Vaya (África do Sul, 2017), de Akin Omotoso
Também inédito no Brasil, abriu o New York African Film Festival de 2017. Baseado em histórias reais, aborda a chegada de três personagens a Joanesburgo em um mesmo trem. As experiências na cidade grande dessas personagens as obrigam a repensar suas atitudes diante da vida e das pessoas.
Sessão dia 9/12, às 18h30min
Mais informações: facebook.com/africanfilmfestivalBR