É como olhar para uma imagem congelada: 12 meses depois do fim da ocupação Lanceiros Negros, no Centro Histórico, em Porto Alegre, os dois imóveis habitados pelo grupo seguem vazios e sem uso. O movimento que liderou os moradores não fez novas ocupações na Capital, e apenas seis das mais de 70 famílias conseguiram auxílio moradia do poder público — conforme a prefeitura, só seis famílias solicitaram o benefício. Maior avanço em potencial, um protocolo que estabelece novas regras para desocupações aguarda por assinaturas para entrar em vigor.
Retirada do prédio do antigo Hotel Açores, na Rua dos Andradas, em 24 de agosto de 2017, a ocupação ficou conhecida depois de, dois meses antes, ter sido despejada em uma ação turbulenta da Brigada Militar de um imóvel do governo do Estado na Rua General Andrade Neves. Como consequência do conflito, foi elaborado um protocolo para evitar novas cenas de violência — na primeira desocupação, a polícia usou bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e spray de pimenta contra as famílias. As regras devem balizar reintegrações de posse em todo o Estado.
— Existe um comitê da ONU que orienta uma série de procedimentos em casos de remoções. (Na Lanceiros), a experimentamos uma reintegração que claramente não cumpria essas orientações. Entendemos que era o momento de pedirmos para que as futuras ações cumprissem o que era possível — explica o promotor de Justiça da ordem urbanística Cláudio Ary de Mello.
O documento que aguarda por notificação judicial para assinatura prevê reuniões prévias com representantes da ocupação e dos diferentes órgãos envolvidos, informação de data e hora da reintegração, presença do Conselho Tutelar, de representantes dos órgãos e de policiais mulheres, além do respeito à "integridade física, psíquica e patrimonial dos desalojados". O texto ainda veta ações noturnas, como ocorreu na Andrade Neves.
Os itens foram testados na desocupação da Lanceiros Negros Vivem, em agosto, quando o conflito foi resolvido de forma pacífica após mais de 12 horas de negociação. O acordo de remoção incluiu, ainda, um alojamento provisório e a disponibilização de 24 aluguéis sociais para as famílias — a previsão de reassentamento foi retirada do protocolo.
Os dois prédios ocupados pela Lanceiros estão vazios. O edifício onde funcionou o Hotel Açores, fechado após a Copa do Mundo, está à venda. As proprietárias pediram na Justiça o ressarcimento de "todos os danos causados pela invasão". Segundo a advogada Silvia Grantham, o processo está na fase de produção de provas. A algumas quadras dali, o imóvel da Andrade Neves segue com pichações — um pedaço de bandeira vermelha pende de uma das janelas. Destinado à Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR), há meses aguarda por uma análise da prefeitura para liberar sua restauração.
Maioria dos ocupantes está sem aluguel social
Boa parte dos ex-moradores da Lanceiros Negros segue integrando o déficit habitacional de Porto Alegre — somente cadastradas, há mais de 47 mil famílias à espera habitações de interesse social na cidade. A Capital contabiliza, ainda, quase 500 núcleos de moradias irregulares, entre áreas invadidas e ocupações.
No acordo para a desocupação, a prefeitura prometeu disponibilizar 24 aluguéis sociais por seis meses para as famílias. Até hoje, apenas seis delas receberam (o Executivo diz que disponibilizou os 24, mas só seis foram requeridos). Para liberar o benefício de R$ 600, é exigido que o imóvel tenha escritura. Segundo ex-moradores da Lanceiros Negros ouvidos pela reportagem, a regra dificulta o acesso ao benefício: ou as casas encontradas encaixam-se no valor e estão irregulares, ou são regularizadas, mas custam mais caro.
— Esse é um movimento com carências e necessidades como tantos outros. Aquilo que foi combinado, nós cumprimos. É óbvio que se há um imóvel que não está regularizado, nós, agentes públicos, não podemos disponibilizar recursos — disse o diretor do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), Mário Marchesan.
O órgão salienta que legislação e apontamentos do Tribunal de Contas do Estado (TCE) expressam a orientação de que só imóveis regularizados podem ser alugados.
Para Mário Marchesan, o problema habitacional na Capital é uma situação complexa, que não deve se resolver na próxima década. A prefeitura paga hoje 800 aluguéis sociais para famílias de baixa renda e, até o fim de 2020, deve entregar cerca 7,5 mil unidades habitacionais a pessoas cadastradas.
Mas a principal aposta do Executivo para avançar sobre o problema de falta de moradia são as cooperativas. Segundo Marchesan, o Demhab presta assistência para grupos a partir de 25 pessoas que queiram se organizar para conseguir a casa própria "pelos seus próprios esforços".
Domicílios vagos superam déficit habitacional
Enquanto mais de 96 mil estão sem moradia digna na Região Metropolitana de Porto Alegre, há pelo menos 159 mil domicílios vagos em condições de ocupação, segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro, responsável pelo cálculo oficial do déficit habitacional no Brasil.
Em 2017, a prefeitura criou uma comissão para identificar imóveis privados abandonados e notificar os proprietários para que façam manutenção e quitem impostos. Dos 30 imóveis avaliados até agora — outros 45 começaram a ser avaliados —, só um foi caracterizado como abandonado, e, segundo a Procuradoria-Geral do Município (PGM), encontra-se em processo de declaração de abandono para fins de arrecadação pelo município.
A PGM disse ainda que "não há número definido" dos imóveis do município em situação de abandono. Em nota, a prefeitura informou que "os prédios que não estão em uso aguardam recursos para serem utilizados", e que "os referidos imóveis encontram-se em processo de regularização, cedência ou cessão demandadas pelo próprio Município". Em diferentes oportunidades, no entanto, o prefeito Nelson Marchezan deixou claro que não há planos de utilização de imóveis públicos para habitação popular.