Aquaman, o personagem de quadrinhos da editora DC Comics (a mesma de Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha), é um exemplo de como alterar radicalmente a percepção dessa coisa toda de super-heróis dependendo do seu grau de boa ou má vontade com o material. Ele tem superforça, pode respirar debaixo d’água e se torna o rei de um continente perdido que afundou no mar ainda antes do alvorecer da civilização grega. Ou seja, por esse ângulo, tem potencial épico. Ao mesmo tempo, se você quiser pesar a mão, pode ficar se perguntando (como muitos humoristas fizeram nas últimas décadas) qual a utilidade de um cara cujo poder vem da água em uma batalha no espaço, por exemplo (onde o Super-Homem nem precisa de traje protetor).
É um pouco esse o espírito para encarar Aquaman, a colorida e agitada versão cinematográfica do herói dirigida por James Wan que estreia hoje nos cinemas. Avaliado em seu contexto e com o necessário grau de boa vontade, é um filme divertido, com um protagonista carismático (Jason Momoa), sem o ranço sombrio que condenou tentativas anteriores de levar os personagens da DC às telas, como Batman vs Superman, Esquadrão Suicida ou Liga da Justiça. Por outro lado, apresenta as mesmas fraquezas de boa parte dos filmes medianos de super-heróis desde a popularização do gênero (das quais não escapa nem mesmo Mulher-Maravilha , a mais bem-sucedida produção da DC): roteiro genérico, um vilão cujas motivações vagas parecem construídas só para avançar a narrativa, e não de modo orgânico, e um terceiro ato que, apesar de espetacular, parece anestesiar o espectador em meio a uma orgia de efeitos visuais em computação gráfica.
Aquaman narra uma história de origem padrão. A diferença é que esta começa antes de o herói nascer. Em uma noite de tempestade, o faroleiro de origem maori Tom Curry (Temuera Morrison) encontra nos rochedos à beira-mar o corpo ferido de uma mulher e a resgata. Calha de ela ser Atlanna (Nicole Kidman, com direito a suas próprias cenas de ação), rainha do reino submerso de Atlântida que desertou para o mundo da superfície para fugir de um casamento arranjado. Enquanto ela se recupera, ambos se apaixonam e têm um filho, que a mãe vê como uma criança predestinada a unir os dois mundos, o da superfície e o das profundezas. Quando percebe que as forças de seu prometido marido jamais vão deixar de caçá-la, Atlanna renuncia à sua família humana para protegê-la e volta para o mundo atlante.
Quase 30 anos depois, Arthur, o filho mestiço da atlante e do humano, se tornou um super-herói relutante que, entre uma caneca de cerveja e outra, navega pelos mares combatendo piratas e resgatando habitantes de vilarejos isolados, como mostrado tanto neste filme quanto em Liga da Justiça.
O herói é chamado à ação devido a uma trama posta em movimento no fundo do mar. O segundo filho de Atlanna e atual rei de Atlântida, Orm (Patrick Wilson, ator-fetiche do diretor Wan e que, apesar de interpretar o irmão mais novo, é seis anos mais velho que Jason Momoa), está reunindo os dispersos reinos submarinos para uma gigantesca força de invasão contra a Terra.
Arthur é procurado pela princesa submarina Mera (Amber Heard, linda, mas provavelmente uma das piores atrizes a interpretar um personagem de quadrinhos desde a Espectral de Malin Akerman em Watchmen), a pedido do vizir Vulko (Willem Defoe), que, embora pose como conselheiro de Orm, foi durante anos mentor secreto de Arthur, ajudando-o a dominar seus poderes. Aquaman e Mera partem em busca de um mítico tridente que pode ampliar a legitimidade de Arthur para destronar o irmão e impedir a guerra entre a superfície e o fundo do mar. No caminho, precisarão enfrentar a perseguição dos atlantes e a sede de vingança do pirata tecnológico Arraia Negra (o ótimo ator Yahya Abdul-Mateen II).
Filme acerta ao assumir breguice
Após anos batendo na trave tentando ajustar a visão de mundo sombria do diretor Zack Snyder com o apelo tradicional de seu panteão inspirador de heróis, a DC acerta em Aquaman com uma abordagem desencanada que consegue fazer o espectador ter boa vontade o bastante para relevar alguns de seus muitos problemas (inclusive de lógica e cronologia).
Aquaman desencanou, por exemplo, de ser um filme de super-heróis estrito, assemelhando-se a uma narrativa de aventura ao estilo Indiana Jones, com pistas cifradas, artefatos místicos e enigmas a serem perseguidos em locações dispersas pelo mundo. O colorido fantástico lembra Avatar ou animes japoneses. E é também uma produção consciente do quão tênue é a linha em que o gênero de super-heróis se equilibra, entre mitologia moderna e chanchada de Carnaval. Ao abraçar a breguice inerente de uma fatia considerável da narrativa de quadrinhos, o filme de algum modo a ressignifica. Para isso, é fundamental o carisma de Momoa, totalmente à vontade no papel do herói, cruza de rei bárbaro com surfista marrento.
Após alguns naufrágios espetaculares, a DC volta a apresentar um herói que não afunda.